sábado, 22 de fevereiro de 2025

Mudanças climáticas aumentam casos de doenças como dengue e chikungunya

Especialistas vêm alertando: o aumento médio da temperatura e das mudanças nos regimes de chuva observadas nas últimas décadas está intimamente ligado ao aumento dos casos de doenças tropicais, em especial da dengue. 

De acordo com um boletim de setembro do Ministério da Saúde do país, em 2022 os registros dessa doença tiveram um aumento de 189% em relação ao mesmo período de 2021. Em números absolutos, neste ano estima-se que mais de 1 milhão e 300 mil casos de dengue ocorreram no país. 

“Estamos observando um clima cada vez mais quente e úmido, o que é um cenário muito propício para doenças como a dengue aumentarem sua área e grau de incidência”, afirma Christovam Barcellos, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz (Lis/Icict), que explica sobre a correlação entre crise climática e enfermidades tropicais. 

Segundo Barcellos, essas doenças chamadas popularmente de tropicais por serem mais comuns nas regiões localizadas entre os trópicos, são muito dependentes de condições de clima para sua disseminação. 

O alerta não se limita à dengue. Um estudo de revisão literária presente no livro “Saúde em Foco: Temas Contemporâneos” (Editora Científica, 2020), identificou uma relação entre as mudanças climáticas e o aumento de casos de doenças como a malária, a chikungunya, a doença de Chagas, a esquistossomose e a leishmaniose.

Por isso, além da alta de casos, “também é possível observar uma constância nos registros ao longo do ano, quando o esperado era uma maior transmissão durante as estações mais quentes e uma diminuição considerável durante as frias”, diz o pesquisador. 

·      Qual a relação das doenças tropicais com o clima

As doenças que se enquadram como tropicais são aquelas cuja incidência é mais favorecida pelo clima das zonas tropicais. O trabalho publicado em 2020 no “Saúde em Foco” explica que isso acontece porque o ciclo de vida dos vetores, reservatórios e hospedeiros dessas enfermidades estão diretamente ligados à dinâmica dos ecossistemas e variáveis de clima. 

Isso quer dizer que os mosquitos transmissores da dengue, malária e chikungunya, por exemplo, necessitam de certas condições climáticas – no caso temperaturas quentes e umidade – para sobreviverem.  O mesmo acontece com os vetores da doença de Chagas (protozoário Trypanosoma cruzi) e da esquistossomose (caramujo Schistosoma mansoni). 

Entretanto, Barcellos enfatiza que essas moléstias, apesar do nome, não estão limitadas às zonas tropicais. “Elas também ocorrem em partes do mundo em que o clima é mais frio”, diz o pesquisador. 

Na verdade, Barcellos esclarece que atualmente é mais correto usar o termo doenças negligenciadas, porque “a incidência delas também está muito ligada com as condições dos países em que elas ocorrem mais e, em sua maioria, são menos desenvolvidos”. Ele explica que são lugares onde há pesquisa insuficiente, poucos medicamentos e tratamentos: “Isso dificulta o controle”, reforça.

Como as mudanças climáticas aumentam casos de dengue e outras doenças tropicais 

Como os transmissores das doenças prosperam no calor, o aumento da temperatura média da Terra pode favorecer sua proliferação. Segundo o “Saúde em Foco”, “ao observar a ecologia de vetores relacionados às doenças tropicais, percebe-se a forte relação com as altas temperaturas, a umidade relativa do ar elevada, o tempo de duração da estação de verão ou das condições de calor e umidade.”

Além disso, o artigo também relaciona as mudanças nos ciclos de chuva com o aumento dos casos. No caso das doenças transmitidas por mosquitos, como a dengue, chikungunya e a malária, o aumento da precipitação propicia maior pontos de água parada, que são habitats ideais para o desenvolvimento das larvas dos mosquitos. 

O maior volume de água nas chuvas também está ligado com mais casos de esquistossomose. Segundo a publicação, a presença do caramujo transmissor está associada à coleções hídricas com pouca correnteza, como lagos, lagoas e córregos. Portanto, quando ocorrem inundações e transbordamentos de lagoas com a presença do caramujo, outras fontes de água acabam contaminadas.

·      Dengue, doença que é preocupação mundial 

Fora a influência da temperatura, no caso específico da dengue uma pesquisa publicada em janeiro de 2022 pela revista científica Plos One identificou que a perda da vegetação nativa por conta da ação humana também está relacionada com o aumento de infecções. 

O estudo analisou especificamente o crescimento de casos de dengue entre 2001 e 2019 nas regiões de ocorrência de cerrado no Brasil. Nesse período, foram registrados pouco mais de 7 milhões e 950 mil casos de dengue nos estados que abrangem o bioma, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Minas Gerais. Enquanto isso, quase 282 mil quilômetros quadrados de área nativa foram desmatados nesta região. 

Os resultados mostraram que o aumento das infecções pelo vírus da dengue têm uma relação direta entre o desmatamento, a diminuição dos predadores naturais do Aedes aegypti – mosquito transmissor da dengue - e o crescimento das áreas urbanas. “A dengue é uma doença muito urbana, então quanto menos mata e mais cidade, mais infecções”, comenta Barcellos. 

Outro trabalho, realizado pelo Observatório de Clima e Saúde da Fiocruz, identificou um aumento massivo de casos em todo o Brasil nos últimos 20 anos, principalmente na região Centro-Oeste, onde a vegetação nativa predominante é o cerrado. 

Segundo os dados do Observatório, a taxa de casos de dengue passou de 100 por 100 mil habitantes entre 2001 a 2007, para 10 mil por 100 mil habitantes entre 2014 e 2020. 

A alta dos casos de dengue não é uma preocupação exclusiva do Brasil. A Organização Mundial de Saúde (OMS) relata que o número de casos de dengue notificados no mundo aumentou mais de oito vezes nas últimas duas décadas. 

De 505.430 casos em 2000, os números subiram para mais de 5,2 milhões em 2019. As estimativas da organização, porém, prevêem que cerca de 390 milhões de infecções pelo vírus da dengue aconteçam anualmente. 

Não só os casos estão aumentando, mas a geografia da doença também se espalha. De acordo com a OMS, antes de 1970, apenas nove países haviam registrado epidemias graves de dengue. A doença agora é endêmica em mais de 100 países da África, Américas, Mediterrâneo Oriental, Sudeste Asiático e Pacífico Ocidental. Além disso, a organização também alerta para ameaças de surtos de dengue na Europa. 

·      Como combater as doenças tropicais como a dengue

Segundo Barcellos, as soluções para controlar essas doenças vão de ações individuais até mudanças globais. “Usar calças compridas, sapatos fechados e instalar telas e mosquiteiros nas casas vêm se mostrando eficazes para evitar infecções, principalmente para pessoas que vivem em regiões com alta ocorrência de insetos transmissores”, afirma ele. 

Mas essas medidas não resolvem o cenário como um todo. “Também é preciso melhores condições de trabalho e equipamentos de proteção, em especial para ocupações ao ar livre, como a agricultura. E melhores habitações”, diz Barcellos. 

Casas de alvenaria, por exemplo, evitam a proliferação do inseto vetor da doença de Chagas, que costuma habitar as fundações de casas de madeira e pau-a-pique. 

Além disso, Barcellos alerta que o meio urbano precisa se adequar para a prevenção das doenças. “Não adianta a casa das pessoas ter conforto e ser um ambiente que as protege de infecções, se elas correm riscos na rua”, diz. 

Entre as medidas que ajudariam na prevenção estão melhores infraestruturas de saneamento básico, transporte público, capacidade de drenagem para evitar enchentes e respostas mais rápidas e eficazes em caso de desastres naturais. “Quando acontece um desastre numa cidade ela tem que ser recuperada rapidamente. O fornecimento de água, coleta de esgoto e de lixo, tudo tem que voltar a funcionar rapidamente para não dar condições de proliferação de doenças”, ressalta Barcellos. 

No âmbito global, a mitigação do aquecimento global a partir da diminuição das emissões de gases de efeito estufa e do desmatamento teria um efeito direto no controle das doenças tropicais. 

“Se por um lado as mudanças climáticas aumentam os casos dessas enfermidades, diminuir o que causam essas mudanças é essencial para o controle. E isso deve ser uma vontade global, não só dos países mais afetados”, finaliza Barcellos.

¨      Para evitar pandemias, é preciso respeitar a natureza

covid-19 não é a primeira pandemia que presencio em minha vida: passei pela epidemia de poliomielite antes da existência da vacina que a previne, uma época em que, quando crianças estavam presentes, pais falavam sobre a doença assustadora soletrando o nome em voz alta, achando que elas não entenderiam. Muitos desses adultos haviam passado pela pandemia de gripe espanhola de 1918. E, nos últimos anos, todos acompanhamos com nervosismo as notícias sobre o surgimento dos vírus ebola, Sars e Mers em populações humanas na África, Ásia e Oriente Médio.

Exceto a poliomielite, que circula apenas entre humanos, a maioria desses agentes transmissores fazia parte de ciclos naturais que envolviam apenas animais. Eles se deslocaram para os humanos porque a natureza foi perturbada de alguma forma. Há uma lição a ser aprendida com isso.

Não deveríamos nos surpreender com o surgimento contínuo de novas doenças – algumas com potencial de se tornar uma pandemia – se a humanidade continuar destruindo a natureza em larga escala.

O caso da febre amarela

Exemplo clássico, mas talvez menos conhecido hoje em dia, é a febre amarela – uma doença que já causou sofrimento em diversos países da América, incluindo o Brasil, onde trabalhei ao longo da minha carreira de biólogo e conservacionista. A febre amarela se desenvolveu há muito tempo nas florestas da África e, no século 17, foi trazida para as Américas em navios negreiros. No continente americano, assim como na África, o ciclo urbano se expandiu para áreas densamente povoadas, onde a doença é transmitida para os humanos por um mosquito (Aedes aegypti) que se adaptou à vida entre nós. Os navios negreiros provavelmente também trouxeram o mosquito da África.

No início do século 20, a eliminação agressiva de possíveis locais de reprodução de mosquitos teve grande eficácia na prevenção da febre amarela. Desde 1937, ela é fácil de ser prevenida pela melhor vacina já criada — que traz imunidade contra a doença pelo resto da vida. No Brasil, o último surto urbano de febre amarela aconteceu em 1942.

Mas a doença não desapareceu. Assim como na África, ela se estabeleceu nas florestas da América do Sul, em um ciclo distinto, geralmente denominado “febre amarela silvestre”. Lá, o vírus se desloca pela copa das árvores, matando bugios e outras espécies de macacos; tendo atacado recentemente membros da última população de micos-leões-dourados ameaçados de extinção na periferia do Rio de Janeiro.

Mesmo após o início da vacinação contra a febre amarela nas cidades brasileiras, ocasionalmente uma pessoa recém-chegada da floresta contraía febre amarela silvestre. Como o ciclo natural do vírus ocorria a 30 metros de altura, a forma como as pessoas se infectavam foi, por um longo período, um mistério intrigante.

Quando eu era estudante de pós-graduação, dividi um escritório no Instituto Evandro Chagas, em Belém do Pará, com o homem que solucionou esse mistério: um interessante pesquisador colombiano chamado Jorge Boshell. No início de sua carreira, ao observar madeireiros derrubarem uma árvore na floresta colombiana, Boshell percebeu que eles ficaram subitamente cercados por pequenos mosquitos azuis: insetos do gênero Haemagogus, transmissores conhecidos da febre amarela silvestre. Normalmente, esses mosquitos vivem apenas na copa das árvores e picam macacos. A possibilidade de picar pessoas foi desencadeada pela derrubada da casa deles.

A cena que Boshell presenciou é um tipo de paradigma de como a saúde pública é ameaçada pela perturbação da natureza – algo que estamos fazendo agora mais do que nunca. Nos últimos anos, o Brasil registrou mais de 750 mortes por febre amarela silvestre, o pior surto desde a década de 1940. Para impedir um novo ciclo urbano da doença, o governo lançou novamente um programa de vacinação em massa.

O problema não é apenas a febre amarela: o desmatamento na Amazônia também cria locais de reprodução para hospedeiros e vetores de doenças como malária e esquistossomose. E ele não se limita ao Brasil, nem a qualquer outro lugar. Como a pandemia de covid-19 mostrou de forma devastadora, os sistemas de transporte modernos podem rapidamente espalhar determinados patógenos humanos para o mundo todo – além de pragas e doenças que afetam plantas e animais. Enquanto escrevo este artigo, foi encontrada (a tempo, felizmente) em um navio de carvão chinês ancorado no porto de Baltimore, nos EUA, uma grande quantidade de ovos de mariposa-cigana asiática, uma praga conhecida que destrói pelo menos 500 espécies de plantas.

<><> Desrespeito perigoso

Para epidemiologistas e virologistas, a pandemia da covid-19 não é surpreendente. Parente muito próximo do vírus Sars, o novo coronavírus também se replica em morcegos, que são em grande parte imunes aos seus efeitos nocivos. O vírus provavelmente se deslocou de um hospedeiro animal para um humano em um mercado que comercializava animais selvagens em Wuhan, na China. Esses mercados são um pesadelo e envolvem inúmeros maus-tratos à vida selvagem, são espantosamente superlotados e insalubres – uma combinação ideal para o surgimento de novas ameaças virais.

No fim de fevereiro, a China proibiu provisoriamente o comércio e o consumo de animais silvestres, mas não está claro se a resolução será permanente. Cada nova morte por covid-19 deveria reforçar o fato de que o fechamento de mercados de animais selvagens na China, no sul da Ásia e na África deve ser uma prioridade internacional de saúde pública. Assim como o controle (ou, preferencialmente, a eliminação) do tráfico de animais silvestres e a redução da destruição de habitats, em especial, as florestas tropicais.

A natureza nos sustenta. Nós nascemos dela. A lição aprendida com essa pandemia não é que devemos ter medo da natureza, mas que é preciso restaurá-la, acolhê-la e entender como conviver e tirar proveito dela.

Toda a biodiversidade é essencialmente uma enorme biblioteca de soluções que foram testadas previamente pela seleção e evolução naturais, para vários desafios biológicos. A biologia idiossincrática dos morcegos, por exemplo – o fato de serem imunes ao coronavírus – pode contribuir para o desenvolvimento de um tratamento para os humanos. A humanidade tem um enorme respeito pelas bibliotecas físicas que criou; portanto, há diversos motivos para tratar a biblioteca viva da natureza com o mesmo respeito e cuidado.

Uma das perguntas que odeio, como biólogo, é quando escolhem um organismo aleatoriamente e me questionam: para quê ele serve? É como tirar um volume de uma estante de livros e perguntar – antes de ler – esse livro serve para quê?

Para que serve um vírus, por exemplo? Uma figura lendária na história da medicina uma vez respondeu a essa pergunta antes mesmo que a ciência soubesse da existência dos vírus. No fim do século 18, o médico britânico Edward Jenner notou que as amas de leite que contraíram uma doença leve chamada varíola bovina muitas vezes pareciam ficar imunes a outra muito pior – a varíola. Mesmo desconhecendo a causa das duas doenças, ele concluiu que a varíola bovina provavelmente causava imunidade à varíola. Por ser um homem convicto, ele conduziu um experimento que demonstrou que as vítimas de varíola bovina não contraíam a varíola. O nome latino para a causa invisível da varíola era vaccinia (vaca em latim), que deu origem ao termo vacinação – uma das bases da medicina moderna.

O número de pessoas que viveram vidas mais longas, mais saudáveis e mais produtivas devido às vacinas é inestimável – certamente na casa dos bilhões. A produtividade da humanidade também foi aprimorada. Estamos ansiosos para que uma vacina contra a covid-19 seja desenvolvida o mais rápido possível e animados com a provável vacina contra a dengue, que deve ficar pronta em breve. No entanto, alguém já parou para para reconhecer, ou mesmo agradecer à natureza pelas vaccinias?

Alguns acreditam que a pandemia é uma resposta da natureza a tudo o que foi e continua sendo feito contra ela. Mas o comportamento humano e o desrespeito ao meio ambiente são a verdadeira causa. Além disso, enquanto lidamos com a pandemia, as mudanças climáticas continuam avançando e causando intensas alterações em todos os ecossistemas, o que provavelmente pesa em favor de patógenos que ainda desconhecemos.

O caminho mais sábio é investir em conservação e ciência, e acolher a natureza e as inúmeras formas de vida com as quais compartilhamos este planeta. Um futuro saudável para a humanidade pode caminhar lado a lado com um planeta saudável e repleto de biodiversidade.

 

Fonte: National Geographic Brasil

 

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