Bolsonaro não deveria ser julgado por Moraes e nem mesmo pelo STF, afirma jurista
A denúncia contra o
ex-presidente Jair Bolsonaro que o acusa de liderar uma tentativa
de golpe de Estado é robusta e deve levar à abertura de um processo criminal
contra ele em pouco tempo, avalia o doutor em Direito Processual Penal e
professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Aury Lopes
Jr.
Mas esse
julgamento, afirma, não deveria ocorrer no Supremo Tribunal
Federal (STF),
e sim na primeira instância do Poder Judiciário, já que Bolsonaro não ocupa
mais cargo público com foro especial no STF.
Além de contestar a
legitimidade da Corte para analisar a denúncia, Lopes Jr também considera
errado que o caso continue sob análise do ministro Alexandre de Moraes, relator
da investigação contra Bolsonaro e outros suspeitos de tentar impedir a posse
do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva.
Na sua visão, seria
"salutar" para a credibilidade do STF que Moraes se declarasse
suspeito, devido a seu intenso envolvimento na fase investigatória e também por
ter sido alvo de um suposto plano do grupo denunciado para matá-lo.
"Quando você é
chamado a tomar várias decisões sobre o caso [durante o inquérito] e depois
você tem que julgar esse caso, você está contaminado. Você já tem uma visão
pré-estabelecida, isso é da natureza humana", argumenta.
"Ele se
declarar suspeito contribuiria muito para a lisura, a transparência de
regularidade desse processo, e talvez pra diminuir eventuais críticas de
violação do processo", acrescentou.
No entanto, o
professor não acredita que STF ou Moraes recuarão de julgar a denúncia contra
Bolsonaro. Dezenas de pessoas sem foro privilegiado já foram processadas e
condenadas no STF por tentativa de golpe de Estado devido ao envolvimento nos
atos de 8 de janeiro de 2023.
Apesar dos
questionamentos da defesa, a maioria dos ministros decidiu pela continuação dos
casos na Corte por tratarem de ataques ao próprio STF e ao Estado Democrático
de Direito. Esse entendimento foi inaugurado com o controverso Inquérito das
Fake News, em 2019, quando o STF deu uma interpretação ampliada a seu regimento
interno, que autoriza a própria Corte a abrir inquéritos para apurar crimes
ocorridos dentro do Tribunal.
A previsão é que a
denúncia contra Bolsonaro seja julgada na Primeira Turma do Supremo, formada
por cinco ministros: Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Cristiano Zanin e Flávio
Dino.
Para Lopes Jr, é
possível que os denunciados se tornem réus até abril. Por sua experiência, ele
estima que um processo criminal com essa complexidade poderia durar dois anos.
Informações da
imprensa brasileira, porém, indicam que a Corte tentará concluir o processo
ainda em 2025, para que o julgamento não contamine o processo eleitoral de
2026.
"O Supremo não
deveria estar preocupado com expectativas políticas de um julgamento",
ressalta.
<><> Confira
a seguir os principais trechos da entrevista: .
·
Como
avalia a consistência da denúncia?
Aury Lopes Jr
- Uma denúncia é uma acusação. O que estamos discutindo aqui é se existem
indícios razoáveis de autoria [de crimes] e materialidade para acusar e receber
uma acusação, iniciando um processo. Isso é muito menos do que aquilo que se
exige para condenar alguém.
Então, nessa
perspectiva de uma mera acusação, existem sim indícios razoáveis, com bastante
suficiência. A denúncia não é inepta. Ela descreve claramente o fato, é
coerente, lógica.
Até porque, por
trás dessa denúncia, existe toda uma investigação feita pela Polícia Federal,
aquele famoso relatório de mais de 800 páginas que apontam mensagens
eletrônicas, conversas, documentos, enfim, monitoramento de estações rádio base
de celular [para verificar a movimentação dos investigados], telefones que
foram usados de uma maneira a dissimular a identidade dos seus interlocutores.
Em suma, tem elementos suficientes.
·
Após
sua leitura da denúncia, identificou possíveis fragilidades na acusação? Por
exemplo, defensores do ex-presidente dizem que não há uma prova concreta de que
ele determinou uma tentativa de golpe ou o suposto plano para matar Lula.
Aury Lopes Jr
- Nem sempre, no processo penal, você tem o acusado [por tráfico] com a
mão na substância entorpecente, por exemplo. O que importa é você ter um
conjunto de indícios que vinculem ele àquele núcleo [criminoso], que demonstre
que ele tinha o poder de mando, o domínio final.
Nesse caso,
objetivamente, se lermos o relatório da Polícia Federal, fica muito claro que
Bolsonaro tinha consciência, sim, de tudo que estava acontecendo. Não só porque
acontecia no entorno dele, no seu grupo forte, como também pelas próprias
manifestações públicas que ele fez, as várias lives [transmissões ao vivo
comuns no seu mandato] que vêm exatamente na linha daquilo que estava sendo
arquitetado. A sistemática resistência ao resultado das urnas, a questão das
fake news das urnas eletrônicas é muito comprovado.
Então, em suma, não
é uma denúncia que você diga "aqui ele foi fotografado ou tem uma mensagem
dele". Até porque é claro que, numa situação como essa, as pessoas tomam
muitas cautelas. Mas há todo um conjunto de circunstâncias que indiciam
claramente que ele tinha conhecimento e o domínio final também.
Quer dizer, é todo
um conjunto imenso de elementos que para, fins de iniciar um processo, é mais
do que suficiente. Agora, se, na devida instrução processual, nós vamos elevar
o nível de prova a ponto de convencer plenamente que ele tinha conhecimento, aí
é a função do processo.
·
Se
for aberto o processo, a instrução para produção de provas será basicamente um
momento de ouvir as testemunhas e os réus?
Aury Lopes Jr
- A PGR, nesta denúncia, arrolou seis testemunhas. Inclusive os comandantes
do Exército e da Aeronáutica, que foram exatamente aqueles que resistiram ao
golpe e cujos depoimentos já foram prestados à Polícia Federal. E o que vai
acontecer é que eles vão ser ouvidos na fase processual e vão confirmar ou não
o que já declararam.
Têm mais
testemunhas ali em relação ao pessoal da Polícia Rodoviária Federal, sobre
aquele controle que houve [do fluxo de eleitores nas estradas] no dia da
eleição nos Estados onde tinha mais votação do Lula. A tendência é as
testemunhas comprovarem isso.
Mas é um processo
em que o forte da prova não é testemunhal. Por isso que seis testemunhas não é
nada de outro mundo. O forte desse caso é a prova digital, é a interceptação
telemática de conversas de WhatsApp, de outras ferramentas de comunicação que
eles usavam, Signal, etc. Então é essa prova que vai realmente fazer a
diferença
·
Considerando
a robustez que você vê na denúncia, quanto tempo deve levar para o STF abrir um
processo?
Aury Lopes Jr
- A lei brasileira não prevê um prazo. Eu não posso dizer claramente
"vai durar X". Mas o que acontece agora: o ministro vai intimar as
defesas para se manifestarem em um prazo curto, 15 dias, e depois disso, até
porque um dos acusados está preso [o que torna o caso prioritário], ele vai,
com certeza, pedir pauta para que a Primeira Turma decida se recebe ou não a
acusação.
Isso deve acontecer
ao longo do próximo mês, talvez até abril, no máximo. Eu creio que a denúncia
será recebida. Então, vamos ter a instrução, que é quando vai se ouvir essas
seis testemunhas de acusação e mais as testemunhas de defesa, que é uma
incógnita a quantidade.
Cada réu, e são
oito nessa primeira denúncia, pode arrolar até oito testemunhas por fato [crime
denunciado]. E são imputados na denúncia, em linhas gerais, cinco crimes.
Então, numa conta grosseira, nós poderíamos chegar a mais de 300 testemunhas,
por exemplo. Provavelmente vamos ter um número menor, mas, ainda assim, nós
vamos ter um número muito grande de testemunhas
Numa situação
normal de temperatura e pressão, eu te diria que é um processo para demorar
dois anos até uma sentença. Digo isso pela experiência, estou te dando um dado
empírico, sem nenhuma comprovação científica.
Mas todo mundo fala
[em notícias na imprensa brasileira] que até o final do ano deve ter uma
sentença. Bom, possível é, eu acho pouco provável. Porque, depois de ouvir
todas as testemunhas de acusação, que são seis, e todas as testemunhas de
defesa, que é um número ainda indefinido, nós vamos ter depois o interrogatório
dos acusados. E, então, vai ter que se marcar uma sessão na Turma para
alegações finais orais, para que, então, a Turma decida se condena ou absolve.
Esse é o rito do
processo. Depois disso, pode ter algum recurso, mas as possibilidades são
restritas, porque esse processo já nasce no Supremo, e aí, depois disso, o
trânsito em julgado [quando o processo termina].
Mas nós temos
outras denúncias vindo. Tem pelo menos mais quatro denúncias prometidas já pelo
PGR [que optou por fatiar a denúncia contra 34 suspeitos]. Quer dizer, então
você vai ter cinco processos tramitando em paralelo. Digamos que é bem complexo
lidar com isso, mas vamos aguardar para ver o tema.
·
Há
notícias na imprensa brasileira de que parte do STF gostaria de concluir esse
processo neste ano, para não contaminar a eleição de 2026. É algo negativo se
de fato houver uma preocupação política com o andamento do processo?
Aury Lopes Jr
- Numa análise exclusivamente jurídica, nenhum juiz precisa ou deve
corresponder a expectativas políticas, morais, religiosas ou econômicas. Ele
deve corresponder a expectativas jurídicas, que é o devido processo.
Então,
tecnicamente, o Supremo não deveria estar preocupado com expectativas políticas
de um julgamento. Mas sabemos que o juiz é um ser no mundo e que com certeza
existe muita pressão. Isso pode ser um fator a influenciar o julgamento? Pode,
mas não deveria.
·
Há
questionamentos sobre a imparcialidade do ministro Alexandre de Moraes para
julgar o caso. Qual sua avaliação?
Aury Lopes Jr
- Eu acredito que vai haver uma resistência, por parte das defesas, com
razão, em relação ao ministro relator.
Eu entendo que o
ministro Alexandre deveria se dar por suspeito e não deveria participar desse
julgamento, por uma série de fatores. Não só porque ele já tomou decisões
[durante as investigações], ele já instruiu esse caso, então ele está
contaminado, juridicamente falando, mas também porque existe uma suspeição dele
dada toda aquela circunstância de ameaça em relação à vida dele, ainda que isso
não tenha se transformado numa acusação jurídica formal de tentativa de
homicídio.
Agora, é inequívoco
que ele foi afetado pelo fato, ele era alvo do golpe. Então, seria muito
interessante e salutar para a própria jurisdição que ele se afastasse. Mas já
alegaram a suspeição dele antes e ele não reconheceu. Então, eu acredito que
vão surgir exceções de suspeição [alegações de parcialidade], mas elas,
provavelmente, pelo histórico do STF, não serão acolhidas.
·
O
Congresso aprovou a adoção do juiz de garantias, que seria responsável apenas
por supervisionar a investigação, justamente para que o juiz que for julgar
depois não tenha essa contaminação. Isso ainda está sendo implementado?
Aury Lopes
Jr - Não se aplica o juízo das garantias ao Supremo, porque o Supremo
entendeu que não caberia [quando julgou ações sobre a aplicação da nova regra].
Mas o argumento é o mesmo [que se aplica ao caso de Moraes].
·
Há
juristas que não consideram Moraes suspeito para julgar Bolsonaro e os demais
denunciados. Eles argumentam que, se Moraes for afastado do caso, abriria um
precedente e bastaria qualquer investigado ameaçar um ministro para que ele
ficasse impedido. Além disso, afirmam que os ataques não eram pessoais a
Moraes, mas ao seu papel institucional no STF e no TSE. O que acha?
Aury Lopes Jr
- É que eu entendo que o problema da atuação do ministro Alexandre Morais
não é só por conta do ataque [que ele recebeu] nesse caso aqui especificamente,
mas pelo conjunto de decisões que ele tomou já nesse inquérito todo, envolvendo
os acusados do 8 de janeiro, o inquérito das Fake News, ele já foi chamado a
tomar decisões lá na fase investigação de maneira muito intensa.
Então, para mim, o
que existe é um imenso prejuízo [de imparcialidade] que decorre dos pré-juízos
que ele já elaborou. Não é uma questão de bondade, de maldade, de perseguição ou
não, é uma questão de inconsciente, de dissonância cognitiva. Quando você é
chamado a tomar várias decisões sobre o caso e depois você tem que julgar esse
caso, você está contaminado. Você já tem uma visão pré-estabelecida, isso é da
natureza humana. "Ah, então qualquer ministro ameaçado vai sair". Não
é só a questão da ameaça, é todo o contexto.
Ele se declarar
suspeito contribuiria muito pra lisura, pra transparência de regularidade desse
processo, e talvez pra diminuir eventuais críticas de violação do processo.
E tem outro detalhe
importante: para mim, a própria competência do Supremo para julgar esse caso
não é clara e não é pacífica. Isso deveria estar em primeiro grau. Por quê?
Porque Bolsonaro é ex-presidente.
O Supremo [quando
fixou sua competência em um julgamento sobre foro especial] disse que ele
queria julgar o quê? Pessoas detentoras de cargos políticos apenas quando o
crime for praticado durante o exercício do cargo. Olha, vamos fazer uma
analogia grosseira até: o Lula foi acusado [na operação Lava Jato] depois de
sair da presidência por fatos, em tese, ocorridos enquanto presidente. E Lula
foi julgado onde? Em primeiro grau.
·
Na
eventualidade de haver um processo e o Bolsonaro for condenado, ele seria
preso?
Aury Lopes Jr
- Primeiro, ele pode ser preso a qualquer momento a título de prisão
preventiva, prisão cautelar. Só que para isso seria necessário existir uma
necessidade concreta, por exemplo, um risco de fuga comprovada ou uma
destruição de provas.
Fora isso, a pena
de prisão de pessoas condenadas pressupõe o trânsito em julgado. Então, ele
teria que ser julgado pelo Supremo. Se for condenado, com certeza teremos
recursos, desde embargos de declaração, eventualmente embargos infringentes,
enfim. Mas só depois de esgotados recursos no próprio Supremo é que nós vamos
poder falar em execução de uma pena eventualmente aplicada. Se essa pena
superar oito anos, o regime é fechado.
¨ STF deve
acolher denúncia da PGR contra Bolsonaro entre março e abril
O Supremo
Tribunal Federal (STF) deverá decidir entre março e abril se aceita a denúncia
apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente
Jair Bolsonaro, acusado de participação direta em uma conspiração para um golpe
de Estado após as eleições de 2022, informa o jornal O Globo.
Se a denúncia
for aceita pela Primeira Turma do STF, Bolsonaro e outros denunciados se
tornarão réus, respondendo formalmente pelos crimes imputados.
A denúncia faz
parte de um conjunto de cinco peças apresentadas pelo procurador-geral da
República, Paulo Gonet, e inclui também o general Braga Netto, além de outras
32 pessoas. O bloco que será analisado pelo STF inicialmente é composto por
Bolsonaro e sete outros acusados, considerados pela PGR como integrantes do
chamado "grupo crucial" da trama golpista.
A tramitação
segue agora para a defesa dos acusados, que têm 15 dias para apresentar
contestações. Após essa fase, a PGR poderá responder às manifestações das
defesas antes que o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, encaminhe a
decisão para julgamento na Primeira Turma. O colegiado responsável pela análise
é composto pelos ministros Cristiano Zanin (presidente), Flávio Dino, Luiz Fux,
Cármen Lúcia e o próprio Alexandre de Moraes.
Entre as
acusações feitas pela PGR contra Bolsonaro estão os crimes de organização
criminosa armada, tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado
democrático de direito, dano qualificado com violência e ameaça grave contra o
patrimônio da União, além de deterioração de patrimônio tombado. Segundo a denúncia,
Bolsonaro teria liderado uma organização criminosa estruturada dentro do
próprio Estado, contando com apoio significativo de setores militares.
A expectativa
no STF é que a tramitação desse processo ocorra ao longo de 2025, com o
julgamento de mérito previsto para setembro ou outubro. O objetivo é evitar que
a questão se estenda para 2026, ano eleitoral, garantindo que os desdobramentos
do caso não interfiram diretamente no processo democrático.
A possível
aceitação da denúncia pelo STF representa um marco na defesa do Estado
democrático de direito no Brasil. O julgamento do caso Bolsonaro reforça a
necessidade de responsabilização de autoridades que atentam contra as
instituições. Esse processo não é um evento jurídico isolado, mas um teste
sobre a solidez das instituições brasileiras.
O fato de a
Justiça estar atuando para investigar e processar eventuais crimes de tentativa
de golpe demonstra que a Constituição e o sistema republicano brasileiro ainda
possuem salvaguardas capazes de impedir retrocessos autoritários.
Fonte: BBC News
Brasil/Brasil 247
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