Quanto mais estuda,
mais o brasileiro é desaproveitado?
O mercado de
trabalho brasileiro tem apresentado uma tendência contraditória nos últimos
anos, desafiando pressupostos tradicionais sobre a relação entre educação e
renda. Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
Contínua revelam um fenômeno intrigante: trabalhadores sem instrução formal
experimentaram um aumento real de 41% em seus rendimentos entre 2012 e 2024,
enquanto profissionais com ensino superior registraram uma queda de 12,3% no
mesmo período (IBGE 2024).
Este cenário
paradoxal reflete transformações estruturais no mercado de trabalho nacional.
De acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV), a pandemia de covid-19 atuou
como um catalisador dessas mudanças, preservando inicialmente os trabalhos mais
qualificados que podiam ser realizados remotamente, mas posteriormente
impulsionando uma recuperação expressiva dos setores que tradicionalmente
empregam trabalhadores com menor escolaridade (Feijó 2024).
A análise dos dados
do IBGE demonstra que o setor de serviços tem sido fundamental nessa
reconfiguração. A coordenadora de Pesquisas por Amostra de Domicílios do IBGE,
Adriana Beringuy, destaca que atividades como construção civil, agricultura,
transporte e logística têm apresentado forte aquecimento, gerando uma demanda
crescente por profissionais com menor qualificação formal (IBGE 2024).
Um aspecto
significativo dessa transformação é a redução da informalidade entre os
trabalhadores menos escolarizados. Pesquisas da FGV indicam que a taxa de
informalidade nesse grupo caiu de 75,2% em 2012 para 71,1% em 2024. Em
contrapartida, entre os profissionais com ensino superior, a informalidade
aumentou de 27% para 33,2% no mesmo período (Feijó 2024).
O Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) aponta que a
política de valorização do salário mínimo tem sido um fator determinante nesse
processo. Segundo Pelatieri (2024), nos últimos três anos, a renda dos
trabalhadores com baixa qualificação cresceu aproximadamente 20%, acompanhando
os reajustes do piso nacional.
A expansão do
ensino superior no Brasil também contribuiu para esse cenário. O número de matrículas
saltou de 2,7 milhões em 2000 para 9,4 milhões em 2022, representando um
aumento significativo na oferta de profissionais qualificados no mercado.
Atualmente, 23% dos ocupados possuem ensino superior, contra 13,7% em 2012
(IBGE 2024).
O setor de comércio
eletrônico tem sido um exemplo emblemático dessa transformação. A digitalização
acelerada durante a pandemia gerou uma demanda inicial por profissionais
especializados em tecnologia, mas posteriormente criou oportunidades
significativas em áreas operacionais, como logística e distribuição, que não
exigem alta escolaridade.
A recuperação do
setor de serviços pessoais após a pandemia também tem favorecido trabalhadores
com menor escolaridade. Atividades como serviços de beleza, alimentação e
pequeno comércio têm apresentado crescimento consistente, beneficiando
principalmente profissionais autônomos. O fenômeno da uberização do trabalho,
amplamente discutido por Antunes (2020), contribui para compreender essa nova
dinâmica. A proliferação de plataformas digitais tem criado oportunidades de
geração de renda para trabalhadores com diferentes níveis de escolaridade,
embora frequentemente em condições precárias.
Pochmann (2021)
argumenta que essas transformações refletem uma reestruturação produtiva mais ampla,
onde a flexibilização das relações de trabalho tem impactado diferentes
segmentos da força de trabalho, independentemente do nível de escolaridade. A
questão da qualificação profissional ganha novos contornos nesse contexto.
Standing (2021) sugere que o conceito tradicional de educação formal pode estar
perdendo relevância em um mercado de trabalho cada vez mais volátil e
fragmentado.
O caso dos
trabalhadores do setor de construção civil é particularmente ilustrativo.
Beringuy (2024) destaca que, mesmo na era da inteligência artificial, há maior
dificuldade em encontrar profissionais como pedreiros e eletricistas do que
programadores web. As mudanças no perfil das vagas operacionais também são
significativas. Dados da organização social Gerando Vidas indicam que as
ofertas de emprego para posições que exigem baixa escolaridade praticamente
dobraram entre o início de 2024 e 2025, com salários médios passando de R$
1.400 para R$ 1.700.
O impacto da
tecnologia nesse processo é ambíguo. Se por um lado a automação ameaça certos
postos de trabalho, por outro tem criado novas oportunidades em setores como
logística e distribuição, que não necessariamente demandam alta escolaridade. A
questão da mobilidade social também merece atenção. Embora a renda dos trabalhadores
menos escolarizados tenha aumentado, a diferença salarial entre quem tem ensino
superior e ensino médio ainda é expressiva, cerca de 126% segundo dados da FGV.
O papel das
políticas públicas nesse cenário é fundamental. A retomada da política de valorização
do salário mínimo, com aumentos reais vinculados ao crescimento do PIB, tem
impactado positivamente a renda dos trabalhadores na base da pirâmide. A
dinâmica do mercado de trabalho brasileiro reflete também tendências globais.
As transformações tecnológicas e organizacionais têm alterado profundamente a
natureza do trabalho e as competências valorizadas pelos empregadores.
A questão da
desigualdade de renda no Brasil revela uma complexidade sem precedentes neste
novo cenário. Embora os dados apontem para uma aparente redução da disparidade
salarial, com o aumento da renda dos trabalhadores menos qualificados, é
fundamental examinar criticamente este fenômeno. O nivelamento por baixo da
renda do trabalho pode mascarar um processo de precarização generalizada das
condições laborais, onde a aproximação entre os rendimentos ocorre não pela
elevação sustentável dos salários mais baixos, mas pela deterioração dos
rendimentos dos trabalhadores mais qualificados.
A tendência de
desvalorização da educação formal representa um risco significativo para o
desenvolvimento socioeconômico do país. O desencorajamento ao investimento em
formação superior, provocado pela queda na rentabilidade deste nível de ensino,
pode gerar um ciclo vicioso de desinvestimento em capital humano. Quando as
novas gerações observam a redução do retorno financeiro da educação superior,
podem optar por trajetórias profissionais que priorizam ganhos imediatos em
detrimento da qualificação de longo prazo, comprometendo a capacidade inovativa
e produtiva do país.
O futuro do
trabalho no Brasil exige uma abordagem que transcenda a dicotomia entre
conhecimento formal e prático. A valorização equilibrada entre as diferentes
formas de saber e competências profissionais precisa estar ancorada em uma
política educacional e de desenvolvimento que reconheça tanto a importância da
formação acadêmica quanto das habilidades técnicas e experienciais. Esta
integração deve ocorrer de forma a potencializar ambas as dimensões, criando
sinergias que elevem a qualidade geral do trabalho e da produção nacional.
O horizonte que se
desenha para o mercado de trabalho brasileiro demanda uma profunda
reestruturação dos sistemas educacionais e de formação profissional. As
transformações tecnológicas e organizacionais em curso exigem um novo paradigma
que combine flexibilidade adaptativa com solidez formativa. Este modelo deve
ser capaz de responder às demandas imediatas do mercado sem sacrificar a
capacidade de geração e absorção de conhecimento avançado, essencial para o
desenvolvimento sustentável do país em um contexto de competição global cada
vez mais intenso.
Fonte: Por Erik
Chiconelli Gomes, em Outras Palavras
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