‘A
Mata Atlântica está morrendo’, afirma o botânico Ricardo Cardim
Na casa de Ricardo Cardim, a mata subiu no telhado. No
bom sentido: sobre sua cabeça e as de sua família agora prosperam dois
microecossistemas: uma amostra de como eram os campos nativos da cidade de São Paulo
(os chamados Campos de Piratininga) e uma “floresta-bonsai”: um exemplar de
Mata Atlântica em formato reduzido, mas com alta diversidade.
“Isso aqui é um laboratório”, ele diz, referindo-se aos
experimentos paisagísticos com espécies nativas que vem fazendo há décadas. Não
só isso como todo o paisagismo de sua casa no bairro de Alto de Pinheiros é um
grande laboratório doméstico da flora da Mata Atlântica, localizado a duas
quadras de onde corre, moribundo, um Rio Pinheiros fétido, retilíneo e desprovido
das florestas que um dia cresceram em suas margens.
A Mata Atlântica vem sendo uma obsessão do botânico e
paisagista Ricardo
Cardim desde,
quando adolescente, fotografava as grandes árvores do bioma que encontrava pelo
caminho. Mal sabia que, anos mais tarde, essa busca se tornaria um livro: Remanescentes da Mata Atlântica: As grandes árvores
da floresta original e seus vestígios, esgotado em sua primeira edição e
relançado agora em versão ampliada, com 200 novas imagens. É, como ele diz, uma
“história visual da Mata Atlântica”, onde reúne fotos históricas da floresta
que já tombou e imagens atuais, captadas pelo fotógrafo Cássio Vasconcellos,
das últimas árvores gigantes da floresta.
Restam poucas, muito poucas, dessas árvores em uma
floresta reduzida a 12,4% de sua extensão original, resultado de cinco séculos
servindo como matéria-prima para a formação do Brasil – da lenha para mover
engenhos e indústrias à madeira para a construção de casas, ferrovias e moldes
de concreto armado. Uma perda irreparável para este bioma com mais de 20 mil
espécies vegetais – 3 mil a mais do que na Europa inteira –, das quais quase
metade são endêmicas.
Embora seja o bioma mais devastado do país, dados
recentes têm
constatado uma discreta reversão no desmatamento: uma queda de 0,25% entre 2005
e 2020, ao passo que, no mesmo período, a floresta recuperou 1 milhão de
hectares, um aumento de 0,6%. Ou seja, a Mata Atlântica cresceu. Mas, como
Cardim alerta em seu livro, e nesta entrevista exclusiva para a Mongabay, não
há nenhum motivo para comemoração.
Ele é categórico em afirmar que a Mata Atlântica está
“morrendo”, mesmo em áreas protegidas – trechos em geral jovens, de crescimento
secundário, fustigados pelas mudanças climáticas, pela falta de diversidade,
pela ausência de fauna, pela invasão de espécies exóticas e pelo chamado efeito
de borda, em que os pontos de contato com zonas desmatadas acabam afetando a
floresta em si. Tudo isso é ainda mais alarmante diante do fato de que 97% dos
fragmentos de Mata Atlântica têm menos de 50 hectares.
Nesta entrevista, Cardim conta o que viu depois de
percorrer 30 mil quilômetros de floresta em busca de suas árvores gigantes –
com o jequitibá-rosa de Camacã, na Bahia, com 58 metros de altura, a maior
árvore viva da Mata Atlântica –, e o que tem feito para ajudar a combater a
degradação: de espalhar “florestas de bolso” por São Paulo (como a que cresce
em seu telhado) a fazer uma espécie de paisagismo de guerrilha, convencendo as
pessoas a plantar apenas espécies nativas.
LEIA A ENTREVISTA:
Como era a Mata Atlântica original?
Ricardo Cardim: Isso é uma indagação que eu tenho desde criança.
Eu via aquelas figuras de Rugendas, de Debret e ficava imaginando: como era
essa floresta? E e eu achava que era uma questão banal, uma questão menor. Aí,
quando eu tive a chance de entrar no departamento de Botânica da Universidade
de São Paulo, eu percebi que mesmo a literatura científica pouco sabia sobre o
que era essa Mata Atlântica antes da invasão da dita civilização.
Depois que eu comecei a pesquisar isso a fundo em
bibliotecas e em acervos, conversando, viajando muito, falando com cientistas,
enfim, com todos os meios que me foram possíveis, eu cheguei à conclusão de
que, sim, a floresta que a a gente vê hoje é uma sombra da floresta ancestral
vista pelos nossos antepassados. O Warren Dean [autor do livro A ferro
e fogo: a história da devastação da Mata Atlântica brasileira] fala que a
floresta atual são “entulhos” da floresta original. É um Taj Mahal que foi
demolido; os entulhos ainda são bonitos, mas não é mais o Taj Mahal. Hoje a
grande parte da mata atlântica acessível aos brasileiros é apenas uma rebrota
maltratada de uma das florestas mais magníficas do planeta.
· A Mata Atlântica original ainda existe em algum
lugar do Brasil?
Dificilmente se encontra grandes fragmentos ancestrais
primários, que é a floresta virgem. O que você vai encontrar são pedaços que
não foram tocados pelo homem severamente, ou pelos seus efeitos deletérios e
diretos. Hoje são muito, muito raros os sítios da Mata Atlântica que ainda
conservam trechos de floresta primária. O que você mais encontra são exemplares
de árvores primárias em meio à mata secundária. É difícil você encontrar um
dossel contínuo de árvores grandes. A floresta hoje virou uma grande colcha de
retalhos.
É como o nosso corpo humano: se eu for esquartejado
agora, eu vou morrer em alguns segundos. A Mata Atlântica, quando ela é
esquartejada, ela demora de décadas a séculos para morrer, mas ela morre
também. É um organismo que funciona como um todo. E, do jeito que a gente
fragmentou ela hoje em milhões de pedacinhos, o que eu mais vejo são esses
pedacinhos severamente doentes. Morrendo silenciosamente, a despeito de estarem
preservados como reservas legais, Áreas de Preservação Permanente, parques
estaduais, nacionais. E não vejo ninguém se mobilizar para isso.
· Uma área protegida, como uma unidade de conservação,
também estaria sob ameaça então?
Ela também está morrendo. A nossa floresta é uma grande
rebrota degradada, que tem que lutar contra a invasão biológica, contra os
efeitos de borda, contra as alterações de umidade no clima. São Paulo era a
cidade da garoa, cadê a garoa? Desapareceu com a ilha de calor. O nosso
interior está inteiro devastado. A mata semidecídua, que era a mata das
perobas, dos jequitibás, foi toda trocada por cana. A umidade do ar baixou,
mudou o regime de ventos, mudou a biodiversidade. Os polinizadores, os
dispersores também sumiram: a gente não tem mais antas, não tem mais bichos que
comem sementes como jatobá.
· Quais são os trechos de mata primária mais bem
preservados hoje?
Eu encontrei alguns em Linhares [Espírito Santo], onde
tem a [Reserva Biológica] Sooretama e a Reserva Natural Vale. Alguns no sul da
Bahia, como a floresta de Itamaraju, do Assentamento Pau Brasil, que tem o
maior pau-brasil vivo até hoje; aquilo é um paliteiro de árvores gigantes. Em
Santa Catarina tem a Reserva Florestal de Caçador, que foi criada da época do
Getúlio Vargas, onde se deixaram alguns pedaços primários com imbuias gigantes
e araucárias. O que a gente percebe é que são pequenas ilhas de matas primárias
e meio a grandes fragmentos secundários.
Porque uma floresta é que nem uma população humana.
Você vai encontrar pessoas que nasceram hoje e pessoas que estão morrendo com
100 anos. Hoje a Mata Atlântica é como se um alienígena descesse aqui e visse
uma população humana onde só existem pessoas com até 35 anos de idade. Hoje
você não vê palmito-juçara morrendo por idade, araucária morrendo por causas
naturais. São todos exemplares jovens.
· E por que é importante uma floresta ter árvores
idosas?
Elas são fundamentais para o equilíbrio ecológico da
floresta. Vários trabalhos científicos mostram que essas árvores-monumento
desempenham papéis que as árvores jovens não conseguem, como conservar carbono,
proteger as outras árvores, formar o microclima da floresta e abrigar a
biodiversidade nas suas copas através de epífitas, animais, polinizadores, etc.
É como o motor de um carro: você tira uma única peça e tudo para. E as árvores
gigantes são uma peça muito importante desse motor. Árvores seculares não são
substituíveis. Elas nasceram em condições completamente diferentes das de hoje
no planeta. Um jequitibá na Mata Atlântica dificilmente vai chegar no porte e
na idade que chegaram as árvores quando isso aqui era ainda indevassado pela
civilização.
· O que mudou na sua percepção depois das expedições
que você fez em busca das maiores árvores da Mata Atlântica?
Eu tinha uma ideia completamente equivocada da
floresta. Eu achava que a floresta estava melhor. Me assustou muito a
degradação. E me assustou ainda mais o desconhecimento cabal das pessoas, e
mesmo de autoridades, com relação à degradação da floresta. Ou seja, a floresta
está ali sendo preservada apenas pela força da lei, mas ela está implodindo em
si pela falta de biodiversidade. Hoje, com toda essa experiência de horas de
floresta, de pesquisa em bibliotecas, eu sinto a Mata Atlântica extremamente
vulnerável. E falo que ela está morrendo. Eu acho que os nossos filhos não vão
ver árvores grandes facilmente.
· Mesmo a área de vegetação nativa da Mata Atlântica
tendo se expandido nos últimos anos?
Isso não diz nada. Uma restauração florestal é somente
o começo de uma floresta. Você cria as condições para a floresta voltar. Você
não cria uma floresta, você cria as condições. Ou seja, você cria um arcabouço
arbóreo, que vai atrair polinizadores e dispersores para eles trazerem as
sementes. Mas as florestas jovens, além de extremamente vulneráveis, são
geralmente paupérrimas perto de uma floresta ancestral. Claro que é algo bom a
gente ter mais território, mas não é de jeito nenhum um consolo.
· O que foi mais difícil para você nessa busca?
Encontrar um acervo imagético ou um acervo físico da Mata Atlântica?
Os dois foram muito difíceis. Eu acredito que o
imagético foi mais difícil. Porque a floresta não era um tema para para os
brasileiros de então. A floresta era só um empecilho para o desenvolvimento
econômico, para a felicidade humana. Ela era vista como algo pernicioso, ou no
mínimo desnecessário. Então, a floresta foi pouquíssimo fotografada,
principalmente por brasileiros.
· No livro você fala desse teu sonho de criar o Museu
da Mata Atlântica. Como seria esse museu?
O Brasil tem muitos museus, mas como é que o país que
tem a natureza mais rica do planeta não tem sequer uma coleção pública sobre
esse assunto? Não tem sequer um museu que mostre aos brasileiros o que era essa
biodiversidade antes da chegada europeia? Como ela se transforma ao longo do
período relacionado com a nossa humanidade? O que sobra nesse século 21? E
quais os caminhos para o futuro? Ficou muito claro para mim, ao formar a
coleção histórica do livro, que essa coleção já está praticamente desaparecida.
As pessoas que abriram a floresta ou que fotografaram a floresta no século 19 já
morreram há muito tempo. E os seus descendentes não tiveram interesse em
guardar esse material.
· Quais os planos para montar esse museu?
Se a gente começar como o [Assis] Chateaubriand começou
o Masp [Museu de Arte de São Paulo], no térreo do prédio dele dos Diários
Associados, se a gente conseguisse algum lugar onde as pessoas estão e pudesse
colocar essa coleção lá, de uma forma atrativa, bacana, moderna, para para as
escolas poderem ir, eu doaria tudo para essa coleção pública.
· Isso é um projeto?
Sim. Eu não consigo trabalhar para isso de uma forma
estruturada. O que eu tenho feito é tentar conquistar o coração de grandes
empresários. Eu não vou citar nomes, mas em 2018, depois da publicação do
livro, eu consegui juntar três das pessoas mais ricas do Brasil e mais uma ONG
muito importante para fundar o Museu da Mata Atlântica. Estava indo super bem.
Ia acontecer. Aí Bolsonaro ganhou a eleição. Houve uma desistência
generalizada. E agora eu voltei a a trazer esse assunto para pessoas que têm
capital e paixão pela Mata Atlântica, mas não tem sido frutífero.
· E que histórias você acha que falta contar sobre a
Mata Atlântica?
Eu acho que uma história importante seria contar que
grande parte dessa floresta sobrevive nas cidades brasileiras na forma de
nossas casas, prédios, galpões, assoalhos, móveis. É impressionante você ver a
qualidade das madeiras em demolições na cidade de São Paulo, por exemplo. Eu já
vi fábricas que tinham 90 metros cúbicos de madeira de lei com quase cem anos,
em perfeito estado. E essa madeira tem que ser salva. Porque é um material que
não é renovável. Isso tem que ficar claro. Para ter uma peroba-rosa com essa
qualidade, como a que a gente tem nessas telhas dos anos 40, você precisa de
uma árvore que cresceu numa floresta ancestral, que não existe mais.
Que solução você vê para voltarmos a ter uma Mata Atlântica próxima da
original?
A única salvação para a Mata Atlântica seria uma
política de reconexão. A gente precisa conectar a floresta em meio a matrizes
de atividades humanas. Veja só, não estou aqui fazendo um papel de “vamos
expulsar os humanos”. A gente tem que conviver. Talvez no futuro a gente tenha
uma consciência maior de também ceder espaço para a biodiversidade, mas
enquanto a gente está ainda nesse momento de evolução humana, é preciso
construir uma rede de conexão entre essas florestas para que elas possam ainda
ter um fluxo genético animal e vegetal, e se manter vivas até um momento que
seja mais propício para elas. Mas hoje eu digo que a Mata Atlântica está
morrendo. Eu andei 30 mil quilômetros na floresta e é desesperador.
· E como você acha que a população comum pode ajudar?
A primeira coisa é entender o que está acontecendo com
a Mata Atlântica, que ela está preservada por lei, mas não tem sua
sobrevivência garantida. Eu fiz esse livro com muito cuidado para ele ser um
livro-museu da Mata Atlântica. Não é um livro para cientistas. Se a pessoa ler
esse livro com atenção, ela vai entender perfeitamente o que está acontecendo
com a nossa floresta. Outra coisa é que você já pode fazer muito usando plantas
nativas no paisagismo, na arborização.
· De que modo o paisagismo com espécies exóticas causa
desequilíbrio no ambiente natural?
Hoje é um dos maiores problemas. Você tem um loteamento
e preserva 20 e tantos por cento de APP [Área de Preservação Permanente]. E
realmente se preserva. Eu trabalho com o mercado imobiliário e vejo que a
maioria dos empresários segue a lei. Mas o que acontece? Vem todo aquele
paisagismo de glamour, de moda, desconectado de outros valores que não a decoração.
Vem uma miríade de plantas estrangeiras, e muitas se comportam como invasoras.
O problema é que as florestas mais próximas aos seres humanos, como a Mata
Atlântica, são as florestas mais degradadas. Quando uma floresta é degradada,
ela perde o jogo de forças dela. Nessas lacunas, abre-se a porta para a invasão
biológica. São que nem vírus no sistema. Se eu tenho um corpo muito forte,
esses vírus dificilmente vão conseguir entrar. Se eu já estiver com fome,
exausto, eu vou estar vulnerável.
É a mesma coisa com a Mata Atlântica: as plantas
exóticas invasoras desse condomínio que vêm do paisagismo vão infestar esse
local, vão ocupar o espaço das nativas e passar a canibalizar as plantas
nativas. Vão brigar por água, nutrientes e luz, basicamente. Só que as
invasoras não têm inimigos naturais, e isso dá a elas vantagens adaptativas.
Então, ela é uma superplanta. São guerras químicas e biológicas avançadíssimas,
complexas. E que vão acontecendo sem os leigos perceberem.
· Como a devastação da Mata Atlântica pode nos ensinar
sobre o que está acontecendo na Amazônia?
Eu termino o livro com aquela frase do [filósofo]
George Santayana: “Aqueles que não conhecem o passado estão condenados a
repeti-lo”. Por quê? Eu coloco uma foto dos anos 40 da Mata Atlântica, de um
sujeito num calhambeque com uma tora de araucária atrás, e coloco uma foto de
um Volvo computadorizado de 2015 com uma tora de árvore amazônica atrás. Ou
seja, a gente continua fazendo exatamente a mesma coisa. O que mudou hoje é a
tecnologia, a escala e a capacidade de predação. A Amazônia é muito maior que a
Mata Atlântica, mas a nossa capacidade de destruição também é muito maior. O
caos ambiental, social e econômico que a gente tem hoje na Amazônia parece que
se deve a algo espontâneo, mas não: foi orquestrado por setores privados e
governamentais nos anos 70 e meados dos 80. E as pessoas têm que entender isso.
Porque hoje a história está se repetindo.
Fonte: Mongabay
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