Manipular, vigiar e matar: o papel dos “kids pretos” no golpe
O manual de campanha de Operações Especiais do Exército
define os “kids pretos” como oficiais preparados para atuar em “missões de alto
risco”, com “dificuldade de coordenação e apoio”, aptos a se infiltrar em
“ambientes hostis” visando “alvos de valor significativo”. Apresentada nesta
quarta, 18 de fevereiro, a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) no
caso da tentativa de golpe ilustra fielmente como os “kids pretos” atuam na
prática.
Na trama, pelo menos 12 militares formados em Forças
Especiais – incluindo um ex-comandante dos “kids pretos” – fariam o ‘trabalho
sujo’ do golpe, com missões para sequestrar e matar o ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, o presidente e o vice-presidente da
República então eleitos, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin
(PSB).
Os “kids pretos” também tinham a função de conduzir
operações de manipulação contra membros do Alto Comando do Exército, para que
aderissem ao golpe.
Um trecho da delação do tenente-coronel Mauro Cesar
Barbosa Cid, ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e peça
central na trama golpista, revela aspectos típicos da doutrina das Forças
Especiais no caso.
Segundo Cid, dois tenente-coronéis lotados no Comando
de Operações Especiais o procuraram durante a crise após as eleições em 2022,
afirmando que “algo precisaria ser feito para que causassem um caos” e, com
isso, forçariam “a decretação do estado de defesa ou estado de sítio”.
Na denúncia, a PGR lembra que os “kids pretos” são
treinados para dominarem “táticas de operações em missões de inteligência,
exploração e reconhecimento de comunicações clandestinas, operações em
conflitos armados não convencionais”, além de “infiltração em território
inimigo” e “manejo de crises em ambientes hostis”.
“As técnicas das Forças Especiais eram utilizadas pela
organização criminosa não apenas no contato com os movimentos populares
[acampamentos golpistas], mas especialmente no desenho das estratégias de
ruptura institucional”, relata ainda o procurador-geral da República, Paulo
Gonet, na denúncia apresentada
ao STF.
·
Os “kids pretos” centrais na
trama do golpe
Base da denúncia da PGR, as investigações da Polícia
Federal (PF) destacam três “kids pretos” como figuras centrais na trama: o
general e ex-membro do Alto Comando do Exército Estevam Cals Theophilo Gaspar
de Oliveira, à época comandante de Operações Terrestres da Força, o general da
reserva Mário Fernandes e o tenente-coronel Mauro Cid.
Preso preventivamente desde novembro de 2024, após
a operação
Contragolpe, da PF,
o general da reserva Mário Fernandes trabalhou no Palácio do Planalto como secretário-executivo
da Secretaria-Geral da Presidência desde julho de 2021 até o fim do governo
Bolsonaro. O general, aliás, foi o responsável por designar quem acompanharia
Bolsonaro em sua ‘fuga’ para Miami (EUA) antes da posse de Lula ainda em
dezembro de 2022, como mostra o Diário Oficial da
União.
Homem de confiança do general da reserva e também “kid
preto” Luiz Eduardo Ramos, ele comandou o 1º Batalhão de Forças Especiais do
Exército – uma das unidades dos “kids pretos”, em Goiânia (GO) – por quase três
anos, entre julho de 2008 e junho de 2011.
Não à toa, segundo a investigação da PF, o general
Fernandes coordenava “ações de monitoramento e neutralização [assassinato] de
autoridades públicas, em conjunto com Marcelo Costa Câmara [coronel da reserva
do Exército e também “kid preto”], além de realizar a interlocução com as
lideranças populares” ligadas ao fatídico dia 8 de janeiro de 2023.
Segundo a PGR, Fernandes elaborou o plano “Punhal Verde
Amarelo”, que visava assassinar Lula e Alckmin antes da posse, e o apresentou
ao ex-presidente Bolsonaro. A denúncia aponta ainda que o general Fernandes
trabalhou diretamente na operação “Copa 2022”, um plano de monitoramento
clandestino para a “neutralização” (assassinato) do ministro do STF Alexandre
de Moraes.
egundo a PGR, Fernandes teria discutido a operação
clandestina com os tenente-coronéis Hélio Ferreira de Lima, Mauro Cid e Rafael
Martins de Oliveira, todos “kids pretos”, na residência do general da reserva
Walter Braga Netto – tido como um dos arquitetos da trama golpista.
Evidências colhidas pela PF reforçam o papel de
Fernandes na operação “Copa 2022”, pois ele teria elencado a necessidade de
compra de seis aparelhos celulares anônimos para serem usados no plano – o que
de fato aconteceu, segundo as investigações.
O general Fernandes também atuou como elo entre os
golpistas no governo Bolsonaro e os acampados em frente ao Quartel-General do
Exército em Brasília (DF), com diversos diálogos com lideranças bolsonaristas
recuperados pela PF durante a investigação.
O material apresentado pela PF contém ainda registros
de visitas presenciais de Fernandes no acampamento, com suspeita de
envolvimento na elaboração de cartazes e panfletos usados para manter os
acampados mobilizados no local. São, afinal, exemplos de técnicas ensinadas às
Forças Especiais do Exército, por vezes enquadradas como Operações Psicológicas
pelos militares.
O general Theophilo era outra peça fundamental da
trama. De acordo com a denúncia da PGR, o militar membro do Alto Comando do
Exército teria aceitado “coordenar o emprego das forças terrestres conforme as
diretrizes do grupo” golpista. Theophilo era o comandante de Operações
Terrestres do Exército (COTER), em Goiânia – unidade a qual o Comando de
Operações Especiais é diretamente vinculado, para eventual uso da tropa.
“O COTER era, portanto, órgão relevante para a
implementação do plano golpista, especialmente na execução de ações sensíveis,
como a da prisão do Ministro Alexandre de Moraes”, afirma o procurador-geral
Paulo Gonet, na denúncia enviada ao STF.
Com base na delação de Mauro Cid e em mensagens
recuperadas de seu telefone, a PGR aponta que o general Theophilo “se
comprometera a executar as medidas necessárias para a consumação da ruptura
institucional”, contanto que o ex-presidente Bolsonaro assinasse um decreto –
que tornaria possível o golpe de Estado.
Ainda de acordo com a denúncia, o aceite do general
Theophilo teria ocorrido sem aviso ao então comandante do Exército, o general
Marco Antônio Freire Gomes, outro “kid preto”, durante uma reunião do então
comandante do COTER com Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada, no dia 9 de
dezembro de 2022. Em seu depoimento, o general Freire Gomes admitiu ter ficado
“desconfortável com o episódio, por desconhecer o teor da convocação [do
general Theophilo pelo ex-presidente]”.
Para a PGR, “o ‘desconforto’ relatado por Freire Gomes
se devia ao fato de que o General Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira
possuía grande prestígio no meio militar”, e “seu apoio ao plano de ruptura
institucional significava, àquela altura, a possibilidade de consumação do
golpe de Estado”.
·
Mauro Cid e a turma golpista
de 2000
Parte dos “kids pretos” denunciados entrou na trama
graças a sua relação com o tenente-coronel Mauro Cid.
O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro concluiu seus
estudos na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 2000, junto com os
tenente-coronéis Guilherme Marques de Almeida, Hélio Ferreira de Lima, Ronald
Ferreira de Araújo e Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros – todos denunciados
na última quarta (18).
Mauro Cid foi um dos organizadores de uma reunião
clandestina de ex-“kids pretos” em Brasília, na noite de 28 de novembro de
2022. Para a PGR, a ocasião demonstra uma das responsabilidades dos militares
das Forças Especiais no caso: usar técnicas de influência e persuasão contra a
cúpula do Exército em prol do golpe.
Junto ao coronel Bernardo Romão Correa Neto, outro de
seus amigos nos tempos de AMAN, Cid planejou o encontro com oficiais-assessores
dos membros do Alto Comando do Exército, para discutirem como influenciar seus
chefes a aderirem ao plano. Para a PGR, a reunião ocorreu na mesma época em que
um decreto para consumar o golpe estava sendo elaborado.
Cid e Correa Neto se uniram ao então coronel, hoje
general de divisão Nilton Diniz Rodrigues – mais um “kid preto” – para “reunir
alguns FE [Forças Especiais] em funções chaves para termos uma conversa sobre
como podemos influenciar nossos chefes” – segundo conversas entre eles
recuperadas pelos investigadores da PF.
“Os diálogos confirmam a ideia de reunir exclusivamente
militares com formação em Forças Especiais que poderiam, de algum modo,
influenciar seus comandantes, valendo-se também dos seus conhecimentos táticos
especializados”, aponta o procurador-geral da República, Paulo Gonet, na
denúncia apresentada ao STF.
Dois dias antes do encontro, Cid lidou com outros
oficiais do Exército para articular a redação de uma carta direcionada ao Alto
Comando, justamente para pressionar os militares a aderir ao golpe.
As investigações apontam que o documento foi concluído
após a reunião clandestina dos assessores militares “kids pretos” em 28 de
novembro de 2022 – algo que a defesa dos acusados tem negado desde a
apresentação do relatório final da PF sobre o caso, em novembro passado.
¨ "Ditadura sanguinária", afirma Ivan Valente
sobre pretensão de Bolsonaro com golpe
O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP)
esteve no Fórum Onze e Meia desta
quinta-feira (20) e falou sobre a tentativa de golpe de Estado comandada pelo
ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), como
apontou a denúncia da
Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentada nesta semana.
O parlamentar
defende que a peça produzida pela PGR é "consistente, robusta e tem
um encadeamento lógico muito importante". Por isso, Ivan afirma que os
bolsonaristas ficaram "desesperados". "A denúncia é consistente e
certamente vai levar o Bolsonaro como chefe e todos os que foram
arrolados e os que virão a ser arrolados. Há um julgamento justo e a palavra é
cadeia. Não tem como escapar", diz.
"É gravíssima
a denúncia. Essa ideia de que não houve uma tentativa de golpe de Estado
se esfarela. A declaração do Ministro do Exército ameaçando dar voz de prisão
para o Bolsonaro e o relato de que discutiram os três ministros: da
Marinha, que topou colocar tropas na rua; da Aeronáutica que se
negou; e do Exército, já seriam suficientes [para comprovar a tentativa de
golpe]", declara o deputado.
Valente acrescenta
que a minuta do golpe não foi feita só por Anderson Torres, mas também por
Bolsonaro, que redigiu a redação final na casa do ex-ministro da Defesa, Braga
Netto, convocando a ação dos "kids pretos". O deputado afirma que
isso seria uma "ação de morte, de assassinato político".
Para o deputado, o
desejo de Bolsonaro com o golpe seria implementar uma "ditadura
sanguinária" no país e, por isso, chamou como parceiros Braga Netto e
o general do Exército, além do ex-ministro de Bolsonaro, Augusto Heleno.
"Ele
[Bolsonaro] foi planejador, incentivador, estimulador e inconformado.
Mesmo quando alguns bolsonaristas falavam 'não dá mais', ele queria se
perpetuar no poder, ou seja, uma ditadura sanguinária, e aí ele pegou como
parceiro o Braga Netto, o Heleno. Esses caras 'estão para tudo', sempre
estiveram na ditadura e na repressão", afirma Ivan, que foi preso e
torturado durante a ditadura militar no Brasil.
<><> Bolsonaro
vai rachar seu próprio campo
O deputado também
avalia que a postura de Bolsonaro de defender a permanência do seu nome como
principal candidato da extrema direita nas eleições de 2026 vai fazer com que o
ex-presidente rache "seu próprio campo".
"Eu acho que o
Bolsonaro continua errando, porque ele acha que se colocar como candidato é uma
proteção para ele. E vai ter uma hora que ele vai rachar o próprio campo
dele. Porque tem uma burguesia, uma elite sem vergonha no Brasil, essa que
sempre foi predadora, que acha que o Bolsonaro não dá mais", diz Ivan.
Para esse grupo, uma via poderia ser o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos),
de acordo com o deputado.
"Ninguém quer
perder o espólio fascista do Bolsonaro, mas ao mesmo tempo, estão falando:
'Isso aí é meio passado e nós temos que tirar o Lula'", acrescenta.
"Nós vamos viver um ano muito intenso", avalia o deputado, que
destaca ter certeza da prisão de Bolsonaro.
Fonte: Por Caio de Freitas, da Agência Pública/Fórum
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