Mulheres trabalham
na prisão, mas têm dificuldade para receber pagamento
Cristilane Souza
sofria todos os dias na cela da unidade prisional, pensando na falta de remédio
para Caio, seu caçula de 4 anos, que sofria crises nervosas por conta de um
déficit intelectual. Ao ser presa por tráfico de drogas, buscou trabalho
imediatamente, comprometendo-se a bancar o medicamento do filho. Mas, apesar de
trabalhar 8 horas por dia enquanto estava presa, o salário nunca chegou.
A primeira vez que
esteve na Colônia Prisional Feminina de Abreu de Lima (CPFAL) foi em 2012,
quando ainda carregava o filho Caio no ventre. “Eu fui algemada e presa
grávida. Eu só sabia chorar, nunca fiquei distante dos meus filhos”, relembra,
com a voz embargada.
Para Cristilane, a
condição do filho é reflexo da forma como sua prisão aconteceu, levada em um
porta-malas, ao lado de dois homens algemados. “Os policiais disseram: ‘Se eles
tentarem algo contra você, dê murro que a gente escuta’. Eles sabiam do risco,
mas me deixaram lá. Eles poderiam me colocar no banco da frente, mas não
quiseram”, recorda.
Na época,
Cristilane aguardou o julgamento em liberdade e seu filho Caio nasceu fora das
grades. Mas, em 2016, a sentença saiu, e ela voltou ao presídio — a 30 km do
Recife (PE), longe da família. Sob os cuidados da mãe e de uma irmã, ficaram
Caio e Helen, sua filha mais velha, de 7 anos.
Foi em 2017 que
Cristilane começou a trabalhar na Indapol, uma fábrica de formas para doces e
salgados com uma unidade dentro do presídio. Além do trabalho na linha de
produção, acumulava a limpeza da cozinha e de outros espaços. Trabalhou por
três meses sem receber um centavo, até que soube depois pela CPFAL que a
empresa tinha falido, e foi tomada pelo desespero e pela angústia.
TRABALHAM PARA
MANTER O SUSTENTO, MAS NÃO RECEBEM
Sem ter mais o
emprego, ela recorreu ao trabalho informal de faxinar as celas na prisão para
atender às necessidades mínimas dos filhos (alimentos e remédios). “Lavava o
quadrado, o banheiro, juntava água em baldes para o consumo quando faltava”. E
recebia das colegas de cela R$ 10 por faxina, por mês ou por semana.
Hoje, aos 38 anos,
moradora do Ibura — uma das comunidades mais vulneráveis do Recife — Cristilane
Souza tem uma história de vida marcada pelo cárcere. Ela encontra forças nas
colegas do grupo “Liberta Elas”, coletivo feminista de Recife, que apoia
mulheres atravessadas pelo cárcere. Assim como ela, muitas mulheres sofrem
para fazer dinheiro dentro das penitenciárias, receber o que têm direito do
Estado e garantir o sustento dos filhos que ficaram sob cuidado de
parentes.
Apesar de
trajetórias distintas, ao serem presas, essas mulheres compartilham a mesma
realidade: trabalham e servem como mão de obra barata ao sistema prisional, mas
esbarraram em um Estado que negligencia direitos básicos.
Quando realizam
trabalho durante a prisão, elas podem receber até ¾ de um salário mínimo na
forma de ‘pecúlio’. Por exemplo, Cristilane deveria ter recebido R$ 300, com
base no salário vigente da época (R$ 937). Desse total, R$ 110 ficaria retido
em uma conta poupança para sacar ao fim da pena. A diferença, R$ 190, deveria
ter sido entregue para ela a cada mês, em mãos, mas isso nunca aconteceu.
Sobreviventes do
cárcere muitas vezes enfrentam barreiras para acessar o pecúlio. Esse valor,
acumulado pelo trabalho prisional, é previsto na Lei de Execução Penal (LEP) e
representa mais do que uma compensação financeira — frequentemente é a única
renda para seus familiares e a forma de recomeço fora das grades.
BUROCRACIA E FALTA
DE INFORMAÇÃO DIFICULTAM ACESSO
No caso de
Cristilane, o pecúlio foi pago parcelado, cinco anos após cumprir a pena, e em
esquema de rodízio, contemplando cinco mulheres de cada vez. A ausência de
informação clara e a burocracia fazem com que muitas mulheres dependam de
voluntários e organizações sociais para acessar o valor. Assim, o que deveria
ser um direito, obtido por meio de trabalho executado, se transforma em mais
uma forma de penitência.
A falta de
transparência é uma das críticas que Raíssa Lustosa faz à gestão do pecúlio em
Pernambuco. Ela é mestre em Direito, pesquisadora e ativista do grupo “Além das
Grades”. “Quando as mulheres são presas, não é realizado um seminário sobre
direitos e deveres na prisão. É tudo muito obscuro, elas não sabem exatamente
como podem acessar o pecúlio”, frisa.
O benefício é
regido pela Lei de Execução Penal Estadual de Pernambuco, que autoriza o seu
uso para compra de itens de higiene, provisão de alimentos dos dependentes e
indenização de terceiros. Mas a lei “deixa brechas quanto ao prazo para
pagamento do valor”, observa Raíssa. “Isso dificulta para que a mulher possa
recorrer na justiça”, critica.
O MEDO DE COBRAR O
QUE TÊM DIREITO
O cárcere, o
julgamento e a culpa impõem às mulheres uma carga de vulnerabilidade que as
impede de cobrar o pagamento do pecúlio. Muitas, ainda sob custódia —
especialmente nos regimes semiaberto e aberto — temem que acionar a Justiça
possa agravar suas penas ou comprometer os benefícios já conquistados.
Raíssa explica que
problemas como o pagamento do pecúlio não podem ser levados à Vara do Trabalho,
pois conforme a LEP, o trabalho na prisão não gera vínculo [empregatício].
“Essas mulheres só acessaram esses trabalhos porque estão contidas ali [no
presídio] pelo Estado, elas são responsabilidades dele [Tribunal de Justiça de
Pernambuco]”, esclarece.
A reportagem
d’AzMina entrou em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria Executiva
de Ressocialização de Pernambuco (Seres) para ouvi-los sobre o relato da
Cristilane e entender como o Estado atua na garantia dos direitos das presas.
Também contatamos a assessoria de imprensa da Polícia Militar de Pernambuco em
busca de respostas sobre a condução de homens e mulheres presos em um mesmo
veículo, como foi relatado por Cristilane. Até o fechamento desta matéria não
recebemos respostas.
CONTANDO COM A
SORTE E AS AMIZADES
Paula*, 42 anos,
compartilha com Cristilane a mesma incerteza sobre a liberdade, apesar dos 2
mil quilômetros que as separam. Paula entrou para o regime aberto há um mês e
meio, em São Paulo. Mas cumpria pena no Centro de Progressão Penitenciária
Butantã Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira (CPP Butantã) desde 2022. Na
unidade, trabalhava na padaria, das 8h às 17h.
Ao sair, tudo o que
Paula* carregava era o desejo de recomeçar e a expectativa de receber o pecúlio
— essencial para dar os primeiros passos em sua nova vida. Mulher negra,
moradora da periferia paulista, ela teme se expor e comprometer o benefício
constitucional conquistado.
Paula recebeu um
número telefônico para agendar o saque do pecúlio. “A gente liga, liga, liga e
ninguém atende. Quem já se viu agendar para pegar o dinheiro a que nós temos
direito, pois trabalhamos”. Uma colega se ofereceu para ajudá-la junto à
Central de Atenção à Pessoa Egressa, e só assim conseguiu resgatar o valor
devido, pois não teria como ir à penitenciária, por estar trabalhando fixo em
outra região.
As dificuldades que
mulheres enfrentam dentro e fora das prisões refletem os perfis delas, que
pertencem a camadas sociais mais pobres e vulneráveis. Mais da metade da
população carcerária feminina é negra. Em 2024, esse número atingiu 63%. O
tráfico de drogas lidera o ranking de incidência penal entre elas, com destaque
para 2021, que registrou o maior número de processos por esse crime na série
histórica de 2017 a 2024. E, menos da metade das presas ocupavam postos de
trabalho remunerado nesse período. As demais trabalhavam apenas para remir a
pena.
SAÍDA TEMPORÁRIA E
AS DIFICULDADES LOGÍSTICAS
Em São Paulo, parte
do pecúlio também é disponibilizado nas ‘saidinhas’ — saídas temporárias
garantidas por lei para presas do regime semiaberto. Algumas mulheres têm
direito a saírem quatro vezes ao ano e ficam, em média, 7 dias fora dos
presídios.
Estivemos na porta
do Centro de Progressão Penitenciária (CPP), na zona oeste de São Paulo, para
acompanhar uma dessas saídas temporárias. Nessas ocasiões, há mais voluntários
do que familiares à espera. Muitas presas vêm de outras cidades e estados, e a
unidade está em uma área remota e de difícil acesso. Por isso, organizações
como a “Por Nós” instalam tendas nas calçadas para dar assistência às mulheres,
que, não raro, saem do complexo só com a roupa do corpo e cheque do
pecúlio.
A “Por Nós” é uma
rede de mulheres sobreviventes do cárcere, pensada para e por mulheres egressas
do sistema prisional, que defendem uma política de desencarceramento e
acolhimento. As voluntárias oferecem frutas, pão, requeijão, café, chá, roupas,
sapatos e absorventes na saída do presídio. As roupas são símbolo de
identidade: trocar a camiseta branca e a calça bege do uniforme carcerário por
algo novo é um gesto de libertação.
Dois itens são
essenciais nesse momento: um celular para ligar aos familiares e avisar sobre a
saída, e dinheiro para garantir o retorno para casa, já que o pecúlio vem em
cheque.
A PRESSA DE QUEM
ESTÁ PRIVADA DE LIBERDADE
O tempo para uma
mulher privada de liberdade corre em um ritmo diferente. Cada minuto ao lado da
família se torna precioso. Há pressa em viver e reencontrar os afetos. Tentam
esquecer os uniformes prisionais e os números de processo – lá dentro elas não
têm nomes, mas números.
Rafael Roza,
advogado criminalista da Casa Flores, uma organização sem fins lucrativos que
trabalha a favor das mulheres em situação de vulnerabilidade, esclarece que em
São Paulo existem dois tipos de pecúlio. Um deles é o valor que a presa recebe
pelo trabalho realizado dentro da prisão, e o outro é o dinheiro enviado por
familiares para ajudar no sustento durante o período de encarceramento.
“Em algumas saídas temporárias, as famílias
precisam enviar dinheiro à penitenciária para que a pessoa presa consiga pegar
o ônibus de volta para casa. Se esse dinheiro não for enviado, muitas vezes ela
não consegue sair.”
VIA-SACRA DE ACESSO
A UM DIREITO
Na saída temporária
de 23 de dezembro, no ano passado, a Secretaria de Administração Penitenciária
do Estado de São Paulo (SAP-SP) entregou cheques com o pecúlio e R$ 10 em
dinheiro — algo inédito, resultado da pressão de movimentos sociais. Foi a
primeira vez que as presas receberam qualquer valor em espécie. Mas, para
muitas, os R$ 10 não cobrem a viagem até suas casas. O cheque cria mais
barreiras: descontá-lo exige ir até uma agência bancária da Caixa Econômica
Federal com documento de identidade em mãos.
Em outubro de 2024,
o Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública de
SP realizou uma inspeção surpresa no CPP do Butantã e concluiu que “não há estação
de metrô próxima da casa prisional, apenas algumas linhas de ônibus”. Além
disso, o relatório destaca que “não há agências bancárias nas imediações, a
mais próxima fica, segundo sites de pesquisa, a aproximadamente 1,6 quilômetros
de distância”.
Solicitamos à SAP
informações sobre o valor insuficiente de R$ 10, a distância das agências
bancárias e também a dificuldade de falar ao telefone. Em nota, a secretaria
afirmou que as denúncias “não procedem” e “o valor oferecido (de R$ 10) é mais
que suficiente” para chegar ao metrô Butantã, onde há uma agência bancária, com
opções de ônibus a partir de R$ 5. A SAP também ressaltou que o cheque do
pecúlio pode ser descontado em qualquer agência do Banco do Brasil. Sobre
falhas no atendimento telefônico, a Polícia Penal explicou que o problema
ocorreu devido a uma modernização do sistema eletrônico e informou que
“disponibilizou o e-mail peculio@pfbutantan.sap.sp.gov.br para agendamentos e
outras informações sobre o pecúlio“.
No dia 12 de
fevereiro, véspera da publicação desta matéria, a reportagem da revista AzMina
tentou contato com os dois telefones indicados para agendamento do saque do
pecúlio: 11 3782 8267 e 11 3782 8181. Ambos tocam duas ou três vezes, e em
seguida a chamada é encerrada. Ao longo desta apuração, iniciada em dezembro de
2024, fizemos várias tentativas em horários diversos, nenhum deles funciona.
FIM DO PASSE LIVRE
É MAIS UMA BARREIRA
A coordenadora da
“Por Nós”, Lay Venancio, relata que elas saem das prisões com o salvo-conduto
ou o alvará de soltura, que, antes, poderia ser usado como passe livre no
metrô, mas agora, não é mais possível. Sem conhecer a cidade, sem familiares
por perto ou telefone celular, muitas gastam o primeiro dia de ‘liberdade’
tentando se locomover.
O relatório da Defensoria
cita o caso de uma mulher que, sem dinheiro, precisou pegar emprestado e “foi
presa no Tietê por quebra da portaria” (ocorre quando é descumprida alguma
condicionante da saída temporária, como circular fora da delimitação geográfica
e do horário permitidos). Punições adicionais, disfarçadas de burocracia, são
parte da trajetória dessas mulheres, que já enfrentam o peso de uma sociedade
que as rejeita ao saírem das grades.
Lúcia* está presa
por tráfico de drogas e trabalha das 8h às 17h em uma empresa dentro do CPP de
São Paulo, com uma hora de almoço. Do valor do pecúlio, cerca de 10% é
descontado e só pode ser retirado ao término da pena. Além disso, há uma taxa
destinada à manutenção da prisão, como limpeza e alimentação. O restante pode
ser sacado durante as saídas temporárias.
A REALIDADE DO
CÁRCERE DESAFIA O SENSO COMUM
Na saída de
dezembro de 2024, Lúcia recebeu três cheques — dois de R$ 500 e um de R$ 490 —
além de R$ 10 em espécie. Os valores correspondem ao trabalho realizado em
setembro, outubro e novembro. Embora trabalhe mais de oito horas por dia, ela
desabafa que recebe menos que um salário mínimo por mês. “O Estado dificulta
cada vez mais a vida das mulheres encarceradas. Ele pode fazer algo melhor, mas
não faz porque, para ele (o Estado), não é interessante”, pontua o advogado
Rafael Roza.
Entre as mulheres
ouvidas pela nossa reportagem: Cristilane trabalhou por meses, mas a falência
da empresa dentro do presídio a deixou sem salário e sem o pecúlio; Paula saiu
do sistema, mas encontrou na burocracia mais um obstáculo para receber o valor
a que tinha direito; e as que deixaram as prisões durante as saídas temporárias
enfrentaram dificuldades logísticas para descontar cheques que, muitas vezes,
não cobrem os gastos que elas têm nos dias em liberdade.
Para Juliana
Teixeira, professora adjunta da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), essa
falta de acesso a direitos reflete uma lógica punitivista profundamente
enraizada. Vivemos um momento de extremismo, opina Juliana, onde as pessoas são
classificadas como boas ou más, muitas vezes sob influência religiosa — e isso
inclui os aplicadores do Direito. “Tudo ainda é regido pela ideia de que, se a
pessoa está privada de liberdade, deve ser punida, não importa o crime que
cometeu”.
*Nomes
fictícios para preservar a identidade e por segurança, conforme solicitado
Fonte: AzMina
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