Luiz Marques: A
história em aberto
Na Antiguidade, predominava uma concepção
de experiência histórica com alternância entre a glória e os desastres
sucessivamente. Um sinal para o vencedor jamais se vangloriar das conquistas
por arrogância, impiedade ou revanchismo. Melhor refletir a cada momento e
circunstância sobre o oposto da fortuna; o infortúnio. A história tem a
oscilação da gangorra, que ora sobe e ora desce por uma lei natural. Era fácil
prever o futuro por inferência a partir do passado. Bastava olhar para trás.
Já para aqueles que escreveram o
primeiro Testamento bíblico só o Senhor pode revelar
por meio de seus profetas o futuro, à revelia do passado. Só o Todo-Poderoso
conhece o que ainda vai acontecer. Judeus e cristãos interessam-se pela
salvação; uma dádiva divina na dependência da fé e da conduta pessoal. Mais
tarde talvez viesse a recompensa. Como prega o ditado, o futuro pertence a
Deus.
Modernamente a história é percebida como um
palco de disputas decididas pela virtú dos
atores. Os sujeitos dos acontecimentos para o bem ou o mal; conservar ou
modificar o status quo. O caminho é feito ao andar, palmo a palmo. O preço por
definir o destino é assumir uma plena responsabilidade pelas inesperadas
consequências de nossos próprios atos. De boas intenções, o inferno está cheio.
Vide Ruy Barbosa, nomeado ministro da
Fazenda e da Justiça da República do Brasil, em 1889. Zela pela moralidade
pública, ao incinerar os documentos que denunciavam a procedência de cada
escravizado. Foi a maneira encontrada para evitar as indenizações exigidas
pelas elites com a perda de “propriedades”, na Abolição. Não tinham os
registros para provar. Em contrapartida, a origem étnica dos libertos virou
cinzas; os afro-descendentes perderam toda memória dos ancestrais. “A história
do mundo é o tribunal do mundo”; um tribunal que julga e condena pelas
consequências.
<><> Democracia
iliberal
O inominável recita o slogan “O Brasil
acima de tudo. Deus acima de todos”. Mas o protagonismo no golpe ao Estado de
direito, com a investigação da Polícia Federal formalizada pela
Procuradoria-Geral da República (PGR), atesta seu envolvimento para atender os
interesses particulares e os da famiglia; não
as demandas do Brasil ou de Deus. A epopeia bolsonarista associa os crimes
típicos da acumulação primitiva do capital a uma personalidade sociopata, para
o retrocesso civilizacional. Contudo, o castigo bate à porta. “Nada como um dia
indo atrás do outro vindo”, festeja o poeta.
O bolsonarismo nasce da costela do
trumpismo; a continência à bandeira estadunidense fala por si. Hoje o
neoliberalismo anda de mãos com o neofascismo para implantar a “democracia
iliberal”, na expressão do primeiro-ministro Viktor Orbán ao expor o projeto de
governança para a Hungria. A diferença é que Donald Trump age com propósitos
grandiosos aos Estados Unidos (America First); não
para destruir a nação. Benjamin Netanyahu apoia-se no futurismo e no
nacionalismo religioso. “Conclamarás povos que nunca conheceste, nações que te
ignoravam acorrerão para ti, por causa do Senhor teu Deus e do Santo de Israel
que fará tua glória” (Isaías 54:5). As vítimas são testemunhas.
O trumpismo, que soa como um
“nacional-capitalismo”, não impede a concentração de riquezas. A estagnação
econômica do reaganismo frustra o sonho de prosperidade. Para centristas não é
o fim do ciclo pós-guerra, gerado no Estado com a “revolução social-democrata”.
O programa não estaria concluído. O modelo de socialismo democrático, ensaiado
até os anos 1970, poderia se desenvolver em escala mundial agora. Aos crédulos,
desculpas. Não é crível que a sublevação de massas, contra o rentismo
financeiro e a hecatombe climática, resgatem um pacto da sociedade industrial
firmado entre as classes sob a ideologia de valorização do trabalho, e não da
precarização e terceirização.
Mais realistas são os intelectuais de
esquerda que saúdam uma visão antifascista e anticapitalista. “Não é uma
limitação, e sim uma condição fundamental para entender a lógica do
autoritarismo reacionário, bem como para pensar as formas de combatê-lo”,
salienta Michael Löwy, em artigo recente.
Mudanças radicais precisam se inspirar nas revoltas fundantes da democracia
direta e participativa, impulsionando os “conselhos”, os “sovietes”, as
“comunas”.
<><> Questão do
método
Conforme Györg Lukács observa, em História e
consciência de classe: “O marxismo ortodoxo não significa uma
adesão sem crítica aos resultados da pesquisa de Marx, não significa uma ‘fé’
numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro ‘sagrado’. A ortodoxia em
matéria de marxismo refere-se, exclusivamente, ao método”. O final da aventura
é uma incógnita, ainda que alguns vejam no marxismo elementos científicos
relevantes, escatológicos no enquadramento, proféticos na atitude.
O certo é que as opções
teórico-metodológicas de análise importam mais que as projeções sobre um finis ou
um télos para o tempo. A filosofia da história que substitui a
teologia da história mantém, em comum, a preocupação em transportar a idade de
ouro do passado mitológico para um futuro teleológico ou escatológico. O
problema é que não capta a dúvida presente na nova mentalidade.
Que historiadores gregos descrevem a
história centrada em eventos notáveis, é incontestável. Que padres baseados em
profecias hebraicas focam eventos supra-históricos, a criação, a encarnação, é
hábito antigo. Que a secularização dos princípios teológicos permite aplicá-los
a um número maior de fatos empíricos, é passível de verificação. A contribuição
dos modernos consiste em pôr tudo no liquidificador, com desconfiança.
“Suspeição” é o método legado por Marx, Nietzsche e Freud para ir além das
aparências adotadas pela sociedade, pela cultura e pelos indivíduos
respectivamente.
Decifrar o futuro com cálculos ou apelar à
cartomancia esbarra na liberdade para arriscar soluções inventivas na
reconstrução do mundo, qual a razão contemporânea é capaz de conceber através de
uma práxis política. É fazer o holocausto prévio do livre-arbítrio, o que é
indesejável e implausível. A participação dos partidos, movimentos e classes
sociais é o que existe de concreto. Emancipar-se via o autodesenvolvimento
individual e coletivo é uma possibilidade, ao revés de um determinismo. Não há
certezas. A luta decide quem são os virtuosos, da hora. Mas a história
permanece em aberto.
¨ O mapa nunca antes visto que prometia trazer paz ao
Oriente Médio
"Você não irá
encontrar, nos próximos 50 anos, um líder israelense que proponha o que vou
propor agora."
"Assine!
Assine e vamos mudar a história!"
O ano era 2008. O
então primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert,
implorava ao presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas,
que assinasse uma proposta de acordo. Olmert acreditava que aquele acordo
poderia trazer a paz para o Oriente Médio.
Era uma solução de dois Estados – uma
proposta que parece impossível hoje em dia.
Se fosse
implementado, o acordo criaria um Estado palestino em mais de 94% da
Cisjordânia ocupada.
O mapa traçado por
Olmert, agora, é quase mitológico. Surgiram diversas interpretações ao longo
dos anos, mas ele nunca o revelou para a imprensa.
Até agora.
Israel and the
Palestinians: The Road to 7th October ("Israel e os palestinos: o
caminho para o 7 de outubro", em tradução livre) é a nova série documental
da cineasta americana Norma Percy, que estreou na BBC na segunda-feira (24/2).
Nela, Olmert revela
o mapa que ele afirma ter mostrado a Mahmoud Abbas em uma reunião em Jerusalém,
no dia 16 de setembro de 2008.
"Esta é a
primeira vez que mostro este mapa para a imprensa", conta ele aos
cineastas.
Olmert mostra, em
detalhes, o território proposto para anexação a Israel – 4,9% da Cisjordânia. A
área teria incluído os principais blocos de assentamentos judeus, da mesma forma
que as propostas anteriores, no final dos anos 1990.
Em troca, o
primeiro-ministro afirma que Israel entregaria um pedaço de território
israelense de igual tamanho, além do restante da Cisjordânia e da Faixa da Gaza. Os dois
territórios palestinos seriam conectados por um túnel ou autoestrada – outro
ponto que já havia sido discutido anteriormente.
No filme, Olmert
relembra a reação do líder palestino. "Ele disse: 'Primeiro-ministro, isso
é muito sério. É muito, muito, muito sério."
Além disso, o plano
de Olmert também incluía uma proposta de solução para a espinhosa questão de
Jerusalém.
Cada um dos lados
poderia reivindicar partes da cidade como sua capital. Já a administração da
"bacia sagrada" (que inclui a Cidade Velha, com seus locais
religiosos e áreas próximas) seria entregue a um comitê de guardiões, composto
por Israel, Palestina, Arábia Saudita, Jordânia e os Estados Unidos.
As consequências do
mapa teriam sido colossais para os assentamentos judeus. Se o plano tivesse
sido colocado em prática, dezenas de comunidades, espalhadas por toda a
Cisjordânia e pelo vale do rio Jordão, teriam sido evacuadas.
Quando o
primeiro-ministro israelense anterior, Ariel Sharon (1928-2014),
removeu à força milhares de colonos judeus da Faixa de Gaza, em 2005, a direita
de Israel considerou a medida um trauma nacional.
A evacuação da
maior parte da Cisjordânia teria representado um desafio infinitamente maior.
Ela teria envolvido dezenas de milhares de colonos, com grandes riscos de
violência na região.
Mas o processo
nunca chegou às vias de fato.
No final da reunião,
Olmert se recusou a entregar uma cópia do mapa para Mahmoud Abbas, a menos que
o líder palestino assinasse o acordo. Mas Abbas não assinou.
Ele respondeu que
precisava mostrar o mapa para seus especialistas, para ter certeza de que eles
entenderiam exatamente qual era a oferta apresentada.
Olmert declarou que
os dois concordaram em realizar um encontro entre os cartógrafos no dia
seguinte. "Nós fomos embora, sabe, como se estivéssemos a ponto de dar um
passo histórico adiante", ele conta. Mas a reunião programada nunca
aconteceu.
O chefe de gabinete
de Abbas, Rafiq Husseini, relembra a atmosfera no carro quando eles saíram de
Jerusalém naquela noite.
"É claro que
nós rimos", diz ele no documentário.
Os palestinos
acreditavam que o plano era impraticável. Afinal, Olmert estava envolvido em um
escândalo de corrupção, sem relação com o acordo proposto. Ele já havia
anunciado seus planos de renunciar ao cargo.
"Infelizmente,
Olmert, por melhor que fosse... era um 'pato manco' [um governante que estava
prestes a deixar o poder]", relembra Husseini. "Por isso, não iríamos
a lugar nenhum com aquilo."
A situação na Faixa
de Gaza era outro fator complicador. No final de dezembro de 2008, após meses
de ataques com mísseis disparados do território controlado pelo Hamas, Olmert
ordenou um forte ataque israelense – a chamada Operação Chumbo Fundido. Foram
três semanas de intensos combates.
Mas Olmert acredita
que Abbas teria sido "muito inteligente" se assinasse o acordo. Para
ele, se um primeiro-ministro israelense posterior tentasse anulá-lo, "ele
poderia dizer ao mundo que o fracasso foi culpa de Israel".
As eleições
israelenses ocorreram em fevereiro de 2009. Benjamin Netanyahu, do partido
Likud, era declaradamente contrário ao Estado palestino e se tornou primeiro-ministro.
O plano e o mapa de Olmert saíram de cena.
O
ex-primeiro-ministro declarou que aguarda até hoje a resposta de Abbas. Mas,
desde então, seu plano se juntou a uma longa lista de oportunidades perdidas
para pôr fim ao conflito entre israelenses e palestinos.
Em 1993, o
ex-diplomata israelense Abba Eban (1915-2002) brincou que os palestinos
"nunca perdem a oportunidade de perder uma oportunidade". E, desde
então, as autoridades israelenses vêm repetindo frequentemente esta frase.
Mas o mundo é mais
complicado do que isso, especialmente depois que os dois lados assinaram os
históricos Acordos de Oslo, em 1993.
O processo de paz
selado por um aperto de mãos nos jardins da Casa Branca, entre o
ex-primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin (1922-1995) e o então líder
palestino Yasser Arafat (1929-2004), trouxe momentos de verdadeira esperança,
mas que foram marcados pela tragédia. E, por fim, o acordo acabou sendo um
fracasso.
Os motivos são
complexos e existem muitos culpados. Mas a verdade é que o alinhamento dos
astros nunca foi perfeito nesta questão.
Presenciei
pessoalmente esta falta de alinhamento, 24 anos atrás.
Em janeiro de 2001,
no resort egípcio de Taba, negociadores israelenses e palestinos novamente
tiveram o vislumbre de um acordo.
Um membro da
delegação palestina traçou um mapa aproximado em um guardanapo. Ele me disse
que, pela primeira vez, estavam sendo examinadas as fronteiras gerais de um
Estado palestino viável.
Mas as negociações
foram inúteis. Elas foram abafadas pela violência que irrompia nas ruas da
Cisjordânia e da Faixa de Gaza, onde o segundo levante palestino – ou
"intifada" – havia explodido em setembro do ano anterior.
Novamente, Israel
estava em meio a uma transição política. O então primeiro-ministro Ehud Barak
já havia renunciado e Ariel Sharon (1928-2014) venceu as eleições com folga,
algumas semanas depois.
O mapa no
guardanapo – como o de Olmert, quase oito anos depois – mostrava o que poderia
ter acontecido naquela ocasião.
¨
Presidente dos EUA divulga vídeo fake de IA que mostra
Faixa de Gaza como resort e estátua gigante de ouro
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, divulgou nesta quarta-feira (26) um vídeo gerado por inteligência
artificial que mostra uma transformação da Faixa de Gaza em um complexo de resorts — uma proposta que Trump
anunciou no início de fevereiro como a "Riviera do Oriente
Médio" .
Com a legenda "Gaza 2025", a montagem
exibe também uma estátua gigante de Trump em ouro no meio de uma rua, o premiê
israelense Benjamin Netanyahu tomando drinque em uma piscina e Elon Musk distribuindo dólares a crianças em uma praia.
Prédios altos, praias tomadas por cadeiras e
tendas, iates ancorados na costa e pessoas celebrando nas ruas também fazem parte
do vídeo. A trilha
sonora é uma música, em inglês, com dizeres como "Trump vai te
libertar".
O vídeo começa com a imagem de uma criança agachada
em meio a escombros, em referência à guerra entre Israel e Hamas na Faixa de
Gaza. Homens armados parecem consolar o menino, que corre no meio dos destroços
em uma cena legendada pelos dizeres "O que vem depois", escritas com
as cores da bandeira norte-americana.
Soldados então caminham em um túnel que desemboca
prédios altos e andaimes, sugerindo muitas construções. Na sequência, uma
mulher com crianças também atravessa um túnel que desemboca em uma praia com palmeiras e uma série de
arranha-céus.
As imagens que se sequem no vídeo exibem ruas
turísticas e asfaltadas e praias tomadas por espreguiçadeiras e iates
atracados. Um Elon
Musk relaxado em Gaza surge então na montagem sorrindo e comendo.
Homens e mulheres dançam na areia vestidos de odaliscas.
Em uma rua com mesquitas, um menino segura um balão com o rosto
de Donald Trump, que na sequência aparece em uma discoteca dançando com uma mulher e
segurando em seus braços — esposa de Trump, Melania Trump,
não aparece no vídeo.
Musk
resurge, agora jogando notas de dólares para cima em uma praia, enquanto é aplaudido por pessoas sentadas com taças de espumante ao lado.
Crianças tentam pegar o dinheiro na montagem, que exibe finalmente a entrada de
um prédio com o seguinte letreiro: "Trump Gaza".
Na sequência, uma estátua gigante de Donald Trump
aparece erguida no meio de uma rua.
O vídeo termina com imagens, também de IA, de Trump e Netanyahu estirados sobre uma
espreguiçadeira em uma piscina de resort. Uma placa "Trump
Gaza" aparece atrás dos dois, que seguram copos com bebidas.
A montagem foi divulgada por Trump nesta madrugada,
em sua rede social Truth Social. O presidente dos EUA não fez nenhum comentário
na postagem. Mas, ao receber o premiê israelense em Washington no início do
mês, defendeu que os EUA ocupem a Faixa de Gaza após o fim da guerra e
transformem o território palestino em uma espécie de "riviera do Oriente
Médio".
A proposta do presidente dos EUA, que também
envolve expulsar todos os moradores da Faixa de Gaza de seu território, causou forte indignação
entre a comunidade internacional. Diversos
líderes criticaram a ideia, e a agência de direitos
humanos da ONU disse que expulsar palestinos de Gaza seria um crime de guerra.
Em 15 meses de conflito, a guerra entre Israel e o
Hamas na Faixa de Gaza, que começou em outubro de 2023, já deixou mais de 48
mil mortos no território palestino, segundo o Ministério da Saúde de Gaza,
controlado pelo Hamas.
Fonte: A Terra é
Redonda/BBC News/g1
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