quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025


 

A bravata como peça fundamental da trama golpista e a insistente penumbra dos militares

Luz e sombra. Composição básica da imagem. Para se destacar um elemento é necessário colocar outros em segundo plano. A sombra é comumente caracterizada como uma distorção da imagem, e até mesmo, como uma ilusão ou deturpação da verdade em termos filosóficos. Esquecemos assim, que a sombra é parte, carrega reflexos verdadeiros da imagem submetida a luminosidade. Sombra nem sempre é mentira. A denúncia apresentada pelo MPF que imputa a Jair Bolsonaro e seus ministros militares uma tentativa de golpe de estado, revela como a extrema direita articulou o processo golpista inclusive publicamente. Desvanece como a tática da bravata era parte de uma trama golpista estruturada.

A denúncia apresentada por Paulo Gonet imputa a Jair Bolsonaro, importantes generais das Forças Armadas, como dos Gen. Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, dentre outros, e figuras centrais do governo como Anderson Torres, a formação de organização criminosa para a tentativa de golpe de estado, com a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de destituição de governo legitimamente eleito (arts. 359 M e L do Código Penal) e outros crimes.

É um fato histórico sem precedentes no Brasil a denúncia e possibilidade de julgamento de militares por sua intervenção política, em especial por Golpe de Estado. Não foram poucos os Golpes e as tentativas organizadas ao longo de toda a República. Assim como a prisão preventiva de Braga Netto, esse processo inaugura um novo ineditismo. No entanto, precisamos ficar atentos para os limites que essa responsabilização ainda representa no quadro geral, com limitação dos militares a serem punidos e sem um processo de imputação e reflexão mais profunda sobre o papel das Forças Armadas na política brasileira.

Chama particular atenção na petição a utilização de discursos públicos proferidos pelo presidente, assim como reuniões e manifestações públicas (especialmente pelas redes sociais), como parte do conjunto probatório da articulação golpista. A organização da desinformação sobre a lisura das urnas eleitorais, bem como os atos e acampamentos em frente a quartéis do Exército, não foi aleatória (como se previa). Ou seja, o argumento de que “ninguém avisa que vai dar um golpe se realmente esse for seu intuito”, apresentado por parte dos analistas, revelou-se equivocado, uma vez que o MPF descreve como essas falas públicas eram parte central da articulação golpista.

Portanto, esses são os dois elementos que serão analisados no presente artigo. O primeiro é como a trama golpista contava com um instrumental no qual a bravata desempenhava um papel fundamental; longe de ser loucura, era uma peça essencial da articulação golpista. O segundo é a tática utilizada para estancar e limitar o peso institucional das Forças Armadas nesse processo.

·       A organização do Golpe de Bolsonaro e militares

O 8 de janeiro de 2023 foi o desfecho final da tentativa de golpe, sua última cartada.  Fez parte de uma teia que estava sendo tecida, ao menos, desde 2021 publicamente. A denúncia do MPF apresentada na terça-feira, dia 18 de fevereiro, revela como foi articulado no núcleo central do governo a tentativa golpista e, sobretudo, aponta como a sua costura passou por diversos testes. Dentre os desafios, estava conseguir um arco significativo de adesão de setores estratégicos para o golpe, incluindo adesão completa das Forças Armadas.

Em um artigo sobre o 7 de setembro de 2022[1], aponto como Bolsonaro fazia o que compreendia como eventos-teste, ou seja, ensaios para o golpe, nos quais também buscava provocar deslocamentos de setores das Forças Armadas, testando exatamente até onde esses iriam. O chamado constante a uma eventual necessidade de intervenção das Forças, o deslocamento de um ensaio para a frente do Congresso no dia da votação do voto impresso e a participação direta de Pazuello em uma manifestação enquanto ainda estava na ativa são alguns exemplos desse processo de medição da subserviência do Exército ao seu governo. Essa submissão foi significativa, evidenciada pelo aparelhamento do Estado pelos militares, que ocuparam quase 7 mil cargos no governo, segundo o TCU.

A disputa em relação à adesão completa das Forças Armadas se inicia de forma mais evidente desde abril de 2021, quando da alteração do Ministério da Defesa com a saída de Fernando Azevedo e os três comandantes militares (marinha, aeronáutica e exército). Naquela ocasião, havia aderência destes ao governo Bolsonaro, inclusive com uma reverência ao período da ditadura também por esses comandantes (basta lembrar da defesa realizada por eles em mensagem pública, Ordem do Dia, em 31 de março dos anos anteriores). Mas também existiam disputas internas e nuances em relação a determinadas políticas, como a condução negacionista da pandemia.

A opção de colocar Pazuello, ainda na ativa, à frente do Ministério da Saúde, era também a de atrelar o Exército, institucionalmente, aos resultados obtidos, no caso, a condução mortífera adotada. De igual modo, a sua participação na “Motociata” no RJ, ao lado de Bolsonaro, que resultou em processo administrativo militar com absolvição, também foi uma forma de testar esse poder e esse apoio. A cúpula das forças iria cumprir o regimento e aplicar sanção a Pazuello ou se submeter ao comando do presidente da república como chefe supremo das Forças, inclusive acima da lei? A resposta foi a segunda opção. Bolsonaro se fortaleceu.

De igual forma, a indicação do Gen. Paulo Sérgio Nogueira, na comissão interna do TSE que iria apurar a lisura das urnas eletrônicas durante as eleições de 2022, também era uma tentativa de vincular as Forças Armadas ao processo golpista. A perspectiva era de conseguir forjar um relatório que provaria fraude nas urnas. No entanto, não havia elementos para tal e eles também não foram capazes de forjá-los.

Vincular cerca de 7 mil militares da ativa em cargos comissionados e mudar a legislação permitindo que militares da ativa não tivessem mais o limite de 2 anos para permanecer nesse tipo de cargo, também foi uma tentativa de domínio e cooptação.

Ressalta-se ainda, o relevante papel das polícias militares nesse processo. A base policial é um setor fundamental da composição social do Bolsonarismo. Ela se mobilizou e se articulou em torno de sua candidatura. Tiveram tensões e dificuldades com essa base social em relação à perspectiva de um piso nacional dos policiais que não foi assegurado por Bolsonaro. No entanto, esse se manteve um dos setores mais fiéis, inclusive protagonizando um dos episódios mais importantes da queda de braço entre Bolsonaro e governadores estaduais, em especial ao Dória. As manifestações do 7 de setembro de 2022 mobilizaram a base social das PM´s e Dória chegaram a proibir a participação destes por ser um setor armado. Os PM lançaram uma carta da sua associação nacional, apontando que em polêmica entre o secretário de segurança estadual e as Forças Armadas, esses seguiram as Forças Armadas.

Não é, portanto, circunstancial o papel essencial de Anderson Torres à frente da segurança pública do DF no 8 de janeiro, dando apoio policial à operação. Ele foi posicionado como secretário de segurança também para cumprir esse papel.

Esses são alguns exemplos de como essa relação foi sendo construída ao longo do governo Bolsonaro. Um setor orgânico ligado ao governo, liderado pelo Gen. Braga Netto e Heleno, que tentavam sanar as disputas internas e dirigir os militares em um único sentido.

Embora com nuances e algumas resistências, não houve, em relação à questão do avanço autoritário e do papel das Forças Armadas, organização de nenhum setor interno no sentido contrário do que apontava o governo. A tônica das instituições militares durante o comando de Bolsonaro foi, portanto, de adesão, embora com algumas disputas internas entre grupos, assim como resistências pontuais a encaminhamentos mais polêmicos e com grande chance de insucesso, como a estratégia golpista arquitetada (inclusive pela falta de apoio externo de Biden a proposta golpista).

Não parece correto aventar que havia uma ala democrática propriamente dentro das Forças Armadas que resistiram ao golpe. O que eles pareciam resistir era ao grupo dirigente do golpe e as condições naquele momento adversas para o apoio interno e externo necessário para a sua realização com êxito. Com essa estratégia busca-se, novamente, localizar num grupo particular das Forças Armadas a premissa golpista e manter o poder e os privilégios, inclusive da intervenção política dos militares intacta.

Nesse sentido, embora pareça um processo de mediação do Gonet (PGR) frente às instituições militares, inclusive como possível estratégia para viabilizar a condenação de um grupo significativo de generais sem que haja uma insurreição militar, não parece adequado a atribuição, que Gonet aponta em sua peça de acusação, de que as Forças Armadas também foram “vítimas” desse grupo, argumentando que aqueles que resistiram foram atacados nas redes sociais e sucessivamente intimidados para a tentativa de golpe.

De igual modo, o grupo que se consolidou como dirigente militar no processo do governo, Gen. Heleno e Braga Netto assumiram a arquitetura golpista com certeza de impunidade. Nesse sentido, é muito relevante a denúncia e a provável condenação de setores militares pela tentativa de golpe. É realmente algo inédito e histórico, que precisará também de mobilização social para se realizar.

Mas é notório também que essa responsabilização estará limitada ao setor mais dirigente desse processo nas Forças. Os comandantes da aeronáutica e do Exército que assinaram a carta defendendo os acampamentos em frente aos quarteis foram absolvidos na denúncia do MPF sob a alegação de que agiram sob coação do presidente. Alegação essa que não havia sido apresentada nem por Gomes Freires em seus depoimentos logo após o 8 de janeiro. Esse processo, mantém a política organizada por Múcio desde o princípio, de acordar com as Forças Armadas uma punição limitada e que não interfere nos privilégios e poderes institucionais destas. A velha máxima de perder os anéis para não perder os dedos. De iluminar uma parte da história para poder manter na penumbra outra de igual relevância.

·       A bravata como política da Extrema Direita

A denúncia do MPF atribui destaque para a construção pública do golpe. Os discursos de Bolsonaro nas lives, nas manifestações de rua, a incitação nas redes sociais contra o STF e a lisura das urnas eletrônicas, assim como diversas formas de mobilização das manifestações antidemocráticas nos quartéis, foram além do conluio para o assassinato do Presidente Lula, do Ministro Alexandre de Morais e do Vice-Presidente Alckmin. Elas buscavam a adesão massiva de movimento social de natureza fascista.

No entanto, as condições para a tentativa golpista passavam necessariamente por deslocamentos que precisavam da disputa pública para ocorrer. E faz parte da forma de disputa de narrativa da extrema direita essa construção de mudança dos padrões do discurso através de defesas que parecem absurdas e meras bravatas, mas são estratégicas para a disputa política e, nesse caso, para a organização do golpe. Todos os sinais dessa tentativa foram anunciados pelos próprios executores da trama. A incredulidade das instituições e da sociedade como um todo, contribuiu para que essa narrativa pudesse se manter sem interrupção até seu desfecho.

Mais do que uma tática utilizada apenas nessa circunstância, é preciso notar que esse jogo é fundamental na arquitetura narrativa da extrema direita como um todo. No Brasil e no mundo. O absurdo ganhou forma na política contemporânea, e por mais que pareça ficção, ele faz parte da disputa das ideias. Só porque parecem bravatas, um show fantasioso, é que são permitidas, inclusive pela institucionalidade. A realidade é jogo de luz e sombra, e colocar luz sobre o que deveria ficar nas sombras, ajuda a confundir, a embaralhar o jogo.

Bolsonaro buscou consolidar ao longo do seu mandato uma base social de natureza fascista. A declaração do STF como seu inimigo público, que impedia o seu governo de realizar suas políticas, assim como seu discurso ultraconservador que buscava o aniquilamento de setores sociais, tinha o intuito de construir uma base fiel e cada vez mais radicalizada.

A disputa em torno dos princípios de liberdade e democracia ajudou a coesionar sua base social. Esse processo manteve, mesmo estando no governo, um movimento político mobilizado e cada vez mais fascistizado. A construção autoritária demandava apoio e não era circunstancial. Não era apenas bravata; eles realmente acreditavam na narrativa de fraudes e na possibilidade de uma intervenção militar. Ao longo de dois anos, buscaram construir socialmente a saída golpista e o fizeram publicamente, embora a grande mídia considerasse esse discurso fantasioso para sua base. Era uma mentira, mas eles estavam dispostos a cumprir o que diziam — e a história mostrou isso.

·       Considerações finais

Desde o Golpe de 2016 temos uma mudança significativa na institucionalidade brasileira. O frágil pacto da nova república se rompia. O parlamento alterou a divisão dos poderes, ganhando cada vez mais força e os militares ganharam novo destaque na cena política nacional.

A eleição de Bolsonaro é um novo marco nesse caminho, que previa ainda um novo momento disruptivo com a construção de um Golpe de Estado pós eleições de 2022, um fechamento de regime agitado desde o ano anterior. As bravatas eram reais, eles estavam dispostos a dar esse passo.

A denúncia apresentada pelo MPF é um marco histórico na república brasileira, podendo realizar a punição de militares por tentativa de golpe de Estado. Mas também não avança em mudanças na relação destes com a política, absolvendo atores importantes das Forças Armadas.

Por isso jogo de luz e sombra, no passado e no presente. Tanto o de exagerar na luz para parecer que não se esconde nada, quanto o de manter aspectos, que deveriam ser revelados, na escuridão.


Nenhum comentário: