quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Nina Lemos: Se só jovens votassem na Alemanha, chanceler federal seria de esquerda

A Alemanha vive uma virada política para a direita. O candidato vencedor das eleições federais realizadas no domingo é Friedrich Merz, um conservador da União Democrata Cristã (CDU) de 69 anos. Merz é um retrato perfeito da política à moda antiga: branco, mais velho, católico e conservador nos costumes. Em outras palavras, um careta.

Mas tudo seria bem diferente se só os jovens votassem. As estatísticas mostram que, entre os eleitores de 18 a 24 anos, o partido mais votado foi A Esquerda, e sua candidata principal, Heidi Reichinnek, uma deputada antifascista e feminista de 36 anos, que é uma das causas do sucesso. Se só os jovens votassem, a moça tatuada e com discurso forte seria a chanceler federal da Alemanha.

Entre os jovens com menos de 25 anos, a Esquerda teve 25% dos votos. Em segundo lugar, está o partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), com 21%.

A AfD e A Esquerda não têm nada em comum ideologicamente, pelo contrário, eles são oponentes que representam lados opostos do pêndulo político. Mas os dois partidos são aqueles que conseguiram dominar as redes sociais, principalmente o TikTok. E esse, com certeza, é um dos motivos para o bom resultado deles com os jovens, que são influenciados pelos conteúdos da rede dos vídeos curtos.

O sucesso da AfD nas redes sociais não é novidade e já preocupava o campo democrático há tempos. Eles dominam as redes com tanta maestria que, em alguns ciclos de jovens, votar para a AfD, um partido de ultradireita, com pauta xenófoba e ligação com neonazistas, virou algo cool, quase uma modinha.

·        Poder das redes sociais

Claro, o sucesso nas redes não é a única razão para esse fenômeno triste. Sabemos que muitos jovens estão sem esperança e por isso procuram soluções radicais, que meninos se sentem apavorados em um mundo onde eles não são mais "o centro do universo" e se identificam com figuras como Donald Trump e Elon Musk.

Mas o poder das redes sociais, não pode ser ignorado, e é uma das causas do avanço da extrema direita mundo afora. O próprio Musk, dono do X, foi, inclusive, um dos maiores garotos propaganda da AfD nessas eleições e, além de fazer campanha em sua rede, chegou a fazer uma live com a candidata deles, Alice Weidel.

A AfD ter 21% da preferência dos jovens é assustador, mas esse é um dado que já era apontado pelas pesquisas e esperado. O surpreendente é que A Esquerda, que até poucos meses era vista como um partido praticamente obsoleto, tenha virado pop. E Heidi é a musa dessa cena.

Sua popularidade aumentou depois que um vídeo de um forte discurso dela contra Merz viralizou no TikTok e teve, até agora, mais de 860 mil likes só no seu perfil, que conta com 580 mil seguidores e 15,7 milhões de likes. Na fala, ela reage indignada ao fato de Merz ter aceitado o apoio da AfD para tentar passar um pacote anti-imigração no Parlamento alemão em janeiro.

"Eu não acredito que um partido democrata cristão rompa o cordão sanitário contra a extrema direita, e é isso que o senhor está fazendo hoje!", ela diz, batendo as mãos no parlatório. Ela encerra a fala citando versos da música Wehrt euch!(Resista), que se tornou um hino das manifestações contra o fascismo no país. "Resista contra o fascismo em nosso país. Às barricadas", ela diz ao encerrar. Após o discurso no parlamento, alguns gritam: "bravo!"

Em suas redes, ela faz discursos curtos e diretos, posta memes espertos, usa camisetas antifascistas e cita até músicas de Taylor Swift. Dá certo. Principalmente porque ela parece ser totalmente autêntica em suas falas e gostos.

·        Pagar de jovem

Enquanto A Esquerda e a AfD se deram bem nas redes e, por consequência, com os jovens, os partidos tradicionais não se adaptaram à era das mídias sociais e ficaram para trás na preferência desses eleitores.

Eles, assim como acontece também no Brasil com políticos tradicionais, até tentam fazer sucesso nas redes, mas acabam pagando mico parecendo "velho tentando pagar de jovem". Nada parece genuíno quando um político como Merz ou o atual chanceler federal, Olaf Scholz, do Partido Social Democrata (SPD), tenta pagar de descontraído. Eles ficam parecendo mais aqueles tios e pais que perdem a noção e fazem os filhos passarem vergonha nas festas. Não por acaso, os partidos mais tradicionais receberam poucos votos da juventude. O CDU ficou com 13% e o SPD com 12%.

Além do sucesso nas redes sociais, acredito que o fator "identificação" conte muito. Não deve ser fácil para os jovens se identificarem com figuras como Scholz e Merz, que parecem mais ser diretores das escolas onde estudam ou chefes (e não dos mais legais). "A Heidi é alguém que eu sinto que me representa", contou minha enteada de 18 anos, que votou pela primeira vez e escolheu A Esquerda.

¨      Esquerda é partido mais votado em Berlim; AfD vence no Leste

Minoritário no cenário nacional, o partido alemão A Esquerda (Die Linke) foi o mais votado em Berlim. Com 19,9% dos votos – um recorde para a legenda na cidade –, ela superou por estreita margem até mesmo os conservadores da União Democrata Cristã (CDU), vencedores da eleição geral deste domingo (23/02), mas preferidos por apenas 18,3% dos eleitores da capital alemã.

Com isso, A Esquerda terá seis dos 24 parlamentares eleitos por Berlim. No parlamento inteiro, os esquerdistas devem ocupar 64 das 630 cadeiras – a menor bancada do Bundestag.

O partido surpreendeu analistas que davam como certa sua trajetória rumo à irrelevância, mobilizando eleitores com uma campanha focada em temas sociais e na defesa da taxação de ultrarricos, mas também com uma oposição clara às políticas de migração defendidas pela CDU. Em Berlim, o partido também investiu em iniciativas de apoio a inquilinos pressionados pelo alto custo dos aluguéis na cidade.

Berlim é famosa nacionalmente pelo seu alto percentual de estrangeiros e alemães de ascendência estrangeira, que respondem por quase 40% da população.

A capital alemã, dividida em 12 distritos, foi palco da disputa regional mais acirrada da eleição. A Esquerda foi o partido mais votado em seis deles, cujo traçado coincide em boa parte com as fronteiras da antiga Berlim Oriental. A exceção ficou por conta do distrito periférico de Marzahn-Hellersdorf, no leste, onde a sigla de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) saiu na frente – pela primeira vez.

Do outro lado, na antiga Berlim Ocidental, os melhores resultados couberam aos conservadores da CDU. Ainda assim, eles ficaram abaixo da média nacional.

O resultado das eleições em Berlim não poderia ser mais diferente do resto da Alemanha: Esquerda com 19,9%, conservadores com 18,3%, Verdes com 16,8%, AfD com 15,2% e SPD com 15,1%. Já o nanico BSW, sigla populista de esquerda, teria presença garantida no parlamento, com 6,6%, se dependesse dos berlinenses. Já os liberais do FDP, com 3,8%, seriam banidos do Bundestag.

O mapa dos resultados eleitorais revela uma capital alemã claramente mais à esquerda que o resto do país, mas praticamente cercada por eleitores da AfD; a ultradireita anti-imigração só não foi mais popular em Potsdam. No resto de Brandemburgo, um em cada três eleitores depositou seu voto na AfD.

<><> Leste alemão, bastião da AfD, mas partido também avança no oeste

Apesar de a AfD ter ficado em segundo lugar nas eleições gerais, se dependesse somente do leste alemão, a legenda terminaria o pleito em primeiro lugar. Ela foi a mais votada na esmagadora maioria dos distritos, com exceção de três distritos nas regiões de Leipzig, Potsdam e Berlim.

Ali, na antiga Alemanha comunista, 36,6% dos eleitores escolheram a AfD – muito acima dos 20,8% conquistados no cenário nacional.

Já os três partidos que integraram a coalizão de governo derrotada neste domingo tiveram desempenho bem abaixo do resultado nacional: o SPD teve 10,8%, os Verdes saíram-se com 5,6% e o FDP, com 3,1% – um sinal claro de insatisfação do eleitorado.

Mas, pela primeira vez, a popularidade da AfD extrapolou as fronteiras do leste alemão, e começou a avançar em "cinturões de ferrugem" do oeste que vem sendo afetados pela desindustrialização.

O partido também foi o mais votado nos distritos de Kaiserslautern (25,9%), na Renânia-Palatinado, e Gelsenkirchen (24,7%), na Renânia do Norte-Vestfália. Neste mesmo estado, num distrito de Duisburg, um centro urbano qye vem sendo afetado pela perda de população nas últimas décadas, o partido perdeu por pouco para o SPD, mas ainda obteve uma votação significativa (24,6%).

Na Baviera, a AfD até obteve votações melhores que isso em três distritos, mas não conseguiu superar a popularidade da União Social Cristã (CSU), partido-irmão da CDU.

O crescimento da AfD na antiga Alemanha Ocidental, onde a legenda somou 18% (contra 20,8% a nível nacional), foi decisivo para a expansão da bancada no Parlamento.

A Renânia do Norte-Vestfália, por um exemplo, é um dos estados que também concentra um número acima da média de imigrantes. Ali, a AfD obteve 16,8% dos votos, 7,3% a mais que em 2021. Já na Baviera, esse número foi de 20,8% – o dobro de 2021, num resultado idêntico ao nacional.

A AfD foi bem-sucedida na mobilização de 2 milhões eleitores descrentes com o sistema político, que já não votavam mais em eleições. Também conseguiu convencer alguns que, na eleição de 2021, haviam apostado nos partidos tradicionais: tirou 1 milhão de votos dos conservadores, 890 mil dos liberais e 720 mil dos social-democratas. E até mesmo 210 mil ex-eleitores d'A Esquerda e dos Verdes migraram para a AfD.

 

¨      Quem é Heidi Reichinnek, a jovem porta-voz antifacismo na Alemanha. Por Ana Prestes

Para quem acompanha minimamente o cenário político da Alemanha, uma das questões mais intrigantes apresentadas nas recentes eleições parlamentares foi o surpreendente resultado obtido pelo partido Die Linke (A Esquerda). Em especial, porque o partido havia passado por um importante rompimento interno em 2023, impulsionado por divergências políticas e estratégicas acalentadas há anos. Por isso, surpreendeu em uma votação que chegou a 8,8% dos votos, com a conquista de 64 entre as 630 cadeiras do Bundestag (Parlamento) e a emergência de uma jovem líder: Heidi Reichinnek.

Candidata e co-líder do partido, formada em Ciência Política e estudos sobre o Oriente Médio, Heidi se tornou a mais expressiva voz do partido em janeiro deste ano, justamente quando explodiu na Alemanha o rechaço a uma aliança feita pelo CDU (União Democrata Cristã) com o AfD (Alternativa para a Alemanha) na votação de uma lei sobre imigração. Friedrich Merz, então líder do CDU, partido da ex-chanceler Angela Merkel, e que obteve a maior votação nas eleições do último domingo (23), realizou uma aliança com o partido neofascista e de extrema direita AfD para aprovação de um Plano Migratório de cinco pontos. Seu gesto, na prática, foi um rompimento de um cordão sanitário político estabelecido na Alemanha, desde o fim do nazismo, de isolamento da ultradireita.

A reação popular a esta aliança foi estrondosa e Heidi Reichinnek soube captar este sentimento e ser a porta-voz da indignação de milhões de alemães. Seu discurso de denúncia de Merz, por ter se unido à AfD para votar o plano migratório, alcançou mais de 6,5 milhões de pessoas. Sua principal conta nas redes, no TikTok, superou os 500 mil seguidores. Mais de 23 mil pessoas se filiaram ao partido desde janeiro, algo impensável nos últimos tempos, e a votação da sigla passou em três pontos a cláusula de barreira, que na Alemanha é de 5%, algo igualmente impensado. Os vídeos de Heidi superaram em visualizações os de Alicia Weidel, líder do AfD e que conduziu o partido neofascista aos 20% de votos para o parlamento.

Heidi, com seus 36 anos, com uma enorme tatuagem de Rosa Luxemburgo no braço e um contundente discurso antifascista, se posicionou bem contra a desfaçatez de Merz de pactuar com a AfD. Mesmo que tenha sido em uma única votação, como podem argumentar alguns, não foi qualquer votação, pois a questão migratória é hoje uma das mais sensíveis na Europa e não foi diferente na eleição alemã. Heidi, como porta-voz de uma juventude indignada, conseguiu fazer com que a maioria dos jovens entre 18 e 24 anos votassem no Die Linke. No seu mais impactante e viralizado discurso no Bundestag, em uma alusão à canção espanhola antifascista dos anos 1930, A Las Barricadas, disse: “A resistência deste país ainda somos nós. E todos nós iremos às ruas, todos iremos às urnas. Para as barricadas!”

No dia da apuração dos votos na Alemanha, uma das figuras que se via mais animada era Jan van Aken, presidente do Die Linke e um dos responsáveis, junto com Inês Schwerdtner, pela reestruturação do partido após a saída de Sahra Wagenknecht e nove parlamentares em 2023, para fundar o BSW (Bundnis Sahra Wagenknecht – Razão e Justiça). Jan é defensor de uma linguagem mais concisa e direta ao público. Em um discurso, durante o último Congresso do Die Linke, ele se apresentou aos delegados da seguinte forma: “Me chamo Jan van Aken e creio que não deveria haver multimilionários.”

No programa do Die Linke aprovado neste Congresso, um dos pontos centrais é o tratamento dado à desigualdade econômica do país e a proposta de reduzir pela metade a riqueza dos multimilionários em dez anos, através de um imposto progressivo para as pessoas mais ricas. Com os recursos deste imposto, poderiam haver investimentos na educação e transporte público, por exemplo, segundo a proposta. Este será um dos projetos encampados por Heidi Reichinnek, como líder da bancada do Die Linke no Bundestag no próximo período. Vamos acompanhar.

 

Fonte: DW Brasil/Opera Mundi

 

Nenhum comentário: