A história do mundo em
1.398 páginas
“Mundo,
mundo, vasto mundo”. Foi com esse verso de Carlos Drummond de Andrade na cabeça
que abri, pela primeira vez, o novo livro do escritor e historiador inglês
Simon Sebag Montefiore. Estavam ali, diante dos meus olhos, as 1398 páginas de
“O mundo – Uma história através das famílias” (Companhia das Letras), que logo
vi se tratar de uma obra de A a Z, começando na mais remota Antiguidade para
chegar aos tempos de Zelensky (Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, país
em conflito com a Rússia há quase três).
Nesse
abecedário milenar, homens e mulheres amam, odeiam, guerreiam, buscam a paz,
geram filhos, preparam os herdeiros, trapaceiam, matam em nome do poder e de
Deus, tentam salvar sua alma, se afogam em ambições, ressurgem em terras distantes
e marcam seu tempo. E o de milhões de outras pessoas.
Aviso
de antemão que se trata de uma obra monumental em conteúdo, tamanho e peso
(físico). Por isso, podemos considerá-lo um genuíno “livro de cabeceira”, do
tipo que não se deve mudar muito de lugar – no caso de uma viagem, por exemplo,
melhor esquecê-lo sobre a mesa de casa até o retorno. Mas confesso que, por ser
um trabalho tão espetacular em conhecimento, informações, referências e
pesquisa, não consegui deixá-lo de lado durante os 49 dias (e noites, e
madrugadas) de leitura.
Virou
quase um vício querer saber mais sobre persas, civilização egípcia, império
romano, gregos e troianos, Idade Média, mestres do Renascimento, guerras
napoleônicas, Guerra Civil dos Estados Unidos, os dois conflitos mundiais, a
era contemporânea, enfim, mergulhar a fundo em palavras, épocas, ideias. Tudo
guiado por famílias, clãs, dinastias, nos quatro cantos do mundo, com uma
‘pegada’ infalível.
Ao
contar uma história passada na Ásia, por exemplo, o autor constrói um “gancho”,
fisga o leitor e o conduz a outra parte do planeta, sem perder o fio da meada –
vamos à Europa, África, América, ganhando destaque o Brasil durante os períodos
colonial e imperial. Enfim, todos os tempos e continentes, envolvidos pelo que
os seres humanos têm em comum: a família. (Leia nesta página um trecho sobre a
Guerra do Paraguai, no qual há um erro a ser corrigido na próxima edição do
livro: o conde d’Eu era genro, e não cunhado de Dom Pedro II).
Veloz,
eletrizante, de fácil compreensão, a escrita de Simon Sebag Montefiore nos
conduz a outros fatos além do que está impresso. Para dar suporte ao texto e
nortear o leitor, há dezenas de páginas com notas, muitas delas extremamente
saborosas. Com elegância, embora sem pudores, ele fala sobre a intimidade dos
poderosos, conta casos de alcova das poderosas, vai de um ponto a outro da
Terra. Por isso, leitor, sempre que achar conveniente, vale a pena recorrer às
notas para entender melhor a narrativa.
Se,
ao chegar às viagens do veneziano Marco Polo, senti que “O mundo...” reunia
vários livros dentro de um só, constatei, nos primeiros acordes dos grandes
conflitos, como a Primeira Guerra Mundial, que a História é mesmo uma sucessão
de episódios, sequência de fatos, que levam, para o bem ou para o mal, ao
término de um ciclo, e recomeço de outros. E que a humanidade tem pilares de
bons propósitos e de muita violência. A escravidão está presente, e a crueza e
a crueldade de alguns episódios me fizeram engolir em seco, fechar o livro e
voltar algumas horas depois.
Certa
noite, estava lendo sobre um antigo conflito no Oriente Médio e “apaguei” com o
livro sobre a cama. No dia seguinte, ao ler noEstado de Minasuma matéria sobre
a libertação de prisioneiros na Síria, após a fuga do ex-presidente Bashar al-Assad
para a Rússia, pensei, sonolento, estar na continuação do texto. Dois momentos,
passado remoto e o presente assustador, se fundiam, sem anteparos.
·
Intrigas, amores, lutas
Autor
de “Stálin: A corte do czar vermelho”, “O jovem Stálin”, “Jerusalém”, “Os
Románov” e “Catarina, a Grande”, Montefiore, em seu novo livro, põe uma lente
sobre as famílias que marcaram a História, e fizeram história, revelando, sem
retoques, intrigas palacianas, casos amorosos, conflitos. Em cena, temas como
guerra, migração, peste, religião e tecnologia – muitas vezes, é de se
perguntar se o ser humano evoluiu realmente ou apenas trocou de roupa, cenário,
armas e bagagens.
Nas
páginas, o autor inglês apresenta uma impressionante galeria de personagens,
incluindo governantes cruéis, conquistadores destemidos, religiosos plenos de
fé ou descrentes dela, impostores vingativos, heróis, charlatães audaciosos,
ditadores, artistas extraordinários, cientistas preocupados com o futuro da
humanidade, magnatas sem caráter, escroques que fazem jus ao nome, amantes
insaciáveis, maridos, esposas, filhos. Para ilustrar ainda mais e aumentar o
prazer da leitura, a obra se divide em 23 atos, cada um mostrando a população
mundial da época: de 150 mil (70 mil a.C.) aos atuais 8 bilhões.
Eis
alguns personagens que fazem essa festa monumental de emoção, letras e, claro,
diversão. Há Hongwu, o mendigo que fundou a dinastia Ming, Euarê, o Rei
Leopardo do Benin, Henri Christophe, rei do Haiti, Kamehameha, o conquistador
do Havaí, Zenóbia, a imperatriz árabe que desafiou Roma, a sra. Murasaki, a
primeira romancista feminina, Sayyida al-Hurra, a rainha pirata marroquina.
E
mais: Indira Gandhi, Margaret Thatcher, Barack Obama, Vladimir Putin e
Volodymyr Zelensky. E ainda os césares, sauditas, incas, zulus e otomanos,
Médici, Mughal, Bonaparte, Habsburgo, Rothschild, Rockefeller, Krupp,
Churchill, Kennedy, Castro, Nehru, Pahlavi, Kenyatta, Kim, Assad. Sobre o
presidente norte-americano Donald Trump, em segundo mandato e atualmente
empenhado na deportação de migrantes, há o seguinte registro (nas notas): “A
maior parte da Bavária (Alemanha) era pobre. Entre 1881 e 1890, 1,4 milhão de
alemães migraram para os Estados Unidos, muitos deles bávaros. Um exemplo
típico foi Friedrich Drumpf, que deixou o país em 1885. Sua família saiu do
vilarejo de Kallsstadt e acabou na Casa Branca, numa história tipicamente
americana. Mais tarde, Drumpf alterou seu nome para Trump.”
Apresentar,
sem superficialidade, tantos acontecimentos constitui tarefa hercúlea, e,
conforme o autor explica no prefácio, escreveu o livro “durante os tempos
ameaçadores da Covid-19 e da invasão russa da Ucrânia”. Imaginem que as
histórias contadas por ele têm início há quase um milhão de anos, a partir das
pegadas de cinco pessoas que caminhavam por uma praia no Leste da Inglaterra,
em Happisburgh.
Na
introdução, Montefiore esclarece: “Cinco conjuntos de pegadas, provavelmente de
um homem e quatro crianças, datando de 950 mil a 850 mil anos. Descobertas em
2013, são as mais antigas pegadas de uma família que se tem registro. Não são
as primeiras: ainda mais antigas foram descobertas na África, onde começou a
história humana. Mas as de Happisburgh são o mais antigo traço de uma
‘família’. E são a inspiração para esta história do mundo”.
Nascido
em Londres em 1965, Montefiore afirma vê a história do mundo como um elixir
para tempos turbulentos. “Sua vantagem é que oferece um senso de perspectiva: a
inconveniência é que envolve uma distância demasiada. Histórias do mundo, com
frequência, são feitas de temas, não de pessoas; biografias são feitas de
pessoas, não de temas”. Para ele, “a família continua a ser a unidade essencial
na existência humana – mesmo na era da inteligência artificial e da guerra
galáctica”.
Entre
as belas epígrafes escolhidas pelo autor, uma me chamou a atenção. “O mundo é
uma montanha, e nossos feitos, vozes; as vozes têm eco; a nós, elas voltarão”.
Palavras de Rumi, que viveu no século 13, onde hoje é o Afeganistão.
·
O que eles e elas disseram - Frases de personalidades famosas (ou anônimas) citadas no livro:
>>> “O papel do estadista é saber o que precisa ser feito
e ser capaz de explicá-lo; amar o país e ser incorruptível”
Péricles,
líder político e estrategista militar na Grécia (século V a.C), no seu último
discurso
>>> “Banhos, sexo e vinho
arruínam nossos corpos, mas fazem com que a vida valha a pena”
Inscrição
encontrada na lápide de um romano, que viveu no ano 97 d. C
>>> “Não há comércio
sem guerra, nem guerra sem comércio”
Jan
Pieterszoon Cohen (1587-1629), diretor-geral da Companhia Holandesa das Índias
Orientais
>>> “Nunca faça nada
quando estiver enfurecido, e, sobretudo, não confie em ninguém; ouça todos;
decida sozinho”
Rei
Carlos V (1500-1558), espanhol, sacro imperador romano, aconselhando o filho
Filipe
>>> “Num piscar de olhos,
num instante, num sopro, a condição do mundo muda”
Alamgir
ou Aurangzeb (1618-1707), imperador mongol
>>> “Soldados,
lembrem-se de que, do alto dessas pirâmides, quarenta séculos de história os
contemplam”
Napoleão
Bonaparte, em 20 de julho de 1798, às portas do Cairo, no Egito
>>> “O jogo é sempre
vencido por quem comete menos erros”
Napoleão
Bonaparte, em maio de 1812, antes da invasão da Rússia, comandando 600 mil
soldados.
>>> “A América é ingovernável (...) Quem serve uma revolução está
apenas lavrando o mar (...) Este país cairá infalivelmente nas mãos da multidão
desenfreada, para depois passar a tiranetes quase insignificantes de todas as
cores e raças”
Simon
Bolívar (1783-1830), El Libertador, perto de morrer, em sua casa nos arredores
de Cartagena, na Colômbia
>>> “Nem por um
instante na vida perdi a convicção de que um dia governaria a França. Como é
possível governar um país com 258 tipos de queijo?”
Charles
De Gaulle, em 13 de maio de 1958, que se considerava predestinado a restaurar a
glória da França
>>> “O vencedor é
aquele que tem os nervos mais fortes.”
Nikita
Khruschóv (1894-1971), premiê soviético, em 4 de novembro de 1956
>>> “Não tenho nada a
oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor”
Winston
Churchill (1874-1965), em 13 de maio de 1940, em seu discurso inaugural como
primeiro-ministro do Reino Unido
·
Trecho do
livro - (De “O mundo”, de Simon Montefiore)
“Pedro
II acampou com seus soldados e resistiu a quaisquer medidas de paz, enquanto os
brasileiros lutavam e entravam em território paraguaio, perseguindo o tirano
(Solano López). “Que medo poderia ter eu? De que me tirassem o governo?”,
indagou Pedro. “Muitos reis melhores do que eu o têm perdido, e eu não lhe acho
senão o peso duma cruz que carrego por dever.”
Depois
que os brasileiros tomaram Assunção, López transferiu a capital duas vezes.
Pedro II nomeou seu cunhado (sic) francês, Gaston, conde d’Eu, de 27 anos de
idade, comandante-chefe. Gaston, neto de Luís Filipe, de início se decepcionara
com a esposa, a princesa Isabel, mas revelou-se um homem capaz e afetuoso. O
público ficou encantado com suas proezas, pois ele não só venceu batalhas, como
libertou 25 mil escravos paraguaios – embora muitos tenham sido recrutados para
o exército aliado. López, em desespero, matou seus dois irmãos, os cunhados e
centenas de estrangeiros; seu engenheiro inglês cometeu suicídio com uma
injeção de nicotina. Sem munição, ele ordenou que as vítimas fossem mortas a
golpes de lança.”
<><> “O mundo– Uma história através das famílias”
• De
Simon Sebag Montefiore
•
Tradução de Denise Bottmann, Claudio Marcondes e Paulo Geiger
•
Companhia das Letras
•
1.398 páginas
• R$
299,90 (livro físico) e 59,90 (e-book)
Fonte: em.com
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