terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

A história do mundo em 1.398 páginas

“Mundo, mundo, vasto mundo”. Foi com esse verso de Carlos Drummond de Andrade na cabeça que abri, pela primeira vez, o novo livro do escritor e historiador inglês Simon Sebag Montefiore. Estavam ali, diante dos meus olhos, as 1398 páginas de “O mundo – Uma história através das famílias” (Companhia das Letras), que logo vi se tratar de uma obra de A a Z, começando na mais remota Antiguidade para chegar aos tempos de Zelensky (Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, país em conflito com a Rússia há quase três).

Nesse abecedário milenar, homens e mulheres amam, odeiam, guerreiam, buscam a paz, geram filhos, preparam os herdeiros, trapaceiam, matam em nome do poder e de Deus, tentam salvar sua alma, se afogam em ambições, ressurgem em terras distantes e marcam seu tempo. E o de milhões de outras pessoas.

Aviso de antemão que se trata de uma obra monumental em conteúdo, tamanho e peso (físico). Por isso, podemos considerá-lo um genuíno “livro de cabeceira”, do tipo que não se deve mudar muito de lugar – no caso de uma viagem, por exemplo, melhor esquecê-lo sobre a mesa de casa até o retorno. Mas confesso que, por ser um trabalho tão espetacular em conhecimento, informações, referências e pesquisa, não consegui deixá-lo de lado durante os 49 dias (e noites, e madrugadas) de leitura.

Virou quase um vício querer saber mais sobre persas, civilização egípcia, império romano, gregos e troianos, Idade Média, mestres do Renascimento, guerras napoleônicas, Guerra Civil dos Estados Unidos, os dois conflitos mundiais, a era contemporânea, enfim, mergulhar a fundo em palavras, épocas, ideias. Tudo guiado por famílias, clãs, dinastias, nos quatro cantos do mundo, com uma ‘pegada’ infalível.

Ao contar uma história passada na Ásia, por exemplo, o autor constrói um “gancho”, fisga o leitor e o conduz a outra parte do planeta, sem perder o fio da meada – vamos à Europa, África, América, ganhando destaque o Brasil durante os períodos colonial e imperial. Enfim, todos os tempos e continentes, envolvidos pelo que os seres humanos têm em comum: a família. (Leia nesta página um trecho sobre a Guerra do Paraguai, no qual há um erro a ser corrigido na próxima edição do livro: o conde d’Eu era genro, e não cunhado de Dom Pedro II).

Veloz, eletrizante, de fácil compreensão, a escrita de Simon Sebag Montefiore nos conduz a outros fatos além do que está impresso. Para dar suporte ao texto e nortear o leitor, há dezenas de páginas com notas, muitas delas extremamente saborosas. Com elegância, embora sem pudores, ele fala sobre a intimidade dos poderosos, conta casos de alcova das poderosas, vai de um ponto a outro da Terra. Por isso, leitor, sempre que achar conveniente, vale a pena recorrer às notas para entender melhor a narrativa.

Se, ao chegar às viagens do veneziano Marco Polo, senti que “O mundo...” reunia vários livros dentro de um só, constatei, nos primeiros acordes dos grandes conflitos, como a Primeira Guerra Mundial, que a História é mesmo uma sucessão de episódios, sequência de fatos, que levam, para o bem ou para o mal, ao término de um ciclo, e recomeço de outros. E que a humanidade tem pilares de bons propósitos e de muita violência. A escravidão está presente, e a crueza e a crueldade de alguns episódios me fizeram engolir em seco, fechar o livro e voltar algumas horas depois.

Certa noite, estava lendo sobre um antigo conflito no Oriente Médio e “apaguei” com o livro sobre a cama. No dia seguinte, ao ler noEstado de Minasuma matéria sobre a libertação de prisioneiros na Síria, após a fuga do ex-presidente Bashar al-Assad para a Rússia, pensei, sonolento, estar na continuação do texto. Dois momentos, passado remoto e o presente assustador, se fundiam, sem anteparos.

·        Intrigas, amores, lutas

Autor de “Stálin: A corte do czar vermelho”, “O jovem Stálin”, “Jerusalém”, “Os Románov” e “Catarina, a Grande”, Montefiore, em seu novo livro, põe uma lente sobre as famílias que marcaram a História, e fizeram história, revelando, sem retoques, intrigas palacianas, casos amorosos, conflitos. Em cena, temas como guerra, migração, peste, religião e tecnologia – muitas vezes, é de se perguntar se o ser humano evoluiu realmente ou apenas trocou de roupa, cenário, armas e bagagens.
Nas páginas, o autor inglês apresenta uma impressionante galeria de personagens, incluindo governantes cruéis, conquistadores destemidos, religiosos plenos de fé ou descrentes dela, impostores vingativos, heróis, charlatães audaciosos, ditadores, artistas extraordinários, cientistas preocupados com o futuro da humanidade, magnatas sem caráter, escroques que fazem jus ao nome, amantes insaciáveis, maridos, esposas, filhos. Para ilustrar ainda mais e aumentar o prazer da leitura, a obra se divide em 23 atos, cada um mostrando a população mundial da época: de 150 mil (70 mil a.C.) aos atuais 8 bilhões.

Eis alguns personagens que fazem essa festa monumental de emoção, letras e, claro, diversão. Há Hongwu, o mendigo que fundou a dinastia Ming, Euarê, o Rei Leopardo do Benin, Henri Christophe, rei do Haiti, Kamehameha, o conquistador do Havaí, Zenóbia, a imperatriz árabe que desafiou Roma, a sra. Murasaki, a primeira romancista feminina, Sayyida al-Hurra, a rainha pirata marroquina.

E mais: Indira Gandhi, Margaret Thatcher, Barack Obama, Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky. E ainda os césares, sauditas, incas, zulus e otomanos, Médici, Mughal, Bonaparte, Habsburgo, Rothschild, Rockefeller, Krupp, Churchill, Kennedy, Castro, Nehru, Pahlavi, Kenyatta, Kim, Assad. Sobre o presidente norte-americano Donald Trump, em segundo mandato e atualmente empenhado na deportação de migrantes, há o seguinte registro (nas notas): “A maior parte da Bavária (Alemanha) era pobre. Entre 1881 e 1890, 1,4 milhão de alemães migraram para os Estados Unidos, muitos deles bávaros. Um exemplo típico foi Friedrich Drumpf, que deixou o país em 1885. Sua família saiu do vilarejo de Kallsstadt e acabou na Casa Branca, numa história tipicamente americana. Mais tarde, Drumpf alterou seu nome para Trump.”

Apresentar, sem superficialidade, tantos acontecimentos constitui tarefa hercúlea, e, conforme o autor explica no prefácio, escreveu o livro “durante os tempos ameaçadores da Covid-19 e da invasão russa da Ucrânia”. Imaginem que as histórias contadas por ele têm início há quase um milhão de anos, a partir das pegadas de cinco pessoas que caminhavam por uma praia no Leste da Inglaterra, em Happisburgh.

Na introdução, Montefiore esclarece: “Cinco conjuntos de pegadas, provavelmente de um homem e quatro crianças, datando de 950 mil a 850 mil anos. Descobertas em 2013, são as mais antigas pegadas de uma família que se tem registro. Não são as primeiras: ainda mais antigas foram descobertas na África, onde começou a história humana. Mas as de Happisburgh são o mais antigo traço de uma ‘família’. E são a inspiração para esta história do mundo”.

Nascido em Londres em 1965, Montefiore afirma vê a história do mundo como um elixir para tempos turbulentos. “Sua vantagem é que oferece um senso de perspectiva: a inconveniência é que envolve uma distância demasiada. Histórias do mundo, com frequência, são feitas de temas, não de pessoas; biografias são feitas de pessoas, não de temas”. Para ele, “a família continua a ser a unidade essencial na existência humana – mesmo na era da inteligência artificial e da guerra galáctica”.

Entre as belas epígrafes escolhidas pelo autor, uma me chamou a atenção. “O mundo é uma montanha, e nossos feitos, vozes; as vozes têm eco; a nós, elas voltarão”. Palavras de Rumi, que viveu no século 13, onde hoje é o Afeganistão.

·        O que eles e elas disseram - Frases de personalidades famosas (ou anônimas) citadas no livro:

>>> “O papel do estadista é saber o que precisa ser feito e ser capaz de explicá-lo; amar o país e ser incorruptível”

Péricles, líder político e estrategista militar na Grécia (século V a.C), no seu último discurso

>>> “Banhos, sexo e vinho arruínam nossos corpos, mas fazem com que a vida valha a pena”

Inscrição encontrada na lápide de um romano, que viveu no ano 97 d. C

>>> “Não há comércio sem guerra, nem guerra sem comércio”

Jan Pieterszoon Cohen (1587-1629), diretor-geral da Companhia Holandesa das Índias Orientais

>>> “Nunca faça nada quando estiver enfurecido, e, sobretudo, não confie em ninguém; ouça todos; decida sozinho”

Rei Carlos V (1500-1558), espanhol, sacro imperador romano, aconselhando o filho Filipe

>>> “Num piscar de olhos, num instante, num sopro, a condição do mundo muda”

Alamgir ou Aurangzeb (1618-1707), imperador mongol

>>> “Soldados, lembrem-se de que, do alto dessas pirâmides, quarenta séculos de história os contemplam”

Napoleão Bonaparte, em 20 de julho de 1798, às portas do Cairo, no Egito

>>> “O jogo é sempre vencido por quem comete menos erros”

Napoleão Bonaparte, em maio de 1812, antes da invasão da Rússia, comandando 600 mil soldados.

>>> “A América é ingovernável (...) Quem serve uma revolução está apenas lavrando o mar (...) Este país cairá infalivelmente nas mãos da multidão desenfreada, para depois passar a tiranetes quase insignificantes de todas as cores e raças”

Simon Bolívar (1783-1830), El Libertador, perto de morrer, em sua casa nos arredores de Cartagena, na Colômbia

>>> “Nem por um instante na vida perdi a convicção de que um dia governaria a França. Como é possível governar um país com 258 tipos de queijo?”

Charles De Gaulle, em 13 de maio de 1958, que se considerava predestinado a restaurar a glória da França

>>> “O vencedor é aquele que tem os nervos mais fortes.”

Nikita Khruschóv (1894-1971), premiê soviético, em 4 de novembro de 1956

>>> “Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor”

Winston Churchill (1874-1965), em 13 de maio de 1940, em seu discurso inaugural como primeiro-ministro do Reino Unido

·        Trecho do livro - (De “O mundo”, de Simon Montefiore)

“Pedro II acampou com seus soldados e resistiu a quaisquer medidas de paz, enquanto os brasileiros lutavam e entravam em território paraguaio, perseguindo o tirano (Solano López). “Que medo poderia ter eu? De que me tirassem o governo?”, indagou Pedro. “Muitos reis melhores do que eu o têm perdido, e eu não lhe acho senão o peso duma cruz que carrego por dever.”

Depois que os brasileiros tomaram Assunção, López transferiu a capital duas vezes. Pedro II nomeou seu cunhado (sic) francês, Gaston, conde d’Eu, de 27 anos de idade, comandante-chefe. Gaston, neto de Luís Filipe, de início se decepcionara com a esposa, a princesa Isabel, mas revelou-se um homem capaz e afetuoso. O público ficou encantado com suas proezas, pois ele não só venceu batalhas, como libertou 25 mil escravos paraguaios – embora muitos tenham sido recrutados para o exército aliado. López, em desespero, matou seus dois irmãos, os cunhados e centenas de estrangeiros; seu engenheiro inglês cometeu suicídio com uma injeção de nicotina. Sem munição, ele ordenou que as vítimas fossem mortas a golpes de lança.”

<><> “O mundo– Uma história através das famílias”
• De Simon Sebag Montefiore
• Tradução de Denise Bottmann, Claudio Marcondes e Paulo Geiger
• Companhia das Letras
• 1.398 páginas
• R$ 299,90 (livro físico) e 59,90 (e-book)

 

Fonte: em.com

 

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