Brasil tem 145 mil
famílias acampadas à espera de terra
O BRASIL tem
pelo menos 145.100 famílias acampadas à espera de um lote de terra para
cultivar. O número foi levantado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária) e obtido pela Repórter Brasil por meio da Lei de
Acesso à Informação.
Este é o primeiro
dado oficial sobre a demanda nacional por assentamentos. Segundo o
levantamento, hoje existem 2.045 acampamentos de sem-terras no país.
A pesquisa revela
que há mais pessoas militando por terras do que o governo do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) e o próprio MST (Movimento dos Trabalhadores
Rurais sem Terra) pensavam. Até então, o MST estimava cerca de 100 mil famílias
acampadas.
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Revela também que,
além de maior, o número está crescendo. Isso ocorre, em parte, por conta de
ações do próprio governo e por conta de sua falta de capacidade de alocar quem
precisa de terra num lote da reforma agrária.
Até o final de
2024, o governo Lula informava ter assentado cerca de 5,8 mil famílias em
terras desapropriadas ou compradas para a reforma agrária. O número, além de
pequeno na visão do MST, é contestado pelos sem-terras, conforme mostrou
o Repórter Brasil.
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Pará tem mais acampados
Ainda que todas
essas famílias tenham sido realmente assentadas, elas não representam nem 4% da
demanda total de acampados no país. São cerca de um quinto das cerca de 29 mil
famílias acampadas só no Pará, estado com a maior demanda por terra.
De acordo com o
Incra, no maior acampamento do Brasil, o Terra e Liberdade, em Parauapebas
(PA), há pelo menos 3,5 mil famílias ligadas ao MST à espera de terra.
Lá, em dezembro de
2023, um incêndio
iniciado por uma explosão na rede elétrica que atende o espaço matou nove
pessoas.
Lula determinou que o ministro Paulo Teixeira, do MDA (Ministério do
Desenvolvimento Agrário), fosse ao local e prometeu assentar as famílias do
território até o Natal daquele ano. Até hoje, segundo o
MST, nenhuma delas recebeu um lote.
Segundo quem mora
no acampamento, de lá para cá, o acampamento só cresceu. “Quando eu cheguei
aqui [no final de 2023], eu olhava para os lados e só via pasto”, disse Lucas
Souza de Oliveira, 28 anos, militante do MST. “Agora, é só barraco.”
Lucas mora com
quatro crianças e a esposa, que está grávida, numa casa de palha em meio ao
acampamento. Sobrevive do que consegue plantar ao redor do aglomerado de
habitações e do dinheiro que sua companheira ganha como manicure e vendedora de
salgados.
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Novo perfil de assentado
Ele nem sempre foi
agricultor. Já morou em São Paulo, onde deixou um filho e trabalhou em diversas
funções na construção civil. Resolveu se estabelecer no acampamento após
perceber que a vida na cidade lhe parecia mais difícil.
“Aqui eu vivo melhor. Conto com a ajuda de todos e busco uma solução definitiva
para minha família”, disse ele, explicando os motivos que o levaram ao Terra e
Liberdade.
Pablo Neri,
dirigente nacional do MST no Pará, disse que Lucas representa bem o perfil dos
acampados brasileiros. Ele disse que boa parte das pessoas que compõem a
demanda da reforma agrária no país são, na verdade, ex-moradores de cidades
pobres brasileiras, que decidiram migrar em busca de melhores oportunidades de
trabalho, não as encontraram e, em vez de se estabelecerem em favelas,
resolveram aderir a acampamentos.
Parauapebas, por
exemplo, é um centro de atração de migrantes. A população da cidade cresceu
73,1% só entre 2010 e 2022, segundo Censo. Passou de cerca de 153 mil
habitantes para 263 mil em 12 anos, hoje uma das maiores do Pará.
A migração por lá é
explicada pelo aumento da atividade de mineração no município. Fica em seu
território a mina de Carajás, explorada pela Vale. O trabalho da multinacional,
no entanto, não garante emprego nem desenvolvimento para Parauapebas, segundo
Neri. Não é coincidência, portanto, que fique lá o maior acampamento de
sem-terras do país.
“Os maiores
acampamentos do país, os locais em que os acampamentos mais crescem, são
justamente nos territórios em que projetos extrativistas, de produção de
commodities minerais e agrícolas, mais avançam”, disse ele. “São projetos que
têm apoio do atual governo, mas que geram conflitos pela terra.”
O presidente Lula e
mais dois ministros estiveram em Parauapebas na sexta-feira (14) para
anunciarem investimentos de R$ 70 bilhões da Vale para expansão da mineração de
ferro e cobre em Carajás. Neri estima que o projeto “Novo Carajás” só aumente a
demanda por terra no Pará. “Não há contrapartida prevista para a situação dos
acampados.”
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Efeito colateral da fiscalização
Maíra Coraci Diniz,
a nova diretora de Obtenção de Terras do Incra, disse que o perfil dos
acampados no país e o motivo que os levou aos acampamentos ainda não foram
completamente mapeados pelo governo. Contudo, ela enxerga, baseada em conversas
de campo realizadas com as famílias à espera de terra, outros motivos para o
crescimento da demanda pela reforma agrária, principalmente na região Norte.
Para Diniz,
operações realizadas por este governo para combate a garimpos ilegais e para desintrusão
de terra indígenas acabaram por tirar o trabalho – ilegal – de milhares de
brasileiros. Sem perspectivas e formas de sustento, uma boa parte dessas
pessoas acabou em acampamentos sem-terra.
“Você escuta
histórias no Pará de gente que estava em Roraima em garimpo ilegal, de gente
que saiu da terra indígena do Alto Rio Guamá, da Apyterewa”, disse ela,
citando duas reservas paraenses homologadas em 1993 e 2007, respectivamente.
Desde o início do
governo Lula, sete operações para desintrusão de terras – retirada de invasores
não-indígenas do local – já foram realizadas. Cinco delas ocorreram na região Norte,
a que tem o maior número de acampados. Quatro operações foram no Pará.
Diniz disse que o
governo está trabalhando para buscar alternativas de assentamento para os
acampados. O Incra informou ao final de 2024 ter resolvido a demanda por terra
de mais de 71 famílias em 2024, incluindo as que foram regularizadas ou
reconhecidas como assentadas para inclusão no (Programa Nacional de Reforma
Agrária.
O levantamento dos
acampados, aliás, é uma determinação do presidente Lula, expressa em decreto
assinado em agosto de 2023. Ele dialoga com o esforço do Executivo em prol do
avanço da reforma agrária no país.
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Atualização constante
A diretora do Incra
disse que a pesquisa sobre famílias acampadas é um trabalho permanente, que
será atualizado e aprimorado constantemente. Reconheceu que, neste momento, ele
representa bem a demanda por terra no Brasil.
“Estivemos em cada
acampamento, conversamos com cada família. Pela primeira vez, temos informações
confiáveis sobre elas”, ressaltou. “Claro que podemos voltar aos acampamentos
para recontagens ou encontrar outros acampamentos não visitados. Mas acho que,
hoje, temos uma noção segura da nossa demanda.”
Diniz também
ressaltou que o termo “acampados” é usado na pesquisa, mas não significa
necessariamente que famílias estão vivendo em barracas. Ela explicou que, como
acontece no Terra e Liberdade, muitas famílias cadastradas vivem em casas
precárias. Segundo ela, essas pessoas sobrevivem basicamente do Bolsa Família e
de bicos que conseguem arrumar enquanto esperam por um lote para trabalharem.
¨ Governo diz ter assentado 71 mil famílias em 2024, mas
MST contesta dados
O NÚMERO DE
FAMÍLIAS assentadas em projetos de reforma agrária no terceiro mandato de
Lula é a nova frente de discórdia entre o governo federal e o MST (Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Enquanto o
movimento considera como efetivamente assentadas as famílias alocadas em terras
novas, compradas ou desapropriadas para essa finalidade, o governo coloca na
conta a regularização de famílias que já estavam em lotes. Isso engloba, por
exemplo, a titulação de áreas já ocupadas ou a inclusão de agricultores em
programas de crédito.
Em dezembro, o
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) anunciou que 71.414 famílias foram
assentadas durante 2024. O número representaria um aumento de 42% em relação a
2023. A cifra também seria quase dez vezes superior à de 2022, último ano da
gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), opositor declarado da
redistribuição de terras no país.
Segundo o MST,
esses números não correspondem à realidade. O movimento calcula que cerca de
100 mil famílias estão acampadas à espera de terra hoje no país. Dessas, 65 mil
são de seus militantes.
Ceres Hadich,
membro da coordenação nacional do movimento, diz que nenhuma família vinculada
ao MST foi assentada. Ela, aliás, desconhece quaisquer assentamentos criados em
2024. “Efetivamente, desde o ano passado, nenhuma família foi para terra.
Não temos uma foto para mostrar”, diz.
No balanço do
governo, das 71 mil famílias registradas como assentadas, 38,9 mil foram
“regularizadas – ou seja, 55% do total. Outras 18,6 mil famílias foram
“reconhecidas”” – 26% –, o que também não entra no cálculo do MST.
“Regularização é o
reconhecimento de gente que já está na terra. Não veio terra nova”, explica o
também dirigente do MST João Paulo Rodrigues. “Tinha uma casa do Minha Casa
Minha Vida. Se colocou uma pessoa nova, eu não posso colocar aquilo como uma
nova casa construída. A casa é a mesma”, compara.
Órgão responsável
pelo assentamento de famílias sem terra, o Incra (Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária) informou à Repórter Brasil que comprou
19,6 mil hectares de terras em 2024. Seriam as primeiras aquisições de áreas
para reforma agrária realizadas desde 2021. Os dados foram enviados em resposta
a um pedido feito por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).
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Insatisfação com liderança do MDA
A divulgação do
número de famílias assentadas às vésperas da virada do ano ocorreu como uma
espécie de resposta ao endurecimento das críticas do MST ao governo Lula e
principalmente ao ministro do MDA, Paulo Teixeira (PT).
Dias antes, João
Pedro Stédile, líder histórico do MST, chamou Teixeira de incompetente
durante sua participação no
podcast Três por Quatro, produzido pelo Brasil de Fato. Reivindicou
publicamente uma reunião com Lula para tratar de acordos firmados com o governo
e que não estariam sendo cumpridos.
Teixeira é
militante histórico do PT. Ele, contudo, tem carreira política ligada ao
movimento por moradia. Sua escolha para a pasta responsável pela reforma
agrária nunca foi bem vista pelo MST e por outros movimentos populares de luta
pela terra.
“Eu lembro do
acampamento lá de Parauapebas (PA), que é o maior que nós temos, com quase 3
mil famílias. Houve um incêndio, morreram nove pessoas. Lula ficou consternado
e determinou que até o Natal todas as famílias deveriam estar em cima da terra.
Já se passou um ano daquela determinação do presidente e nada aconteceu”,
reforçou Stédile, em entrevista à
Repórter Brasil,
em dezembro.
O ministro Teixeira
chegou a anunciar também em dezembro cinco áreas que seriam redistribuídas a
sem-terras. Havia uma expectativa de que os decretos de desapropriação fossem
assinados por Lula ainda em 2024, beneficiando cerca de 800 famílias. Até hoje,
isso não ocorreu.
“Não seria algo
grande para a necessidade da reforma no país, mas seria algo simbólico”, disse
Hadich, que ainda confia no avanço desses processos.
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Conceitos amplos
Os conceitos usados
pelo governo para classificar os dados sobre reforma agrária não são novos.
Aparecem há anos em balanços oficiais e, na prática, inflam estatísticas sobre
redistribuição de terras.
Uma “regularização”
– a categoria que engloba mais famílias nas estatísticas de 2024 – pode
significar identificação, delimitação, demarcação ou titulação de terras já
ocupadas. Por exemplo: famílias de um quilombo de ocupação antiga, mas de
demarcação recente, também seriam consideradas assentadas. Nesse caso, não há
entrega de um novo lote a agricultores sem terra.
Já o
“reconhecimento” nada mais é do que entender que famílias já ocupantes de lotes
deveriam ser consideradas como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma
Agrária (PNRA), política que garante crédito subsidiado e outros auxílios.
Neste caso, também não há um novo lote entregue ao sem-terra.
No balanço do
governo, ainda existem os chamados “assentamentos diferenciados”. Esses são,
geralmente, terras de mata, inclusive na Amazônia, concedidas a famílias para
que possam ser exploradas de forma ambientalmente regulada. Em 2024, das 71 mil
famílias assentadas, 9,3 mil estavam em assentamentos diferenciados – ou seja,
13% do total.
Já 4,3 mil famílias
– 6% das 71 mil – foram assentadas em “assentamentos tradicionais”, segundo o
MDA. Esses, sim, são assentamentos em que famílias recebem um novo lote do
governo para trabalhar com agricultura. Essas terras são geralmente advindas de
desapropriação ou mesmo de compras de territórios feitas pela União.
Procurado para
comentar os questionamentos do MST sobre balanço da reforma agrária, o MDA não
se pronunciou. Já o Incra culpou o governo Bolsonaro pela “paralisação da
reforma agrária”. Acrescentou que o Programa Terra da Gente e a contratação de
novos servidores por meio do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) devem
destravar esse trabalho.
De acordo com o
Incra, até 13 de dezembro, 136,5 mil famílias haviam sido identificadas no país
em situação de vulnerabilidade social no campo, o que inclui acampados, mas
também em situação de conflito fundiário ou vivendo em condições precárias.
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Dificuldades
Segundo Gerson
Teixeira, engenheiro agrônomo e diretor da Associação Brasileira de Reforma
Agrária (Abra), que monitora estatísticas da reforma agrária no país há anos, o
assentamento de famílias em novas terras é cada vez mais raro.
Ele atribui essa situação
a enorme dificuldade para se desapropriar terras no país. Ela está relacionada
a obrigações legais impostas ano após ano pelo Congresso Nacional, as quais
transformaram a reforma agrária numa “galinha dos ovos de ouro de ruralistas”.
“Para desapropriar,
o governo precisa indenizar o dono da terra à vista, com base num cálculo que
inclui uma série de fatores, o que deixa isso caríssimo”, afirma Teixeira. “A
desapropriação surgiu como uma punição ao latifundiário que não utiliza sua
terra. Hoje, é um negócio praticamente impossível de se realizar no Brasil”,
complementa.
De acordo com
Teixeira, vale mais a pena para o governo comprar uma terra para distribuí-la a
sem-terras do que desapropriá-la. O preço de uma grande fazenda no Brasil, no
entanto, chega a atingir a casa do bilhão de reais. Em tempos de arrocho
orçamentário e metas fiscais ousadas, quase não sobra recursos para tal
finalidade.
Teixeira
pessoalmente disse não ter tido acesso a informações sobre as compras de 19,6
mil hectares de terra pelo Incra em 2024 e que, por isso, não poderia
confirmá-las. Acompanhando a execução orçamentária do Incra, ele ratifica só
que, sim, houve compras – o que é um avanço.
Ele lembrou que as
aquisições são pequenas ante à necessidade dos acampados à espera de terra no
Brasil e até para histórico do Incra. Há dez anos, em 2014, o órgão comprou 415
mil hectares de terra –mais de 20 vezes a área comparada em 2024. Em 2005, pico
histórico das compras, foram 13,4 milhões de hectares – 600 vezes mais.
“Se o conceito original
de desapropriação não for resgatado, será cada vez mais difícil fazer ações de
reforma agrária no Brasil”, alerta.
Fonte: Repórter
Brasil
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