A bagatela de 1 trilhão de
dólares
24 de outubro de 1929. O incessante tilintar dos telefones se misturava
aos gritos angustiados dos corretores. Mãos trêmulas e olhos inquietos saltavam
das folhas de cotação para os rostos pálidos que os cercavam, enquanto gotas de
suor se acumulavam na testa daqueles que, apenas um dia antes, brindavam com
uísque gelado nos elegantes salões do Waldorf. O chão encontrava-se coberto de
papéis amassados – relíquias de transações fracassadas, promessas despedaçadas
antes mesmo de serem seladas.
Um homem trajando um fraque cinza, que momentos antes exibia gargalhadas
despreocupadas num canto da sala, agora se agarrava desesperadamente ao balcão
da corretora, com a respiração ofegante e o coração disparado. “Vende tudo!”
ele bradou, a voz rouca e trêmula. Do outro lado do vidro, o operador apenas
balançou a cabeça: não havia mais compradores. As ações despencavam, descendo
no letreiro luminoso em números vermelhos que sangravam na tela.
Lá fora, uma multidão de curiosos se aglomerava na esquina da Broad
Street, fitando os rostos que surgiam nas janelas dos imponentes escritórios.
Sussurrava-se que um homem havia pulado – ninguém podia afirmar com certeza.
Contudo, alguém havia presenciado o impacto: um som seco na calçada e um
círculo de cartolas circundando um corpo imóvel. Dentro dos prédios, telegramas
chegavam em cascata: Londres. Paris. Chicago. O colapso ecoava por todas as
partes. Um secretário cruzava o corredor a correr, com a gravata esvoaçante e a
pele úmida, enquanto sussurrava para um colega: “O National City está recusando
crédito.” E o boato se espalhava, veloz como pólvora.
Essa cena, à la John Dos Passos em The Big Money ou
James T. Farrell, em Studs Lonigan, encapsula o clima apocalíptico
daquele dia seminal da crise de 1929, também conhecida como “Quinta-feira
Negra”. Embora a data tenha ficado marcada na história, seria na Terça-feira
Negra (29 de outubro de 1929) que o crash alcançaria seu
ápice, sem deixar esperanças de uma recuperação imediata. Ajustadas para
valores atuais, as perdas totais dessa crise ultrapassariam US$ 1 trilhão em
poucos dias. Quantia expressiva: equivale à metade de todos os bens e serviços
finais produzidos por nosso país no ano de 2023 (ou seja, 1/2 PIB).
Outras crises, no decorrer das décadas, também deixaram marcas
profundas. Na “Black Monday”, de 19 de outubro de 1987, o mercado
amargou perdas de cerca de US$ 1,25 trilhão; no estouro da bolha das
“pontocom”, em 14 de abril de 2000, a Nasdaq registrou um tombo de US$ 1,83
trilhão; durante a crise das hipotecas subprime, em 15 de outubro de 2008, o
baque aproximou-se de US$ 2,74 trilhões; e, em 16 de março de 2020, em meio ao
pânico da COVID-19, a queda foi de US$ 2,3 trilhões. Esses episódios figuram
entre os mais severos na história dos mercados acionários dos EUA.
Mas eis que, em 21 de janeiro de 2025, o índice Nasdaq 100 sofreu um
colapso repentino, com uma perda de US$ 1 trilhão (cerca de 6 trilhões em
reais) em apenas um dia. Meio PIB brasileiro queimado em um único dia. Décadas
se passaram desde a era em que os gritos e as quedas dramáticas inspiravam atos
desesperados – hoje, não se ouve mais relatos de almas se lançando dos prédios
de Wall Street. Embora os números ainda impressionem, aquilo que outrora se
assemelhava a um dilúvio devastador, em 2025, soou mais como uma crise
“nutella” ou ainda um espetáculo meticulosamente ensaiado, deixando entrever,
nas sutilezas dos fatos, uma realidade que desmentia qualquer cenário
apocalíptico. Bem-vindos ao segundo ato da comédia nababesca da Inteligência
Artificial (IA).
No capítulo inaugural do meu livro Lucrando com os Tubarões,
intitulado “Quem ganha quando você perde?”, exploro a ideia central de que o
mercado financeiro funciona por meio de transferência de recursos: quando
alguém perde, outro ganha. O dinheiro não some; ele circula pelas transações de
compra e venda.
Imagine, por exemplo, que há dois anos – quando manchetes como “NVIDIA
impulsiona revolução da Inteligência Artificial com chip inédito”, “Novo salto
em Inteligência Artificial faz ações dispararem”, “Reino Unido tem cerveja
feita com ajuda de inteligência artificial”, “Ferramenta de Inteligência
Artificial supera previsões e vira padrão no Vale do Silício” ou ainda
“Parceria histórica entre big techs reforça domínio da Inteligência Artificial
generativa” começavam a pipocar nos principais veículos de comunicação – você
tenha comprado R$ 100 mil em ações da NVIDIA.
Essas chamadas estroboscópicas, repetidas dia após dia, ajudaram a criar
uma atmosfera de otimismo quase irrefreável em torno da tecnologia, levando
investidores a correr atrás de participações em empresas ligadas à Inteligência
Artificial. Às vésperas da “crise” de janeiro de 2025, seria possível vender
seus papéis por R$ 1 milhão, acumulando uma valorização de dez vezes o capital
inicial. Esse lucro de R$ 900 mil em um período relativamente curto seria,
parafraseando João Cabral de Mello Neto, a parte que lhe caberia nesse
latifúndio hexa trilionário. Não tem mágica nesse exemplo: alguém perdeu para
encher teu bolso.
À primeira vista, isso pode parecer um “negócio da China”, certo? Ironia
ou não, o protagonista indireto da “crise” de 21 de janeiro foi um software de
Inteligência Artificial chamado DeepSeek, desenvolvido por uma startup chinesa.
Embora já estivesse em operação desde agosto de 2024, foi imediatamente após a
posse de Donald Trump, em 2025, que o sistema ganhou os holofotes – e o frenesi
ebuliu.
Esse fenômeno – uma supervalorização extrema seguida de uma queda
abrupta – remete às intensas oscilações vivenciadas nos ICOs (Initial Coin
Offering) de criptoativos. Lançamentos impulsionados por manchetes chamativas e
especulação desenfreada faziam com que os preços desses ativos atingissem
patamares impressionantes. Em seguida, uma correção drástica revelava a
disparidade entre a euforia inicial e os fundamentos reais, expondo a
fragilidade daqueles que se deixavam levar pela promessa de lucros garantidos
sem avaliar os riscos envolvidos.
A abrupta fuga de capitais das big techs americanas lembrava o frenético
ambiente dos cassinos europeus retratados em O Jogador, de Fiódor
Dostoiévski: a cada notícia sobre a eficiência do DeepSeek, grandes corporações
apostavam (ou liquidavam) fortunas em questão de horas. Em meio a tamanha
volatilidade, executivos passavam da euforia à melancolia em um único pregão,
reproduzindo a montanha-russa emocional das personagens do escritor russo.
Afinal, quando se assiste a uma comédia nababesca no teatro, não é
incomum que o segundo ato seja marcado pela complicação da trama, gerando
situações cada vez mais inverossímeis. Só no terceiro ato – ou mesmo no quarto
ou quinto, se pensarmos em estruturas mais épicas – é que a história chegará ao
clímax e à resolução, mantendo o tom extravagante. Tal qual Dom Quixote a brandir
sua lança contra moinhos de vento, o Vale do Silício pareceu, momentaneamente,
crer que todo software chinês de Inteligência Artificial fosse um dragão
impossível de abater. A queda de US$ 1 trilhão balançou as gigantes americanas,
mas, como o cavaleiro de Cervantes, elas pareciam lutar contra sombras infladas
pela própria imaginação corporativa.
Nas últimas décadas, descobriu-se que os mercados, frequentemente, são
pautados por vieses emocionais e comportamentos imprevisíveis. Daniel Kahneman
e Richard Thaler conquistaram o Prêmio Nobel de Economia ao evidenciar essa
irracionalidade latente nos agentes econômicos, escancarando o poder que
boatos, medos e euforias exercem sobre as cotações.
Enquanto a massa se deixa seduzir pelos movimentos de pânico ou cobiça,
um grupo seleto de investidores e desenvolvedores de Inteligência Artificial
maneja as rédeas, lucrando a cada oscilar de humor do mercado. Não se levantam
do cassino: apenas reorganizam suas fichas, esperando a próxima roleta girar.
Tal como em Dostoiévski, o fascínio por lucros rápidos e tecnologias
disruptivas alimenta o sonho de que “desta vez será diferente”. Mal a mesa roda
em favor da China e o rumor de uma reviravolta toma corpo – centenas de bilhões
“evaporam” em questão de horas, e centenas de bilhões surgem em outra ponta.
Nessas sucessivas danças de sobe e desce, um aviso reverbera de forma
cada vez mais insistente. Nassim Nicholas Taleb – matemático, filósofo e autor
de obras célebres como A Lógica do Cisne Negro e Antifrágil –
tornou-se conhecido por estudar incertezas, riscos extremos e a incapacidade
humana de prever eventos fora do comum. Suas ideias alertam que os mercados
estão sempre propensos a choques ainda maiores, especialmente quando a euforia
e a confiança desmedida se tornam a norma.
Segundo a previsão recente de Taleb, a queda da NVIDIA – símbolo da
pujança e da empolgação em torno da Inteligência Artificial – representa apenas
o começo de um movimento que pode se intensificar. Em linhas gerais, Taleb
chama a atenção para o excesso de otimismo em ciclos de inovação e especulação,
ressaltando que, quando a maré baixa, descobrimos quem realmente sabia nadar.
Em uma época em que algoritmos regem o destino dos mercados, os trilhões
que outrora pareciam cataclísmicos se reduzem a meros truques de ilusionismo –
troco de bala, como se comenta bonançosamente nos bastidores desta comédia
moderna”. O colapso de US$ 1 trilhão, que em um dia apagou metade do PIB
brasileiro, não foi o prenúncio de um apocalipse, mas o prelúdio de um espetáculo
no qual o extraordinário se banaliza e o improvável se torna rotina. Na Era da
Inteligência Artificial o verdadeiro perigo mora justamente na falsa sensação
de controle.
Fonte: Por Tarcísio Peres em A Terra é Redonda

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