sábado, 22 de fevereiro de 2025

Acordo MEC-USAID: como EUA e ditadura militar se uniram para atacar a educação brasileira

No início deste mês, um anúncio feito pelo presidente norte-americano Donald Trump causou grande celeuma na mídia. O mandatário afirmou que fecharia a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), órgão que concentra a provisão de assistência externa e as ações de “ajuda humanitária” do governo norte-americano.

Trump justificou a ação apelando para o chauvinismo patriótico do “America first”, dizendo que o órgão desperdiçava o dinheiro dos contribuintes para fazer caridade em terras alheias. Acusou igualmente a agência de “promover a ideologia woke”, um espantalho frequentemente utilizado para mobilizar seus apoiadores no Partido Republicano.

O anúncio de Trump escandalizou a imprensa liberal, gerando uma onda de reportagens lamentando o fim da agência “responsável por fornecer 40% de toda a ajuda humanitária do mundo”. O possível fechamento da USAID comoveu até mesmo parlamentares da esquerda brasileira, que foram às redes sociais denunciar a tragédia iminente.

A comoção, no entanto, é mal justificada. Um olhar mais crítico sobre o histórico da USAID revelaria que a agência tem causado muito mais danos com sua “filantropia” do que benefícios.

Desde sua fundação em 1961, a USAID tem servido como uma ferramenta para avançar os interesses geopolíticos e econômicos do governo norte-americano. Durante a Guerra Fria, buscando combater a influência soviética e os movimentos populares de esquerda na América Latina, a USAID apoiou operações de desestabilização, ingerência política, troca de regime e fortalecimento da extrema-direita — frequentemente mascarando o repasse de recursos sob fachada humanitária.

No Brasil, a agência foi uma das principais parceiras da ditadura militar. E o nosso sistema público de ensino foi uma de suas vítimas.

·        Os Acordos MEC-USAID

Desde fim dos anos 50, o governo norte-americano já buscava intervir na política brasileira, mobilizando os setores conservadores através da ação de think tanks ligados à CIA — o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES).

Esses esforços foram intensificados a partir de 1961, depois que João Goulart assumiu à Presidência. A USAID se tornou um vetor adicional da ofensiva norte-americana. A agência passou a financiar os governadores que faziam oposição a Goulart, fornecendo recursos para serem empregados em programas de forte impacto social.

As agências e organizações ligadas ao governo norte-americano tiveram papel fundamental em articular a ruptura institucional, financiando campanhas antigovernistas, cooptando parlamentares e organizações conservadoras e articulando protestos. Por fim, o governo dos Estados Unidos garantiu aos golpistas brasileiros apoio militar para efetuar a deposição de Goulart durante a “Operação Brother Sam”.

Com a deposição de João Goulart em 1964 e a subsequente instauração da ditadura militar (1964-1985), o governo brasileiro iniciou uma série de modificações das políticas públicas nacionais, visando adequá-las aos ditames do governo norte-americano.

Uma das primeiras medidas tomadas pelos militares após o golpe foi assinatura dos Acordos MEC-USAID, firmados entre o Ministério da Educação do Brasil (MEC) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. Para efetuar a implementação do programa, o governo norte-americano impôs ao regime militar a contratação de assessoramento remunerado, pago com verbas do erário.

Os Acordos MEC-USAID tinham como proposta inicial avançar a agenda de privatização do ensino público, motivo pelo qual demandavam limitação dos investimentos do governo na educação. O acordo também previa a redução do ensino de ciências humanas.

Matérias como filosofia, sociologia e educação política foram retiradas do currículo escolar, sob a alegação de que eram “obsoletas”. O curso de história, por exemplo, teve sua carga horária cortada pela metade. Por outro lado, criaram-se novas disciplinas, como “Educação Moral e Cívica”.

O objetivo dessas alterações era substituir matérias que fomentassem o pensamento crítico e a capacidade analítica por outras que facilitassem a doutrinação, o controle social e a exaltação ufanista do regime. Ao mesmo tempo, o enfoque tecnicista visava subordinar o currículo do ensino público às necessidades econômicas e aos interesses do mercado.

A reforma instituiu o ensino obrigatório da língua inglesa nas escolas públicas e adaptou o currículo-base de todas as matérias ao conteúdo programático dos cursos norte-americanos. O ensino básico foi reduzido de 12 para 11 anos, resultando em um ciclo de níveis inferior ao dos Estados Unidos, Canadá e países europeus.

Os antigos cursos primário (cinco anos) e ginasial (quatro anos) foram fundidos com o nome de “primeiro grau” e duração total de oito anos. O curso científico e o clássico também foram fundidos e renomeados como “segundo grau”. O regime militar também se comprometeu a privatizar as universidades públicas e investir verbas do erário no fomento às fundações e universidades particulares.

·        A reação dos estudantes

Em 1966, documentos relacionados aos Acordos MEC-USAID vazaram para o público, causando forte repercussão negativa. Educadores e estudantes se indignaram com a ingerência de um país estrangeiro nos assuntos educacionais brasileiros e iniciaram uma série de protestos. O governo militar respondeu com repressão brutal, além de colocar as entidades estudantis na clandestinidade.

As críticas, entretanto, continuaram e logo ecoaram na imprensa internacional. Pressionado, o regime militar acabou por instituir um grupo de estudos para modificar a reforma ditada pela Casa Branca em 1968.

A reforma foi “abrasileirada” e os tópicos mais controversos — tais como a privatização das universidades públicas — foram retirados da pauta. A maioria das modificações efetuadas pelos Acordos MEC-USAID, entretanto, continuaram em vigor e muitos elementos dessa reforma seguem existindo até hoje no ensino público.

·        Fortalecimento das forças repressivas

Além da reforma educacional, a USAID financiou um amplo programa de fortalecimento das forças policiais e dos órgãos de repressão do governo brasileiro. Embora tenha sido iniciado antes do golpe de 1964, o programa foi substancialmente ampliado durante a ditadura.

Por intermédio da USAID, o governo norte-americano forneceu treinamento, equipamentos e apoio técnico às forças de repressão no Brasil. Forças policiais receberam armas, veículos, sistemas de comunicação e de vigilância. Os agentes recebiam cursos de “combate a atividades subversivas” e de “manutenção da segurança interna” e os oficiais eram mandados para treinamentos especiais na Academia Interamericana de Polícia, na base militar de Fort Davis, no Panamá.

O apoio da USAID foi fundamental para o consolidar o aparato repressivo do regime militar, pavimentando o caminho para a criação do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e dos Destacamentos de Operações de Informações – Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Essas unidades seriam responsáveis por perseguir, torturar e assassinar centenas de de opositores políticos, estudantes, sindicalistas e militantes da esquerda.

 

Fonte: Opera Mundi

 

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