Acordo MEC-USAID:
como EUA e ditadura militar se uniram para atacar a educação brasileira
No início deste mês,
um anúncio feito pelo presidente norte-americano Donald Trump causou grande
celeuma na mídia. O mandatário afirmou que fecharia a Agência
dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), órgão que
concentra a provisão de assistência externa e as ações de “ajuda humanitária”
do governo norte-americano.
Trump justificou a
ação apelando para o chauvinismo patriótico do “America first”, dizendo que o
órgão desperdiçava o dinheiro dos
contribuintes para fazer caridade em terras alheias. Acusou igualmente a
agência de “promover a ideologia woke”, um espantalho frequentemente utilizado
para mobilizar seus apoiadores no Partido Republicano.
O anúncio de Trump
escandalizou a imprensa liberal, gerando uma onda de reportagens lamentando o
fim da agência “responsável por fornecer 40% de toda a ajuda humanitária do
mundo”. O possível fechamento da USAID comoveu até mesmo parlamentares da
esquerda brasileira, que foram às redes sociais denunciar a tragédia iminente.
A comoção, no
entanto, é mal justificada. Um olhar mais crítico sobre o histórico da USAID revelaria que
a agência tem causado muito mais danos com sua “filantropia” do que benefícios.
Desde sua fundação
em 1961, a USAID tem servido como uma ferramenta para avançar
os interesses geopolíticos e econômicos do governo norte-americano. Durante a Guerra
Fria, buscando combater a influência soviética e os movimentos populares de
esquerda na América Latina, a USAID apoiou operações de desestabilização,
ingerência política, troca de regime e fortalecimento da extrema-direita —
frequentemente mascarando o repasse de recursos sob fachada humanitária.
No Brasil, a
agência foi uma das principais parceiras da ditadura militar. E o nosso sistema
público de ensino foi uma de suas vítimas.
·
Os
Acordos MEC-USAID
Desde fim dos anos
50, o governo norte-americano
já buscava intervir na política brasileira, mobilizando os setores
conservadores através da ação de think tanks ligados à CIA — o Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas Econômicas e
Sociais (IPES).
Esses esforços
foram intensificados a partir de 1961, depois que João Goulart assumiu à
Presidência. A USAID se tornou um vetor adicional da ofensiva norte-americana.
A agência passou a financiar os governadores que faziam oposição a Goulart,
fornecendo recursos para serem empregados em programas de forte impacto social.
As agências e
organizações ligadas ao governo norte-americano tiveram papel fundamental em
articular a ruptura institucional, financiando campanhas antigovernistas,
cooptando parlamentares e organizações conservadoras e articulando protestos.
Por fim, o governo dos Estados Unidos garantiu aos golpistas brasileiros apoio
militar para efetuar a deposição de Goulart durante a “Operação Brother Sam”.
Com a deposição de
João Goulart em 1964 e a subsequente instauração da ditadura militar
(1964-1985), o governo brasileiro iniciou uma série de modificações das
políticas públicas nacionais, visando adequá-las aos ditames do governo
norte-americano.
Uma das primeiras
medidas tomadas pelos militares após o golpe foi assinatura dos Acordos
MEC-USAID, firmados entre o Ministério da Educação do Brasil (MEC) e a Agência
dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. Para efetuar a
implementação do programa, o governo norte-americano impôs ao regime militar a
contratação de assessoramento remunerado, pago com verbas do erário.
Os Acordos
MEC-USAID tinham como proposta inicial avançar a agenda de privatização do
ensino público, motivo pelo qual demandavam limitação dos investimentos do
governo na educação. O acordo também previa a redução do ensino de ciências
humanas.
Matérias como
filosofia, sociologia e educação política foram retiradas do currículo escolar,
sob a alegação de que eram “obsoletas”. O curso de história, por exemplo,
teve sua carga horária cortada pela metade. Por outro lado,
criaram-se novas disciplinas, como “Educação Moral e Cívica”.
O objetivo dessas
alterações era substituir matérias que fomentassem o pensamento crítico e a
capacidade analítica por outras que facilitassem a doutrinação, o controle
social e a exaltação ufanista do regime. Ao mesmo tempo, o enfoque tecnicista
visava subordinar o currículo do ensino público às necessidades econômicas e
aos interesses do mercado.
A reforma instituiu
o ensino obrigatório da língua inglesa nas escolas públicas e adaptou o
currículo-base de todas as matérias ao conteúdo programático dos cursos
norte-americanos. O ensino básico foi reduzido de 12 para 11 anos, resultando
em um ciclo de níveis inferior ao dos Estados Unidos, Canadá e países europeus.
Os antigos cursos
primário (cinco anos) e ginasial (quatro anos) foram fundidos com o nome de
“primeiro grau” e duração total de oito anos. O curso científico e o clássico
também foram fundidos e renomeados como “segundo grau”. O regime militar também
se comprometeu a privatizar as universidades públicas e investir verbas do
erário no fomento às fundações e universidades particulares.
·
A
reação dos estudantes
Em 1966, documentos
relacionados aos Acordos MEC-USAID vazaram para o público, causando forte
repercussão negativa. Educadores e estudantes se indignaram com a ingerência de
um país estrangeiro nos assuntos educacionais brasileiros e iniciaram uma série
de protestos. O governo militar respondeu com repressão brutal, além de colocar
as entidades estudantis na clandestinidade.
As críticas,
entretanto, continuaram e logo ecoaram na imprensa internacional. Pressionado,
o regime militar acabou por instituir um grupo de estudos para modificar a
reforma ditada pela Casa Branca em 1968.
A reforma foi
“abrasileirada” e os tópicos mais controversos — tais como a privatização das
universidades públicas — foram retirados da pauta. A maioria das modificações
efetuadas pelos Acordos MEC-USAID, entretanto, continuaram em vigor e muitos
elementos dessa reforma seguem existindo até hoje no ensino público.
·
Fortalecimento
das forças repressivas
Além da reforma
educacional, a USAID financiou um amplo programa de fortalecimento das forças
policiais e dos órgãos de repressão do governo brasileiro. Embora tenha sido
iniciado antes do golpe de 1964, o programa foi substancialmente ampliado
durante a ditadura.
Por intermédio da
USAID, o governo norte-americano forneceu treinamento, equipamentos e apoio
técnico às forças de repressão no Brasil. Forças policiais receberam armas,
veículos, sistemas de comunicação e de vigilância. Os agentes recebiam cursos
de “combate a atividades subversivas” e de “manutenção da segurança interna” e
os oficiais eram mandados para treinamentos especiais na Academia
Interamericana de Polícia, na base militar de Fort Davis, no Panamá.
O apoio da USAID
foi fundamental para o consolidar o aparato repressivo do regime militar,
pavimentando o caminho para a criação do Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS) e dos Destacamentos de Operações de Informações – Centros de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Essas unidades seriam responsáveis por
perseguir, torturar e assassinar centenas de de opositores políticos,
estudantes, sindicalistas e militantes da esquerda.
Fonte: Opera Mundi
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