sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Jean Marc von der Weid: Inflação de alimentos

O governo levou muito tempo para se dar conta de que o aumento do custo da alimentação, no domicílio ou fora dele, é muito mais importante, social e politicamente, do que o índice geral usado para medir a inflação.

governo Lula acordou tarde para o efeito político da inflação dos alimentos. Embalado pelos bons resultados de políticas favoráveis ao aumento de renda dos mais pobres, como o programa Bolsa Família e o Benefício da Prestação Continuada e o aumento real do salário-mínimo, pelo crescimento maior do que o esperado da economia com maior oferta de empregos, pela inflação (IPCA) relativamente baixa e pela excepcionalmente baixa inflação de alimentos (1%) em 2023, o governo dormiu em berço esplêndido … e acordou de ressaca.

O “despertador” do governo foram as recentes pesquisas de opinião que mostraram um divórcio entre a autossatisfação da administração com os números da macroeconomia e a insatisfação crescente do eleitorado com a performance governamental, inclusive com a do presidente Lula. E o que indicam as pesquisas de opinião sobre as causas deste mau humor do eleitorado? Os preços dos alimentos, da energia elétrica e dos combustíveis, com amplas queixas sobre os primeiros.

É de espantar o tempo que levou a administração para se dar conta de que o aumento do custo da alimentação (IPAB), no domicílio ou fora dele, é muito mais importante, social e politicamente, do que o índice geral usado para medir a inflação de toda a economia, todos os bens e serviços incluídos (IPCA). Em 2024, o IPCA chegou a 4,8%, levemente acima do limite da meta, mas o IPAB teve uma velocidade de crescimento 50% maior, chegando a 7,7%.

Parece que a memória dos economistas e políticos do governo é curtíssima. A inflação de alimentos foi mote da campanha de Lula em 2022, com o uso e abuso da expressão “bolsocaro”, referida ao preço dos alimentos. Em um artigo anterior, indiquei a frequência dos anos em que o IPAB superou o IPCA, desde 2002 até 2022. Neste período, a inflação de alimentos ficou menor do que a inflação geral apenas quatro vezes e nos outros foram vários os anos em que o IPAB superou o IPCA em 100%. Ou seja, o problema não é nada novo e não foi devidamente estudado para poder ser enfrentado corretamente.

Estudos mostrando a enormidade do nosso problema alimentar abundam desde a criação do primeiro CONSEA, no governo de Itamar Franco. Os mais recentes, realizados em 2022, mostraram que metade da população padecia de insegurança alimentar grave ou moderada. Para os mais pobres, que vieram a ser beneficiados pelo Programa Bolsa Família (PBF) ou o Benefício da Prestação Continuada (BPC), o problema tinha duas dimensões, quantitativa e qualitativa. Para os outros, pobres ou remediados, a dimensão era qualitativa – as pessoas adotavam uma dieta pobre em nutrientes essenciais como proteínas, vitaminas, fibras e sais minerais.

As causas desta situação ficaram sem aprofundamento. A proposta dos governos populares foi aumentar a renda dos mal alimentados, o que implica em acreditar que o problema se limitava à falta de recursos para comer bem, em quantidade e qualidade. Isto é ignorar o problema da oferta de alimentos, que teria que crescer muito para poder responder ao aumento de demanda turbinado pela melhoria da renda.

Quando o governo Lula formulou o primeiro Plano de Safra para a agricultura familiar eu me associei a Plinio Sampaio na elaboração da proposta de aumento do crédito PRONAF, com estímulos especiais para a produção de alimentos básicos – feijão, arroz, leite, trigo e outros que não me lembro. Esta proposta tinha uma premissa que todos nós assumimos: a produção de alimentos para consumo interno seria o foco deste setor (agricultura familiar), tido como responsável por 70% da oferta para o mercado interno.

A outra premissa era que a facilitação do acesso ao crédito permitiria à agricultura familiar ampliar a sua produção e responder ao aumento da demanda esperada pelo efeito PBF/BPC na renda dos mais pobres.

As duas premissas se mostraram falsas. A parte da agricultura familiar no total da produção de alimentos era muito menor do que imaginávamos, talvez um pouco menos do que a metade dos míticos 70%. E o crédito facilitado por subsídios nas taxas de juros dos empréstimos para produtos alimentares não foi suficiente para impedir que a agricultura familiar, sobretudo a mais capitalizada da região sul e sudeste, se voltasse para a produção de commodities para a exportação, operação mais lucrativa do que a produção de alimentos básicos para o mercado interno.

O resultado é que a participação da agricultura familiar na produção de alimentos caiu em vez de subir, chegando nestes últimos anos a menos de 20%. Segundo o censo de 2017 a participação de toda a produção da agricultura familiar (inclusive commodities) não chega a um quarto do valor básico da produção (VBP) de toda a agricultura brasileira, familiar e patronal.

Os governos populares, inclusive o atual, continuaram cultuando este mito sobre o papel da agricultura familiar enquanto concediam vantagens e subsídios ainda maiores para o agronegócio patronal. Não me lembro de qualquer referência a este setor a não ser enquanto exportadores de commodities, embora uma parte significativa fosse produtora de arroz, feijão, trigo, leite e outros produtos alimentares para o mercado interno.

Mesmo sem uma política voltada para a produção alimentar do agronegócio patronal, o setor modernizou-se com os créditos facilitados, mas isto não aumentou a produção. Houve aumento de produtividade, mas isto apenas compensou a diminuição das áreas cultivadas, mantendo uma oferta estável ao longo do tempo, enquanto a produção per capta seguia caindo, com o aumento da população. Por outro lado, a capitalização da produção alimentar indexou os preços dos alimentos aos custos dos insumos (adubos, agrotóxicos, sementes, maquinário), sendo que estes seguiram um movimento internacional de aumentos constantes de preço.

Em outro movimento de indexação, os preços dos alimentos foram atrelados aos preços das commodities. Muito naturalmente, todo produtor agrícola e mais ainda os capitalistas rurais do agronegócio, escolhem o que produzir em função de dois fatores: a vocação das terras e clima em que produzem e os preços dos produtos que levarão ao mercado. Se os preços dos alimentos para o mercado interno forem inferiores aos das commodities, eles optarão pela produção destes últimos.

Ou seja, os consumidores brasileiros têm que competir com os mercados internacionais de commodities e, é claro, a demanda de alimentos passa a ser definida pela capacidade de pagamento existente. Com a gigantesca defasagem na renda entre os mais pobres e os mais ricos, o abastecimento alimentar passa a ser dirigido para a minoria que pode pagar os preços indexados aos mercados internacionais e aos custos dos insumos.

É estranho ninguém no governo ter se preocupado em estudar os diferentes níveis de inflação segundo os estratos de renda da população. Mesmo sem dados mais precisos e detalhados, é mais do que sabido que a composição dos gastos entre os mais pobres é radicalmente distinta daquela encontrada entre os mais ricos. Os alimentos representam perto de 50% dos gastos entre os mais pobres e menos de 10% entre os mais ricos. E, como a dieta destes dois setores é radicalmente diferente, o aumento dos preços não é idêntico para uns e para outros. Em outras palavras, o IPAB dos pobres e o dos ricos pode ser maior ou menor do que a média anual.

Será preciso analisar a dieta adotada por estes diferentes estratos de renda, se quisermos definir políticas para enfrentar a inflação de alimentos. Sem esta compreensão, agentes governamentais e o próprio Lula tem dito algumas bobagens constrangedoras que foram rapidamente ironizadas pela mídia e pela oposição como a “síndrome de Maria Antonieta”.

A infeliz rainha da França no final do século XVIII, teria recomendado aos pobres de Paris que comessem brioches, já que reclamavam da falta de pão. Não foi (só) por isso que ela foi decapitada na revolução francesa e talvez a frase tenha sido um exemplo de fake news (fausses nouvelles, em francês) do passado, mas a comparação satírica com a situação atual é politicamente devastadora.

Sugerir que os mais pobres têm opções mais baratas para substituir itens da sua dieta é desconhecer qual é essa dieta e a dinâmica normal de todos os necessitados. Os mais pobres vêm fazendo estes ajustes na dieta desde sempre e aliás, os outros consumidores também. A diferença é que os menos pobres podem trocar carne bovina por frango e os remediados a picanha pelo acém, mas o que podem fazer os mais pobres? Quando a dieta está reduzida ao consumo de miojo com salsicha, arroz com ovo e pão ou bolacha com margarina qual a troca possível?

O governo não parece saber o que comem os beneficiários do PBF ou do BPC nem como os preços dos produtos desta dieta variaram. Continuamos falando da “cesta básica” como se ela fosse o que foi definido em 1938, na definição da lei do salário-mínimo e valesse para todo mundo, ricos, remediados, pobres e mais pobres, o que é, obviamente, falso.

Esta falsa premissa permite que se diga que os benefícios sociais não tiveram um efeito sobre a inflação de alimentos, apontando para a queda nos preços do feijão (-8,6%), farinha de mandioca (-1,8%), batata (-12,4%), tomate (-25,9%) e cebola (- 25,3%) em 2024. Tirando, dependendo da região, a farinha de mandioca, nenhum destes produtos (incluídos na cesta básica) tem peso na dieta atual dos mais pobres e, mesmo em queda eventual, seus preços não os tornam substitutos para o que quer que seja.

Por outro lado, o preço do arroz subiu 8,3% e o do óleo de soja 8,0%, enquanto o do trigo ficou estável e o dos ovos caiu 4,5%, produtos importantes na dieta dos mais pobres. Os produtos ultraprocessados, item muito significativo na dieta dos mais pobres, continuam em um movimento de queda relativa, em comparação com os produtos in natura e pouco processados.

Os grandes vilões da atual alta dos preços dos alimentos são as carnes (+20%), café (+40%) e leite e derivados (+20%). Estes preços têm pouca incidência no custo da dieta dos mais pobres, mas afetam tanto os pobres quanto os remediados. A carne de frango, cujo consumo se ampliou muito nos tempos dos governos do presidente Fernando Henrique Cardoso, chegando a ser símbolo de bonança, subiu 10,3%. As carnes de segunda (consideradas de consumo popular) subiram mais; 25% para o acém, 24% para o patinho e 20% para o contrafilé.

Curiosamente, a picanha, símbolo de bonança nos discursos do presidente Lula, subiu muito menos, 8%, mas este corte não faz parte da dieta nem dos pobres nem dos mais pobres. Mesmo entre os remediados a picanha é consumo de festa, no máximo um churrasco de fim de semana.

Sem que se saiba ao certo a dieta destes diferentes estratos não se pode saber precisamente quanto cada um foi afetado, mas pelo próprio peso do custo da alimentação no orçamento das famílias mais pobres (50%) pode-se inferir que mesmo sem ser o setor com maiores percentuais de aumentos nos seus itens de despesa os beneficiários do PBF e do BPC devem estar sofrendo mais. Exatamente por serem os mais pobres, tem mais dificuldades de absorver aumentos, mesmo que comparativamente menores.

Os estratos imediatamente superiores enfrentaram altas dos preços dos alimentos mais comuns na sua dieta, embora seu peso no orçamento familiar seja menor. O fato é que as altas são bastante generalizadas, e todo mundo está reclamando. Como explicar este movimento dos preços?

Para além das questões estruturais apresentadas acima e que definem grosso modo os nossos problemas de oferta de alimentos a preços compatíveis com a realidade dos nossos consumidores, há explicações conjunturais.

Em primeiro lugar, dada a nossa dependência dos mercados internacionais, os preços das commodities em alta arrastam todos os nossos preços, com exceção de hortaliças e legumes. Esta globalização do agro também reduz a oferta de alimentos no país, já que a alta das commodities resulta em maiores exportações. Além disso, a alta do dólar contribui em muito para estes aumentos imediatos, mas também para os custos de produção e distribuição dos alimentos, pois o dólar forte eleva o preço dos combustíveis.

Em segundo lugar, os preços dos insumos utilizados na agricultura vêm subindo regularmente no mercado internacional, mais ainda desde a guerra da Ucrânia, um grande fornecedor de adubos químicos.

Em terceiro lugar, os fenômenos climáticos (ondas de calor, secas e inundações) vêm se intensificando nos últimos anos, agravados no Brasil pelos desmatamentos e queimadas. Isto derrubou a produtividade de culturas e rebanhos, diminuindo a oferta de produtos.

Como enfrentar esta situação calamitosa no imediato e no médio e longo prazo?

Para enfrentar a presente alta de preços dos alimentos é preciso, em primeiro lugar, definir qual deve ser o alvo das iniciativas do governo. Os beneficiários devem ser os mais pobres, os beneficiários do PBF e do BPC? Ou deveriam ser incluídos os pobres ou os remediados? Ou deveriam ser políticas voltadas para a totalidade do público consumidor?

Não é fácil separar políticas alimentares por estrato de renda neste modelo preso ao funcionamento do mercado. Se o governo, por exemplo, subsidiar os preços do arroz ou do trigo, todos os consumidores serão beneficiados, embora as necessidades sejam totalmente distintas nos diferentes estratos de renda.

O que pode fazer o governo para baixar os preços? O corte de impostos é uma das poucas alternativas e está previsto na reforma tributária, que ainda não está em vigor. Ocorre que medidas deste tipo já estão em aplicação para vários produtos da cesta básica desde o governo de Dilma Rousseff e isto não impediu a alta atual. A lei complementar que zera os impostos para 22 produtos da cesta básica e reduz em 60% os impostos para muitos outros só entra em vigor em 2027. Seria necessário adotar estas alíquotas imediatamente, mas o efeito não seria suficiente para derrubar os preços para os níveis baixos de 2023.

O governo pode ainda aumentar os valores dos benefícios dos programas sociais, recompondo o poder de compra dos mais pobres. No entanto, sem um aumento da oferta dos alimentos básicos do consumo deste estrato de renda o efeito seria nulo pois estimularia uma demanda que não poderia ser atendida e elevaria os preços outra vez.

No curto prazo, seria preciso ampliar as importações destes produtos. No entanto, esta medida não faz cair os preços destes alimentos pois as cotações internacionais estão tão ou mais altas do que seus valores no mercado interno. Mais uma vez, baixar os impostos para a importação é uma possiblidade ao alcance do governo. E, mais uma vez, pode não ser suficiente.

A combinação das importações com o aumento dos benefícios sociais pode atender as necessidades alimentares dos mais pobres, mas para o conjunto dos consumidores o problema continuaria presente. Para atender as necessidades destes outros estratos a solução seria a adoção de subsídios governamentais para uma ampla variedade de produtos, o que implica em um orçamento elevado. Esta política é de difícil aplicação dada a forte pressão dos agentes econômicos, da mídia e do Congresso contra o aumento dos gastos do governo.

Por outro lado, a importação de alimentos só pode ser vista como uma solução de curto prazo, enquanto não se promove o aumento da produção nacional. E todo produtor de arroz, feijão ou trigo dirá que a importação desestimula o aumento da produção nacional. Uma alternativa seria a recomposição dos estoques públicos reguladores, hoje zerados e a definição de preços garantidos pelo governo para atrair investimentos dos produtores visando o aumento da oferta.

Para combinar o curto com o médio e longo prazo o governo vai precisar negociar com os produtores nacionais para garantir preços e mercados sustentáveis no futuro. Vai ser preciso sentar-se com representantes dos produtores dos alimentos mais importantes para a metade da população que sofre de insegurança alimentar aguda ou moderada.

Nos casos em que a produção nacional de alimentos compete diretamente com as exportações, como acontece com as carnes, o óleo de soja, o açúcar e o café, para citar os que tiveram maiores altas recentes, também vai ser preciso negociar com os produtores e combinar um acordo que garanta quotas para o mercado interno com preços negociados e garantidos pelo governo.

Nada disso resolve o problema estrutural da baixa oferta de alimentos no mercado interno, resultado da forte vinculação do agronegócio brasileiro com o mercado internacional. O poder de compra da maioria da população não pode competir com o poder de compra dos consumidores dos países desenvolvidos e mesmo com o de países como a China, onde o Estado subsidia o consumo e faz imensas compras no mercado internacional.

Além disso, o modelo produtivo do agronegócio implica em altos custos em insumos e maquinário, o que coloca um piso de preços bastante alto, excluindo uma grande parcela da população de baixa renda.

Finalmente, temos que levar em conta as crescentes ameaças das perturbações climáticas na oferta de produtos, tanto para o mercado interno quanto para as exportações. O aumento da frequência de chuvas torrenciais, secas intensas e prolongadas e ondas de calor não deixará de impactar a oferta de produtos alimentares e, portanto, os seus preços.

As ameaças climáticas só aparecem nos discursos do governo dirigidos para o público internacional. Há muitos anos e muitos acordos internacionais, desde a Eco 92, que os cientistas vêm insistindo na necessidade dos governos e das entidades da ONU adotarem medidas de contenção das emissões de gases de efeito estufa e de mitigação do impacto dos aumentos de temperatura em curso. No Brasil nenhum governo fez uma ou outra coisa a sério.

No que concerne à contenção dos aumentos de emissões de gases de efeito estufa o que assistimos é este governo pelejar pelo aumento da produção de petróleo, sob pretexto de que os recursos obtidos financiarão a substituição dos combustíveis fósseis por “energia limpa”. Enquanto isso, promove-se mais consumo de gasolina e diesel gastando em subsídios o dobro do que se gasta para suas alternativas verdes.

O governo alardeia a queda dos desmatamentos na Amazônia, mas esquece os aumentos nos outros biomas. Pior ainda, ignora o impacto do forte aumento das queimadas, a pretexto de que estas são provocadas por “causas naturais”. O impacto já é enorme tanto na produção de alimentos como na das commodities para exportação.

A preocupação do governo parece ser apenas não ficar “mal na fita” na reunião da COP30, em novembro deste ano. Seria ridículo se não fosse trágico acreditar que os políticos, as organizações da sociedade civil e os cientistas que acompanham estes encontros vão esquecer o que este governo está fazendo ou deixando de fazer para enfrentar o aquecimento global. Lula pode dizer adeus ao seu pretendido papel de liderança verde internacional, afirmado antes de tomar posse, na COP de Sharm-el-Sheik, em 2022.

Para enfrentar tanto o problema de custos quanto as ameaças climáticas a solução é de médio e longo prazo: a conversão do agro brasileiro para a produção agroecológica. Mas isto é algo que está fora do horizonte deste governo.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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