quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

‘A gente sai como o bandido da história’: sobrevivente narra ataque ao MST em SP

AOS 18 ANOS, Olga Bernardo carrega o nome da militante comunista alemã de origem judaica que lutou contra o nazismo e viveu no Brasil. Há mais de oito décadas, Olga Benário foi deportada do país e, grávida, assassinada em um campo de extermínio na Europa.

Já Olga Bernardo é uma sobrevivente. Em 10 de janeiro, foi baleada no ataque a um assentamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), em Tremembé, no interior de São Paulo. 

O atentado deixou seis trabalhadores feridos e dois mortos. Valdir do Nascimento de Jesus, conhecido como Valdirzão, de 52 anos, coordenador da área, e Gleison Barbosa de Carvalho, de 28 anos, não resistiram.   

A Polícia Federal abriu inquérito para investigar o caso. O MST considera lento o andamento das investigações e teme que os mandantes do crime não sejam identificados. Até o momento, um suspeito foi preso e outro está foragido. 

Inicialmente, a Polícia Civil de São Paulo levantou a hipótese de “conflito interno”. O MST, no entanto, afirma que o ataque foi motivado por “especulação imobiliária”, e suspeita do envolvimento de milícias. 

“Parece que a gente sai como os bandidos da história”, afirma Olga, que concedeu um depoimento exclusivo à Repórter Brasil. A jovem foi a primeira criança nascida no assentamento onde ocorreu o ataque.

Há pouco mais de um mês, um grupo de homens fortemente armados, divididos em carros e motos, invadiu o assentamento e atirou contra os moradores. 

Antônio Martins dos Santos Filho foi preso em flagrante. Segundo as investigações, ele, seu filho Ítalo Rodrigues da Silva, e outros homens teriam ido ao Olga Benário para “tirar satisfação”, devido a uma desavença relacionada à posse de um dos lotes do assentamento.

A área em disputa havia sido abandonada cerca de três anos antes. O terreno deveria ter sido destinado a uma nova família pelo Incra. No entanto, sem a regularização, Antônio e Ítalo teriam tentado tomar posse do local. Na noite do ataque, moradores montaram uma “vigília” para proteger o terreno.

Ítalo teve a prisão temporária decretada e está foragido. O advogado de Antônio alega que seu cliente nega ter atirado e que foi ao local para “apaziguar a situação”.

Criado há 20 anos, o assentamento Olga Benário tem cerca de 50 famílias, em lotes que variam entre 5 e 7 hectares. Cada um deles é avaliado entre R$ 5 milhões e 10 milhões, devido à localização estratégica no Vale do Paraíba. Os assentados afirmam que a área é alvo de cobiça de empreiteiras e incorporadoras para projetos imobiliários.

·       A noite do ataque

“No dia 10 de janeiro, a gente estava em vigília, cuidando do lote. Estávamos esperando a pessoa que estava ocupando o lote para conversar, explicar tudo. Só que a pessoa chegou, falou alguma coisa com o pessoal que estava lá – eu não estava no momento. E mais tarde, à noite, quase de madrugada, voltou. Mas não voltou sozinha, né? Voltou com o pessoal armado. Muito armado. Aí rolou discussão.

Eu estava relativamente perto do tiroteio. Começou uma discussão e, nisso, teve início toda a confusão. É difícil lembrar porque foi muito desespero, muito medo envolvido.

Fui atingida na palma da mão e o tiro foi parar no meu osso, no dedo indicador. Aí quebrou o meu dedo. Não consigo mexer esse dedo direito. Na hora não foi uma dor muito forte, porque a gente está tão afoito que a adrenalina sobe. A dor veio depois que o sangue esfriou.

Na hora, eu estava muito preocupada com a minha mãe. Ela gritou que estava bem, mas foi atingida. Não vi o Valdir nem o Gleison. Saí correndo para me proteger e não deu para ver. Eles foram resgatados às pressas.

Fui socorrida, colocaram a gente no carro e fomos para o hospital. Fui atendida de imediato e depois transferida para outro hospital. Minha mãe foi atingida no pé. Ela está bem, mas o pé dela está com uma tala, porque quebrou o osso.

Depois do ataque, a ficha demora a cair. Foi uma coisa muito bárbara, muito chocante. Eu tinha uma relação grande com o Valdir e com o Gleison, que foram assassinados. 

Não tenho sentimento por ser vítima. Só um pouco de revolta, porque sou canhota e não faço nada direito com a mão direita. Agora estou aprendendo a usar. Mas tenho uma grande revolta porque atingiram minha mãe. E também porque o Valdir foi um pai para mim e para os meus irmãos. Ele ensinou muita coisa para a gente. Ele e a Carmen (esposa do Valdir) me ensinaram a plantar a primeira muda, a primeira árvore. Ele falava sobre a química das plantas. Sabia muito sobre elas. Como plantar, o jeito certo de plantar, o que elas precisavam para crescer saudáveis.

Tinha uma mente incrível, uma memória excepcional. Ele coletava sementes. Não precisava de livro nem de internet para saber. Ele entendia o contexto histórico de muita coisa. Era uma liderança difícil de substituir. Ninguém é igual a ele.”

·       A luta por justiça

“Espero que isso mude, que a repercussão sirva para haver mudanças. Não é de agora que isso tem acontecido, mas precisou dessa barbárie para as pessoas prestarem atenção.

A especulação imobiliária é muito grande, tem gente vendendo lote que não pode. Que o Incra tome mais medidas. Que consiga tirar as pessoas que estão dando problema. E que a gente tenha mais proteção.

As pessoas estão recebendo ameaças. As declarações de ódio contra o MST estão tomando um rumo muito agressivo. A gente fica coagido.

Eu espero que seja feita justiça. Que eles peguem todos que estavam envolvidos. Estamos no processo para entrar no programa de proteção. Quem não se sentiria ameaçado? Eles entraram aqui muito fácil.

Minha vida normal, como era antes, não volta mais. Mas vou aprender a lidar com isso e seguir em frente.”

·       A criação do assentamento

“Minha mãe e meu pai se conheceram em um acampamento. Minha mãe foi assentada aqui, e meu pai chegou a ser assentado por um tempo, mas saiu depois que eles se separaram.

Minha mãe nasceu na Zona Leste de São Paulo. Conheceu meu pai, que era do acampamento do MST, e acabou migrando para o movimento, vindo para cá, para o Vale do Paraíba.

Foi assim que ocupamos uma fazenda de eucalipto que já estava destinada ao Incra, que fez a desapropriação. E foi isso. Minha mãe conta tanto essa história que parece que eu estava lá. Na época, ela tinha uns 28 anos, mais ou menos.

A vida dela em São Paulo era completamente diferente. Minha mãe era quase do estilo patricinha, sabe? Andava de salto alto, com roupas mais curtas. Um costume totalmente diferente do MST, onde a gente coloca a mão na massa, na enxada. 

Ela trabalhava e cuidava da gente. Não sou filha única, tenho mais três irmãos. Sou a mais nova, a caçula. Na capital, ela fazia faxina e alguns bicos para se virar.

Quando eu nasci, o assentamento ainda estava se consolidando. Antes disso, foram dois anos de acampamento. Quando eu era pequena, minha mãe tinha um lote diferente. Mas, quando esse onde moramos vagou, ela migrou para cá, que é mais perto da entrada do assentamento. Ele tem três hectares e meio.”

A produção do Olga Benário

“A gente trabalha muito com agrofloresta, com o plantio de SAFs (Sistema Agroflorestal). Recebemos alguns projetos recentemente e estamos focando na produção de café. Chegamos a plantar dois mil pés e estamos lutando para cuidar deles. O plantio é recente, está começando a dar os primeiros frutinhos. Antes do café, a gente trabalhava com quiabo, adubação verde e fazia mutirões pelo assentamento.

No começo, não tinha escola aqui. A gente estudava em uma perto do assentamento. No ensino médio, precisei ir para o centro da cidade de Tremembé. Faz pouco tempo que me formei. Minha infância foi muito boa. Cresci com meus irmãos, brincando com eles. Levava umas broncas da minha mãe às vezes, mas fiz boas amizades na escola. Aprendi muito e ainda tenho muito para aprender.

Agora estão surgindo algumas oportunidades de estudo, mas para áreas como agronomia, que não é muito o que eu quero. Pretendo trabalhar na área da saúde. Assim que eu melhorar da mão, quero entrar na faculdade de fisioterapia, massoterapia ou quiropraxia. São áreas que eu sou apaixonada. Quero trabalhar com a recuperação das pessoas. Assim como tem gente que cuida da gente, quero retribuir isso de alguma forma.”

·       O preconceito contra o MST

“Com a sociedade fora do assentamento, a relação sempre foi complicada. No ensino fundamental, sofri preconceito por ser do MST. Eu era tachada, mas não ligava muito. No ensino médio, isso mudou um pouco, porque alguns professores abordavam o assunto. Mas ainda é um tema pouco falado. Não está nos livros, e, quando aparece, é de forma superficial. Deveria ser mais divulgado nas escolas a história do movimento e os motivos da nossa luta.

Parece que a gente sempre sai como os bandidos da história. Mas não. Aquela terra não estava sendo usada como deveria. É preciso explicar melhor para que as pessoas entendam o que fazemos e por que estamos ali. O MST existe porque há uma desigualdade no acesso à terra. O Incra existe por isso também. Mas ninguém fala sobre as agressões que sofremos tentando conquistar um pedaço de terra para plantar, para sustentar nossa família.”

·       A história do nome Olga

“Meu nome é, em grande parte, por causa do assentamento. Minha mãe estudou por um tempo no Rio Grande do Sul, fez um curso técnico de administração de cooperativas. A turma dela se chamava Olga Benário. Então, quando sugeriram um nome para o assentamento, ela teve a ideia. O pessoal gostou e aceitou. Logo depois, eu nasci.

Por coincidência, o sobrenome dela é Bernardo. Então, ela queria colocar meu sobrenome de Benário. Mas a moça do cartório não deixou. Então, ficou Bernardo mesmo. Eu amo o meu nome, principalmente pela história da Olga Benário. Foi uma história de muita luta e sofrimento, e eu admiro muito ela. É uma honra carregar esse nome. Mas às vezes pesa um pouco. As pessoas criam muitas expectativas. Mesmo assim, eu amo.

Mas quero dar orgulho para minha mãe, me formar. Ela sempre quis que os filhos fizessem faculdade, tivessem ensino superior. Confesso que, há um tempo, isso não era meu plano. Eu queria só fazer um curso técnico e começar a trabalhar logo. Mas agora mudei de ideia. Tirei um tempo para pensar e decidi fazer faculdade.

Minha mãe sempre contou muito a história da Olga Benário. Eu assisti ao filme quando era pequena, mas não lembro de tudo. Quero assistir de novo mais para frente. Agora, com tudo o que aconteceu aqui, está tudo muito corrido. Mas vou tirar um tempinho e assistir de novo, com mais atenção, para entender melhor. É uma história muito forte. Se eu não souber direito, misericórdia, né? Tenho que estudar. Preciso aprender tudo certinho.”

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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