“Não há mais
possibilidade para uma chuva de 50 ou 60 mm não gerar problemas nas cidades”,
diz meteorologista
O Laboratório de Análise e
Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Universidade Federal de
Alagoas (UFAL) é um dos centros de acompanhamento meteorológico mais
importantes do Brasil. Doutor em Sensoriamento Remoto pela Universidade do
Arizona, nos Estados Unidos, o meteorologista Humberto Barbosa acompanha com
atenção o que se passa nos oceanos e na atmosfera para saber como serão os
invernos e verões no Nordeste.
Após as chuvas deste começo
de fevereiro, a Marco Zero conversou com Humberto Barbosa para saber como pode
ser o inverno e entender sobre a previsibilidade de eventos extremos. “Eu
sempre fico perplexo de como é colocada a situação do perigo das chuvas. Mas o
perigo não é no evento, o perigo está em como a nossa população está
distribuída e na fragilidade de onde ela está, na falta de planejamento urbano
nas cidades”, afirmou.
- Inverno no Nordeste
A região Nordeste do Brasil
tem vários regimes de chuva. De fevereiro a maio acontece o que chamamos de
quadra chuvosa do Semiárido – o Agreste e o Sertão. O período de chuva na costa
leste começa na segunda quinzena de abril, indo até julho. Normalmente, no
período de novembro até janeiro, as chuvas que ocorrem no Nordeste do Brasil,
principalmente no Semiárido, não dependem dos oceanos, embora eles também
influenciem. Ficamos muito preocupados com o inverno deste ano, de início,
porque havia muita incerteza. Para fazer essas previsões temos que analisar a
situação dos oceanos – se tem El Niño, se tem La Niña –, se a região da nossa
costa está aquecida e também a oscilação Madden-Julian, que é uma oscilação de
curto tempo, boa para entender a aceleração ou desaceleração de alguns sistemas
meteorológicos. Mas o que temos hoje é que deve ficar perto da média histórica
de chuvas.
- Cuidados nos dias após as
fortes chuvas
Se eu fosse um gestor, eu
ficaria muito atento à vazão dos rios, porque vai aumentar a cota de água que
vai passar por algumas cidades e pode trazer riscos de inundação, a depender da
geomorfologia das áreas de risco, principalmente nas áreas onde você tem uma
topografia mais elevada. Independente de ter mais chuvas nos próximos dias, são
áreas que precisam ser monitoradas.
Outro ponto que as defesas
civis precisam estar atentas é em relação ao encharcamento do solo onde choveu
mais. Pode não ter tido muitos deslizamentos agora porque o solo estava seco e
absorveu a água dessa chuva. Mas a partir de agora o risco é alto. Nem precisa
ser chuva como aconteceu nesses últimos dias, chuvas mais fracas podem provocar
o desmoronamento de casas que não têm estrutura, com o solo mais encharcado vai
ceder mais fácil. Pelas próximas duas semanas, pelo menos, o risco de deslizamentos
segue alto.
Áreas em que a
infraestrutura é boa, não vai ser um problema, vai ter ali alguns empecilhos,
aborrecimentos com o trânsito, enfim, dentro do normal. Agora, para as áreas
onde a geomorfologia, a topografia, enfim, a casa não tem uma estrutura, já
está encharcada porque o muro recebeu muita água, então, uma chuva de 20, 30
milímetros, é melhor prevenir e retirar as famílias para não ter risco.
Pode não ter
tido muitos deslizamentos agora porque o solo estava seco e absorveu a água
dessa chuva. Mas a partir de agora o risco de deslizamentos segue alto.
- A influência dos VCANs nas
chuvas do Nordeste
Os Vórtices Ciclônicos de
Altos Níveis (VCANs) vão ser decisivos na distribuição dessas chuvas na região
do Semiárido e do Nordeste do Brasil. Os VCANs são ventos que circulam em altos
níveis de forma muito intensa, na altitude de quase 10 quilômetros. A gente não
sente esses ventos na superfície. Esses ventos estão ocorrendo muito
intensamente na região da atmosfera e eles convergem ou divergem, podem
aumentar a concentração do vapor d’água e provocar chuva. As bordas desses
ventos intensos podem trazer muita chuva, enquanto o centro é seco e pode
provocar temperaturas altas. A previsibilidade dos vórtices ciclônicos é muito
difícil, porque eles estão associados às temperaturas da atmosfera. Não há
relação entre o oceano e a atmosfera nesse período para justificar a
previsibilidade dos VCANs. Mas sabemos que o período de novembro, dezembro e
janeiro, principalmente dezembro e janeiro e início de fevereiro, é o pico dos
VCANs.
Os vórtices ciclônicos podem
estar localizados em áreas que, normalmente, vão trazer mais secura para todo o
Nordeste, principalmente para a costa leste e o interior. Isso pode acontecer
muito em janeiro e fevereiro. Mas ele pode se posicionar também em uma área ou
em uma localização, principalmente ali na Bahia, e se deslocar, como aconteceu
essa semana, e provocar muita chuva. Tivemos no início de janeiro para todo o
Nordeste do Brasil, principalmente na costa leste e no interior, vórtices
ciclônicos muito secos. Não é que eles sejam secos, mas o centro dele, que
estava colocando altas temperaturas e muita irregularidade nas chuvas, tanto
para a região da costa leste, que não é o período de regime de chuva. De
novembro até março é o período que os vórtices ciclônicos ocorrem com maior
frequência.
- Como deve ser o inverno no
Grande Recife e litoral
Não é porque choveu muito
essa semana que também vai chover muito no inverno. Algumas vezes, a
pré-estação traz muita chuva e a estação não traz. Ou vice-versa. Não é linear,
porque esses fenômenos dependem de outras variáveis, principalmente de oceano,
da atmosfera, de frentes frias que podem se aproximar, de erupções vulcânicas.
Há muitos fenômenos naturais
e antropogênicos que vão alterar essa dinâmica. E, pior ainda, o perigo não é a
chuva, é a vulnerabilidade dos lugares. No Recife, Maceió ou na Paraíba as
zonas de riscos normalmente são as periferias, as regiões com menos
infraestrutura de drenagem, casas em áreas de risco por conta da topografia, ou
porque o solo é muito arenoso, foi desmatado.
Obviamente, a chuva não é o
problema. É que as pessoas estão localizadas em lugares onde não deveriam
estar. A nossa desigualdade social é muito grande e ela se sobressai na estação
chuvosa, seja do sudeste, do sul, seja onde for. Onde está a maior desigualdade
social nesse país, a estação chuvosa castiga.
Ainda não fizemos previsões
para o inverno na costa leste do Nordeste, mas a gente chama atenção,
principalmente nesse primeiro semestre, para o aumento das temperaturas porque
a atmosfera também está mais quente. Além disso, o oceano também está mais
quente, essa semana deu uma esfriada, mas estava muito mais aquecido na nossa
costa e isso também ajuda para essas chuvas na região costeira.
Isso com o efeito urbano – o
aumento das cidades, com cada vez mais asfaltamento, menos áreas florestadas,
menos parques – fica mais quente e mais difícil a drenagem também, porque o
solo não absorve parte dessa água. E aí acontece essas correntes de água muito
fortes nas cidades, arrastando carro, arrastando gente, casa, enfim.
O que a gente vê nesse
momento é que tem tudo propício para chuvas na costa leste, todos os
ingredientes estão lá. No mínimo, vai ser uma distribuição na média histórica.
Mas chuvas na média na costa leste sempre vão trazer problemas. Da mesma forma
que a temperatura da atmosfera está ficando mais quente, as nossas cidades
estão ficando cada ano com mais gente, com menos infraestrutura, com mais
problemas, com menos dinheiro das prefeituras para investir em prevenção.
A população também não
trabalha junto, joga lixo, derruba árvores. É uma combinação trágica, porque
como a nossa atmosfera vai trazer essa chuva, mesmo que não seja um ano bom de
inverno, isso não impede que eventos extremos aconteçam. Posso ter um ano que
não choveu muito, mas três eventos foram de chuvas muito intensas. Sendo
conservador, é bom que as prefeituras fiquem alertas, chuvas extremas vão
acontecer, é apenas uma questão de quando e onde. O gatilho é a chuva, mas o
desastre não é culpa dela. As cidades não estão preparadas para chuvas nem de
60 milímetros.
- Distribuição de chuvas no
Agreste e no Sertão
Temos um histórico muito
longo de registros, de 160 anos, sobre as informações de chuvas no Semiárido.
Tirando essas secas, o que vemos é que realmente o Semiárido tem uma
característica forte: há anos que chove mais, há outros anos que chove menos. É
uma gangorra que chamamos de variabilidade interanual, de como essa chuva se
distribui ao longo dos anos. É quase um batimento cardíaco. Apesar de ser
irregular, há uma certa previsibilidade.
Olhando a série histórica do
Nordeste, tivemos pelo menos cinco períodos de secas prolongadas, muito
conhecidos. A última seca realmente prolongada, que foi de seis anos, aconteceu
de 2011 até 2017. Desde 2018, temos tido anos que chove um pouquinho mais
próximo da média, um pouquinho acima da média histórica, um pouquinho menos,
mas muito próximo. Quando o Oceano Atlântico está mais quente, aumenta o vapor
d ‘água na costa e os ventos levam essa água para a região Nordeste do Brasil.
Aí você tem a zona de convergência que está baixa um pouquinho, traz mais chuva
lá para o oeste, para a parte setentrional do Nordeste.
Esses dois aspectos terminam
facilitando para que essa chuva chegue também no Sertão, a zona de convergência
e essa umidade que está vindo com os ventos da costa leste. Ano passado teve El
Niño no Pacífico, mas o oceano Atlântico salvou a estação chuvosa no inverno.
- A influência dos oceanos
Aproximadamente 85% da
distribuição das chuvas do inverno no Semiárido são explicadas pelos oceanos,
tanto pelo Pacífico quanto o Atlântico. Por isso que a previsibilidade depende
principalmente da questão dos oceanos, de qual o fenômeno que está dominando no
Pacífico, qual a situação no Atlântico, como é que está a temperatura das águas
do mar na costa leste, se está quente ou fria. Isso importa porque os ventos
vão levar a umidade se estiver quente para o interior, se a zona de
convergência está alta ou está baixa.
Os vórtices e a zona de
convergência estão ajudando, trazendo algumas chuvas, porque poucas semanas
atrás alguns municípios da Paraíba, Pernambuco e até Alagoas estavam com muita
irregularidade e algumas áreas estavam passando por problemas de distribuição
de água.
- Chuvas dentro da média
histórica e veranicos
Neste inverno do Semiárido
de 2025, as chuvas estão um pouquinho abaixo do que estava acontecendo em 2023
e 2024. Porém, nessas últimas semanas, deu uma melhorada por causa dos
vórtices. Agora, a partir de fevereiro, a gente pode sim atribuir aos oceanos
uma boa parte dessa distribuição das chuvas que vão ocorrer nas próximas
semanas e meses.
E qual é a situação hoje? O
Atlântico continua quente e o Pacífico melhorou muito em relação às últimas
semanas, está em condições de La Niña, que é muito bom para a região Nordeste
do Brasil. Só que a gente tem que ficar de olho na situação do Atlântico porque
ele pode, por pelo menos uma ou duas semanas, ele pode mudar, pode esfriar um
pouco. Essa semana ele já deu uma esfriada em algumas áreas, mas ainda assim o
VCAN ajudou. A zona de convergência também está em uma situação normal.
Então, no mínimo, prevemos
uma condição, olhando o cenário hoje, com chuvas muito próximas à média
histórica, nada fora do comum no Semiárido do Nordeste. Agora, o que pode
acontecer são os veranicos. O que são veranicos? São pequenos períodos de seca
durante a quadra chuvosa. Os VCANs, por exemplo, podem provocar esses
veranicos. E isso às vezes afeta as plantações de milho e feijão.
“A mudança
climática não justificaria, sozinha, as chuvas fortes no Recife”
- Chuva é gatilho, mas não o
problema
Eu sempre fico perplexo de
como é colocada a situação do perigo das chuvas. Mas o perigo não é no evento,
o perigo está em como a nossa população está distribuída e na fragilidade de
onde ela está, na falta de planejamento urbano nas cidades.
É preciso buscar
alternativas não imediatas, não emergenciais, para as áreas mais vulneráveis.
Ou você tira a população dessas zonas de risco ou trabalha a médio prazo em
infraestrutura para que eu não precise tirar a população. É um dilema que temos
que questionar aos nossos gestores. É melhor planejar a médio prazo, criar
infraestrutura ou, a curto prazo, fazer aquela coisa meio emergencial, como
sempre foi como o Semiárido. A questão da água no Semiárido sempre foi
emergencial.
Se você pegar toda a costa
leste do Brasil, você raramente não vai ter uma grande cidade sem a
vulnerabilidade de ocorrer fenômenos extremos. Porque tem vários fatores: a
atmosfera está mais quente, estamos produzindo mais gases na atmosfera, que
estão absorvendo mais energia. A radiação solar interage com essas partículas e
elas podem ganhar mais temperatura. Além do efeito do aquecimento global, há a
questão local, com as cidades cada vez mais asfaltadas, com a drenagem
terrível, com mais lixo, com menos parques, com mais áreas de risco. Quando
você soma esses ingredientes, você tem o desastre.
Não é um desastre natural.
Se ocorrer uma chuva de 100 milímetros no Semiárido, com exceção das barragens,
ou daquelas pequenas cidades, no geral, vai ser tranquilo. Agora, se eu botar
100 milímetros em Recife em 24 horas não tem como ser tranquilo.
Não há mais possibilidade
para uma chuva de 50, 60 milímetros nesses centros urbanos não gerar problemas.
Todo o planejamento urbano de como as cidades estão distribuídas tem que ser
repensado. O maior problema da questão das chuvas no Brasil é a desigualdade
social.
Não é a chuva que faz a
desigualdade, mas é a forma como a desigualdade se concentra no Brasil, nos
grandes centros urbanos, que empurra as pessoas mais pobres para áreas de
risco. Os moradores não estão ali porque querem, mas porque não têm opção
mesmo.
A vulnerabilidade é maior em
áreas de morros, claro, pela topografia e pelo desmatamento, mas uma cidade que
tem o nível do mar muito próximo, como acontece no Recife, vai continuar a ter
muitos problemas sérios, não só agora, mas no futuro próximo.
- As mudanças climáticas e os
VCANs
A forma mais fácil de
explicar fenômenos e condições climáticas é dizer “ah, isso foi por conta das
mudanças climáticas”. Mas do ponto de vista científico, tem sempre que tomar
muito cuidado, porque essa relação não é direta. Há outros fatores que a
mudança climática não explicaria. O que aconteceu no litoral nesta semana foi
um evento extremo, anômalo. Temos visto que muitos desses eventos estão
indiretamente conectados com as altas temperaturas na atmosfera. E os gases que
são produzidos na indústria, nos carros, na agricultura, na pecuária, pelo
desmatamento, influenciam na distribuição desses gases, que terminam
esquentando mais a atmosfera. Então, indiretamente, esses extremos estão
ficando cada vez mais extremos.
E esse extremo teria uma
ligação com o aquecimento da atmosfera provocada por esses gases. O que a Nasa e as agências que monitoram isso na escala global
mostram é que nos últimos dez, nove anos as temperaturas em todo o globo, na
média, estão mais quentes, a cada ano está ficando mais quente.
Quando a atmosfera esquenta
um grau, em cidades como o Recife, aumenta em 7% a umidade relativa no ar.
Então, quando eu combino altas temperaturas com alta umidade relativa do ar eu
tenho os ingredientes para formar chuvas muito intensas. Indiretamente, essa
atmosfera mais quente com mais umidade, é uma combinação propícia para eventos
extremos, e que aí tem um pequeno componente também das mudanças climáticas.
A mudança climática não
justificaria, sozinha, as chuvas fortes no Recife, mas foi um componente
indireto, trazendo extremos cada vez mais extremos. Por conta de uma série de
fatores, como o asfaltamento, o desmatamento, a falta de drenagem, as chuvas
têm sido terríveis para os grandes centros urbanos. Mas a chuva não é o
problema, e sim a vulnerabilidade da cidade. Os vórtices ciclônicos ocorrem no
Semiárido, nos oceanos e ninguém nem sequer fala sobre isso. O máximo que pode
ter é a Marinha lançar um aviso de instabilidade, ondas gigantes, para as
embarcações.
Fonte: Marco Zero
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