sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

“Não há mais possibilidade para uma chuva de 50 ou 60 mm não gerar problemas nas cidades”, diz meteorologista

O Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) é um dos centros de acompanhamento meteorológico mais importantes do Brasil. Doutor em Sensoriamento Remoto pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, o meteorologista Humberto Barbosa acompanha com atenção o que se passa nos oceanos e na atmosfera para saber como serão os invernos e verões no Nordeste. 

Após as chuvas deste começo de fevereiro, a Marco Zero conversou com Humberto Barbosa para saber como pode ser o inverno e entender sobre a previsibilidade de eventos extremos. “Eu sempre fico perplexo de como é colocada a situação do perigo das chuvas. Mas o perigo não é no evento, o perigo está em como a nossa população está distribuída e na fragilidade de onde ela está, na falta de planejamento urbano nas cidades”, afirmou.

  • Inverno no Nordeste

A região Nordeste do Brasil tem vários regimes de chuva. De fevereiro a maio acontece o que chamamos de quadra chuvosa do Semiárido – o Agreste e o Sertão. O período de chuva na costa leste começa na segunda quinzena de abril, indo até julho. Normalmente, no período de novembro até janeiro, as chuvas que ocorrem no Nordeste do Brasil, principalmente no Semiárido, não dependem dos oceanos, embora eles também influenciem. Ficamos muito preocupados com o inverno deste ano, de início, porque havia muita incerteza. Para fazer essas previsões temos que analisar a situação dos oceanos – se tem El Niño, se tem La Niña –, se a região da nossa costa está aquecida e também a oscilação Madden-Julian, que é uma oscilação de curto tempo, boa para entender a aceleração ou desaceleração de alguns sistemas meteorológicos. Mas o que temos hoje é que deve ficar perto da média histórica de chuvas.

  • Cuidados nos dias após as fortes chuvas

Se eu fosse um gestor, eu ficaria muito atento à vazão dos rios, porque vai aumentar a cota de água que vai passar por algumas cidades e pode trazer riscos de inundação, a depender da geomorfologia das áreas de risco, principalmente nas áreas onde você tem uma topografia mais elevada. Independente de ter mais chuvas nos próximos dias, são áreas que precisam ser monitoradas.

Outro ponto que as defesas civis precisam estar atentas é em relação ao encharcamento do solo onde choveu mais. Pode não ter tido muitos deslizamentos agora porque o solo estava seco e absorveu a água dessa chuva. Mas a partir de agora o risco é alto. Nem precisa ser chuva como aconteceu nesses últimos dias, chuvas mais fracas podem provocar o desmoronamento de casas que não têm estrutura, com o solo mais encharcado vai ceder mais fácil. Pelas próximas duas semanas, pelo menos, o risco de deslizamentos segue alto.

Áreas em que a infraestrutura é boa, não vai ser um problema, vai ter ali alguns empecilhos, aborrecimentos com o trânsito, enfim, dentro do normal. Agora, para as áreas onde a geomorfologia, a topografia, enfim, a casa não tem uma estrutura, já está encharcada porque o muro recebeu muita água, então, uma chuva de 20, 30 milímetros, é melhor prevenir e retirar as famílias para não ter risco.

Pode não ter tido muitos deslizamentos agora porque o solo estava seco e absorveu a água dessa chuva. Mas a partir de agora o risco de deslizamentos segue alto.

  • A influência dos VCANs nas chuvas do Nordeste

Os Vórtices Ciclônicos de Altos Níveis (VCANs) vão ser decisivos na distribuição dessas chuvas na região do Semiárido e do Nordeste do Brasil. Os VCANs são ventos que circulam em altos níveis de forma muito intensa, na altitude de quase 10 quilômetros. A gente não sente esses ventos na superfície. Esses ventos estão ocorrendo muito intensamente na região da atmosfera e eles convergem ou divergem, podem aumentar a concentração do vapor d’água e provocar chuva. As bordas desses ventos intensos podem trazer muita chuva, enquanto o centro é seco e pode provocar temperaturas altas. A previsibilidade dos vórtices ciclônicos é muito difícil, porque eles estão associados às temperaturas da atmosfera. Não há relação entre o oceano e a atmosfera nesse período para justificar a previsibilidade dos VCANs. Mas sabemos que o período de novembro, dezembro e janeiro, principalmente dezembro e janeiro e início de fevereiro, é o pico dos VCANs.

Os vórtices ciclônicos podem estar localizados em áreas que, normalmente, vão trazer mais secura para todo o Nordeste, principalmente para a costa leste e o interior. Isso pode acontecer muito em janeiro e fevereiro. Mas ele pode se posicionar também em uma área ou em uma localização, principalmente ali na Bahia, e se deslocar, como aconteceu essa semana, e provocar muita chuva. Tivemos no início de janeiro para todo o Nordeste do Brasil, principalmente na costa leste e no interior, vórtices ciclônicos muito secos. Não é que eles sejam secos, mas o centro dele, que estava colocando altas temperaturas e muita irregularidade nas chuvas, tanto para a região da costa leste, que não é o período de regime de chuva. De novembro até março é o período que os vórtices ciclônicos ocorrem com maior frequência.

  • Como deve ser o inverno no Grande Recife e litoral

Não é porque choveu muito essa semana que também vai chover muito no inverno. Algumas vezes, a pré-estação traz muita chuva e a estação não traz. Ou vice-versa. Não é linear, porque esses fenômenos dependem de outras variáveis, principalmente de oceano, da atmosfera, de frentes frias que podem se aproximar, de erupções vulcânicas.

Há muitos fenômenos naturais e antropogênicos que vão alterar essa dinâmica. E, pior ainda, o perigo não é a chuva, é a vulnerabilidade dos lugares. No Recife, Maceió ou na Paraíba as zonas de riscos normalmente são as periferias, as regiões com menos infraestrutura de drenagem, casas em áreas de risco por conta da topografia, ou porque o solo é muito arenoso, foi desmatado.

Obviamente, a chuva não é o problema. É que as pessoas estão localizadas em lugares onde não deveriam estar. A nossa desigualdade social é muito grande e ela se sobressai na estação chuvosa, seja do sudeste, do sul, seja onde for. Onde está a maior desigualdade social nesse país, a estação chuvosa castiga.

Ainda não fizemos previsões para o inverno na costa leste do Nordeste, mas a gente chama atenção, principalmente nesse primeiro semestre, para o aumento das temperaturas porque a atmosfera também está mais quente. Além disso, o oceano também está mais quente, essa semana deu uma esfriada, mas estava muito mais aquecido na nossa costa e isso também ajuda para essas chuvas na região costeira.

Isso com o efeito urbano – o aumento das cidades, com cada vez mais asfaltamento, menos áreas florestadas, menos parques – fica mais quente e mais difícil a drenagem também, porque o solo não absorve parte dessa água. E aí acontece essas correntes de água muito fortes nas cidades, arrastando carro, arrastando gente, casa, enfim.

O que a gente vê nesse momento é que tem tudo propício para chuvas na costa leste, todos os ingredientes estão lá. No mínimo, vai ser uma distribuição na média histórica. Mas chuvas na média na costa leste sempre vão trazer problemas. Da mesma forma que a temperatura da atmosfera está ficando mais quente, as nossas cidades estão ficando cada ano com mais gente, com menos infraestrutura, com mais problemas, com menos dinheiro das prefeituras para investir em prevenção.

A população também não trabalha junto, joga lixo, derruba árvores. É uma combinação trágica, porque como a nossa atmosfera vai trazer essa chuva, mesmo que não seja um ano bom de inverno, isso não impede que eventos extremos aconteçam. Posso ter um ano que não choveu muito, mas três eventos foram de chuvas muito intensas. Sendo conservador, é bom que as prefeituras fiquem alertas, chuvas extremas vão acontecer, é apenas uma questão de quando e onde. O gatilho é a chuva, mas o desastre não é culpa dela. As cidades não estão preparadas para chuvas nem de 60 milímetros.

  • Distribuição de chuvas no Agreste e no Sertão

Temos um histórico muito longo de registros, de 160 anos, sobre as informações de chuvas no Semiárido. Tirando essas secas, o que vemos é que realmente o Semiárido tem uma característica forte: há anos que chove mais, há outros anos que chove menos. É uma gangorra que chamamos de variabilidade interanual, de como essa chuva se distribui ao longo dos anos. É quase um batimento cardíaco. Apesar de ser irregular, há uma certa previsibilidade.

Olhando a série histórica do Nordeste, tivemos pelo menos cinco períodos de secas prolongadas, muito conhecidos. A última seca realmente prolongada, que foi de seis anos, aconteceu de 2011 até 2017. Desde 2018, temos tido anos que chove um pouquinho mais próximo da média, um pouquinho acima da média histórica, um pouquinho menos, mas muito próximo. Quando o Oceano Atlântico está mais quente, aumenta o vapor d ‘água na costa e os ventos levam essa água para a região Nordeste do Brasil. Aí você tem a zona de convergência que está baixa um pouquinho, traz mais chuva lá para o oeste, para a parte setentrional do Nordeste.

Esses dois aspectos terminam facilitando para que essa chuva chegue também no Sertão, a zona de convergência e essa umidade que está vindo com os ventos da costa leste. Ano passado teve El Niño no Pacífico, mas o oceano Atlântico salvou a estação chuvosa no inverno.

  • A influência dos oceanos

Aproximadamente 85% da distribuição das chuvas do inverno no Semiárido são explicadas pelos oceanos, tanto pelo Pacífico quanto o Atlântico. Por isso que a previsibilidade depende principalmente da questão dos oceanos, de qual o fenômeno que está dominando no Pacífico, qual a situação no Atlântico, como é que está a temperatura das águas do mar na costa leste, se está quente ou fria. Isso importa porque os ventos vão levar a umidade se estiver quente para o interior, se a zona de convergência está alta ou está baixa.

Os vórtices e a zona de convergência estão ajudando, trazendo algumas chuvas, porque poucas semanas atrás alguns municípios da Paraíba, Pernambuco e até Alagoas estavam com muita irregularidade e algumas áreas estavam passando por problemas de distribuição de água.

  • Chuvas dentro da média histórica e veranicos

Neste inverno do Semiárido de 2025, as chuvas estão um pouquinho abaixo do que estava acontecendo em 2023 e 2024. Porém, nessas últimas semanas, deu uma melhorada por causa dos vórtices. Agora, a partir de fevereiro, a gente pode sim atribuir aos oceanos uma boa parte dessa distribuição das chuvas que vão ocorrer nas próximas semanas e meses.

E qual é a situação hoje? O Atlântico continua quente e o Pacífico melhorou muito em relação às últimas semanas, está em condições de La Niña, que é muito bom para a região Nordeste do Brasil. Só que a gente tem que ficar de olho na situação do Atlântico porque ele pode, por pelo menos uma ou duas semanas, ele pode mudar, pode esfriar um pouco. Essa semana ele já deu uma esfriada em algumas áreas, mas ainda assim o VCAN ajudou. A zona de convergência também está em uma situação normal.

Então, no mínimo, prevemos uma condição, olhando o cenário hoje, com chuvas muito próximas à média histórica, nada fora do comum no Semiárido do Nordeste. Agora, o que pode acontecer são os veranicos. O que são veranicos? São pequenos períodos de seca durante a quadra chuvosa. Os VCANs, por exemplo, podem provocar esses veranicos. E isso às vezes afeta as plantações de milho e feijão.

“A mudança climática não justificaria, sozinha, as chuvas fortes no Recife”

  • Chuva é gatilho, mas não o problema

Eu sempre fico perplexo de como é colocada a situação do perigo das chuvas. Mas o perigo não é no evento, o perigo está em como a nossa população está distribuída e na fragilidade de onde ela está, na falta de planejamento urbano nas cidades.

É preciso buscar alternativas não imediatas, não emergenciais, para as áreas mais vulneráveis. Ou você tira a população dessas zonas de risco ou trabalha a médio prazo em infraestrutura para que eu não precise tirar a população. É um dilema que temos que questionar aos nossos gestores. É melhor planejar a médio prazo, criar infraestrutura ou, a curto prazo, fazer aquela coisa meio emergencial, como sempre foi como o Semiárido. A questão da água no Semiárido sempre foi emergencial.

Se você pegar toda a costa leste do Brasil, você raramente não vai ter uma grande cidade sem a vulnerabilidade de ocorrer fenômenos extremos. Porque tem vários fatores: a atmosfera está mais quente, estamos produzindo mais gases na atmosfera, que estão absorvendo mais energia. A radiação solar interage com essas partículas e elas podem ganhar mais temperatura. Além do efeito do aquecimento global, há a questão local, com as cidades cada vez mais asfaltadas, com a drenagem terrível, com mais lixo, com menos parques, com mais áreas de risco. Quando você soma esses ingredientes, você tem o desastre.

Não é um desastre natural. Se ocorrer uma chuva de 100 milímetros no Semiárido, com exceção das barragens, ou daquelas pequenas cidades, no geral, vai ser tranquilo. Agora, se eu botar 100 milímetros em Recife em 24 horas não tem como ser tranquilo.

Não há mais possibilidade para uma chuva de 50, 60 milímetros nesses centros urbanos não gerar problemas. Todo o planejamento urbano de como as cidades estão distribuídas tem que ser repensado. O maior problema da questão das chuvas no Brasil é a desigualdade social.

Não é a chuva que faz a desigualdade, mas é a forma como a desigualdade se concentra no Brasil, nos grandes centros urbanos, que empurra as pessoas mais pobres para áreas de risco. Os moradores não estão ali porque querem, mas porque não têm opção mesmo.

A vulnerabilidade é maior em áreas de morros, claro, pela topografia e pelo desmatamento, mas uma cidade que tem o nível do mar muito próximo, como acontece no Recife, vai continuar a ter muitos problemas sérios, não só agora, mas no futuro próximo.

  • As mudanças climáticas e os VCANs

A forma mais fácil de explicar fenômenos e condições climáticas é dizer “ah, isso foi por conta das mudanças climáticas”. Mas do ponto de vista científico, tem sempre que tomar muito cuidado, porque essa relação não é direta. Há outros fatores que a mudança climática não explicaria. O que aconteceu no litoral nesta semana foi um evento extremo, anômalo. Temos visto que muitos desses eventos estão indiretamente conectados com as altas temperaturas na atmosfera. E os gases que são produzidos na indústria, nos carros, na agricultura, na pecuária, pelo desmatamento, influenciam na distribuição desses gases, que terminam esquentando mais a atmosfera. Então, indiretamente, esses extremos estão ficando cada vez mais extremos.

E esse extremo teria uma ligação com o aquecimento da atmosfera provocada por esses gases. O que a Nasa e as agências que monitoram isso na escala global mostram é que nos últimos dez, nove anos as temperaturas em todo o globo, na média, estão mais quentes, a cada ano está ficando mais quente.

Quando a atmosfera esquenta um grau, em cidades como o Recife, aumenta em 7% a umidade relativa no ar. Então, quando eu combino altas temperaturas com alta umidade relativa do ar eu tenho os ingredientes para formar chuvas muito intensas. Indiretamente, essa atmosfera mais quente com mais umidade, é uma combinação propícia para eventos extremos, e que aí tem um pequeno componente também das mudanças climáticas.

A mudança climática não justificaria, sozinha, as chuvas fortes no Recife, mas foi um componente indireto, trazendo extremos cada vez mais extremos. Por conta de uma série de fatores, como o asfaltamento, o desmatamento, a falta de drenagem, as chuvas têm sido terríveis para os grandes centros urbanos. Mas a chuva não é o problema, e sim a vulnerabilidade da cidade. Os vórtices ciclônicos ocorrem no Semiárido, nos oceanos e ninguém nem sequer fala sobre isso. O máximo que pode ter é a Marinha lançar um aviso de instabilidade, ondas gigantes, para as embarcações.

 

Fonte: Marco Zero Conteúdo

 

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