Riqueza é tempo disponível – e nada mais
A citação evocada no título vem de um
antigo tratado inglês de economia política supostamente escrito por um Charles
Dilke. Datado de 1821, ele possui algumas passagens notáveis:
Se todo o trabalho de um país
só fosse suficiente para prover o sustento de toda a população, não haveria
nenhum trabalho excedente, e, consequentemente, nada que pudesse ser acumulado
como capital. […] Logo, a próxima consequência seria que onde os homens até
hoje trabalharam doze horas por dia, agora trabalhariam seis, e isso é riqueza
nacional, isso é a prosperidade nacional. Mesmo depois de todos os sofismas
ociosos, não há, graças a Deus, meio de aumentar a riqueza de uma nação a não
ser aumentando as conveniências da vida: de tal forma que a riqueza seja
liberdade — liberdade para buscar lazer — liberdade para apreciar a vida —
liberdade para cultivar a mente: é tempo disponível e nada mais. Quando uma
sociedade tiver chegado a esse ponto, se os indivíduos que a compõem ficarem,
por essas seis horas, deitados ao sol, ou dormindo na sombra, ou ociosos, ou
jogando, ou investindo seu trabalho em coisas perecíveis, que finalmente é a
consequência necessária se eles forem trabalhar, deve ser uma escolha de cada
homem individualmente. […] O que quer que possa ser devido ao capitalista, ele
só pode receber o trabalho excedente do trabalhador; porque o trabalhador tem
de viver; ele precisa satisfazer os da natureza antes de satisfazer os desejos
do capitalista.
O conceito de mais-valor como que é
esboçado ao final do texto. O autor ronda a ideia, já que ele precisamente
chega no resultado de que o capitalista tem de se apropriar de uma parte do
trabalho do operário. Mas que parte seria essa se o próprio trabalhador
trabalha para garantir seu sustento? A parte que excede o trabalho pela
subsistência. No entanto, ainda estamos longe do conceito de tempo de trabalho
socialmente necessário, a mediação que permitiria enfim passar do conceito de
trabalho excedente para aquele de mais-valor. Em todo caso, décadas mais tarde,
esse texto seria retomado por Marx nos Grundrisse.
Ele endossa a fórmula de Dilke, mas, antes, procura desenvolver plenamente as
determinações que permitem chegar a ela, enriquecendo nossa compreensão do
funcionamento do tempo no capitalismo. No longo trecho a seguir, citação
extensa mas necessária de um belo texto, logicamente bem desenvolvido, Marx
arremata o raciocínio de Dilke:
A criação de muito tempo
disponível para além do tempo necessário de trabalho, para a sociedade como um
todo e para cada membro dela (i.e., espaço para o desenvolvimento das forças
produtivas plenas do indivíduo singular, logo também da sociedade), essa
criação de não tempo de trabalho aparece, da perspectiva do capital, assim como
de todos os estágios anteriores, como não tempo de trabalho, tempo livre para
alguns indivíduos. O capital dá o seu aporte aumentando o tempo de trabalho
excedente da massa por todos os meios da arte e da ciência, porque a sua
riqueza consiste diretamente na apropriação de tempo de trabalho excedente; uma
vez que sua finalidade é diretamente o valor, não o valor de uso. Desse modo, e
a despeito dele mesmo, ele é instrumento na criação dos meios para o tempo
social disponível, na redução do tempo de trabalho de toda a sociedade a um
mínimo decrescente e, com isso, na transformação do tempo de todos em tempo
livre para seu próprio desenvolvimento. Todavia, sua tendência é sempre, por um
lado, de criar tempo disponível, por outro lado, de convertê-lo em trabalho
excedente. Quando tem muito êxito, o capital sofre de superprodução e, então, o
trabalho necessário é interrompido porque não há trabalho excedente para ser
valorizado pelo capital. Quanto mais se desenvolve essa contradição, tanto mais
se evidencia que o crescimento das forças produtivas não pode ser confinado à
apropriação do trabalho excedente alheio, mas que a própria massa de
trabalhadores tem de se apropriar do seu trabalho excedente. Tendo-o feito — e
com isso o tempo disponível deixa de ter uma existência contraditória —, então,
por um lado, o tempo necessário de trabalho terá sua medida nas necessidades do
indivíduo social, por outro, o desenvolvimento da força produtiva social
crescerá com tanta rapidez que, embora a produção seja agora calculada com base
na riqueza de todos, cresce o tempo disponível de todos. Pois a verdadeira
riqueza é a força produtiva desenvolvida de todos os indivíduos. Nesse caso, o
tempo de trabalho não é mais de forma alguma a medida da riqueza, mas o tempo
disponível.
Nesse trecho, Marx mostra como é o próprio
capital que — em sua ânsia de valorização — aumenta a produtividade e,
portanto, conduz ao tempo de não-trabalho. Mas esse tempo é insuportável ao
próprio capital, pois ele só pode almejar a autovalorização. Dessa forma, ele
tem que transformar todo tempo disponível, liberado, em tempo de
trabalho. Isso seria um caminho que levaria à crise, momento em que a contradição
vem à tona e, assim, se resolve. Mas, nas entrelinhas, o texto abre espaço
também para sugerir uma solução política: a da apropriação desse tempo
disponível por alguma classe. Nesse caso, esse tempo disponível, caso não seja
reposto como mais tempo de trabalho, será alvo de uma disputa.
A luta das classes pela apropriação do
tempo disponível é uma constante dos locais de trabalho e vai até os mínimos
detalhes dentro e fora da jornada. Dentro dela, até mesmo as necessidades
fisiológicas dos trabalhadores são alvo de disputa; fora dela, com as novas
tecnologias, alguns preferem manter o celular desligado a receber inúmeras
mensagens de incontáveis grupos ligados ao trabalho, ligações fora de hora ou
até correr o alto risco de se ver em uma reunião online que poderia ser apenas
uma conversa de corredor. Marx já havia sido categórico ao escrever, no famoso
capítulo da Jornada de Trabalho no livro 1 de O capital: “O tempo durante o qual o
trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de
trabalho que comprou do trabalhador. Se este consome seu tempo disponível para
si mesmo, ele furta o capitalista.” Um pouco mais adiante, ele conclui: “Tem-se
aqui, portanto, uma antinomia, um direito contra outro direito, ambos
igualmente apoiados na lei de troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem
decide é a força.” Ou seja, estamos diante de um caso curioso de uma
mercadoria capaz de se rebelar contra seu dono, de uma mercadoria dotada de
alma!
Hoje infelizmente o Brasil não ocupa um
papel privilegiado nos debates a respeito da jornada de trabalho. As
experiências internacionais parecem nos colocar em posição de desvantagem em
relação a nossa capacidade de imaginar como a jornada poderia melhorar a
qualidade de vida do trabalhador. Finlândia, Bélgica, Escócia, Islândia,
Espanha, Japão, Emirados Árabes e até mesmo a Coreia do Sul trazem propostas e
ideias sobre a jornada. Vemos uma reabertura nos debates sobre a jornada de
trabalho. Um breve lapso em que podemos experimentar um tipo de experimentalismo
democrático em alguns países, com tentativas bastante imaginativas de remodelar
a jornada de trabalho, como é o caso da Nova Zelândia ou da Alemanha. Cada vez
mais se discute a semana de 4 dias sem perdas de salários, em uma jornada
de 32 horas. Não apenas isso, mas também a precarização intensa das
últimas décadas tem, em alguns casos, sido revista, como aconteceu na Espanha
em 2022 com a revogação da reforma trabalhista de 2012.
Por aqui a realidade trabalhista é bem
outra. Depois das lutas da chamada Greve da Vaca Brava, em 1985, na qual se
estabeleceu o padrão de 44 horas semanais de trabalho como regra, o tema
da redução da jornada voltou a aparecer apenas duas vezes. A ala mais
progressista da constituinte tentava encaminhar a proposta de 40 horas,
até que o Centrão manteve as 44. Mais tarde, em 2003, a campanha “Reduzir a
Jornada de Trabalho é Gerar Empregos” conseguiu mobilizar centrais sindicais,
além de movimentos de rua e greves, e foi apoiada pelo então senador Paulo Paim
e o deputado Inácio Arruda, por meio da tramitação da PEC 393 sobre a
redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. Porém, essa luta
declinou de vez em 2010.
Patrocinada em peso pelo congresso, a
Reforma Trabalhista de 2017 foi a pá de cal. Não apenas os acúmulos dos anos
anteriores foram perdidos, como também qualquer vestígio de avanço nos debates
e na consciência social sobre a necessidade de redução de jornada foram por
água abaixo. Seria demasiadamente extenso listar todos os revezes promovidos
pela reforma, mas, para falar apenas do tema da jornada, houve um retrocesso
voraz. O principal, sem dúvida, foi a terceirização ampla e irrestrita, sem nem
mesmo que a empresa tenha que manter sua atividade-fim. Por meio do acolhimento
de novas formas de trabalho, a reforma autorizou postos que não estão cobertos
pelas garantias laborais, permitindo que houvesse desde microjornadas
intermitentes até jornadas estafantes que podem chegar a mais de 1.200 horas,
especialmente entre os entregadores que trabalham para aplicativos, além da
disseminação irrestrita da jornada 12×36, que antes valia apenas para algumas
categorias. Tratou-se de uma engenharia jurídica para permitir um domínio
patronal cada vez maior sobre a jornada de trabalho, sempre velada pelo mote da
“negociação entre as partes”.
Depois da Reforma Trabalhista, já no
governo Bolsonaro, houve a Reforma Sindical, tentando asfixiar economicamente o
sindicalismo por meio da estratégia de se pedir autorização para o trabalhador
do recolhimento da contribuição sindical, portanto sem dedução compulsória.
Confrontado com o que via ser um decréscimo de sua renda e sem formação
política para compreender a relevância do síndico, a medida tentou jogar o
trabalhador, atravessado por uma subjetividade neoliberal, contra o sindicato.
Sempre com a retórica liberal à frente, ainda durante o governo de Bolsonaro a
jornada passou por mais desregulação, liberando o trabalho aos finais de semana
e feriados e o trabalho noturno — na Medida Provisória denominada de “Contrato
de Trabalho Verde e Amarelo”.
Hoje, com o movimento “Vida Além do
Trabalho”, voltamos a discutir a escala 6×1 que, no fundo, é discutir a
vigência da jornada de 44 horas semanais. Por isso, o assunto tem que ser
enfrentado com uma PEC, que exige uma mobilização contínua, dada sua
dificuldade de aprovação por exigir um apoio massivo dos deputados. Hoje, a
chamada jornada inglesa, de 8 horas e 48 minutos por dia, é permitida por lei,
com o objetivo de proporcionar a escala 5×2, liberando os finais de semana. A
ideia da PEC seria baixar de 44 para 36 horas semanais, implementando uma
escala 4×3. Entretanto, se a extrema-direita caiu na cilada de defender a
escala 6×1, até mesmo contra sua própria base de eleitores, muitos deles
favoráveis à PEC, o centrão já começou a se articular para rebater essa PEC com
outra: a do trabalho por hora, tal como existe nos EUA. Ou seja, regulação
mínima, tudo ficaria por conta do acordo entre empregado e empregador,
garantindo a liberdade do capital contra o trabalho, dado que essa negociação
nunca é de fato negociada, mas imposta.
No entanto, se o centrão se apresenta como
o grande representante do capital e do vira-latismo em sua tentativa de pautar
o trabalho por hora, tal como nos EUA, houve, diante de muitas críticas, uma
oscilação na extrema-direita. Nos assombrosos paradoxos e reviravoltas de nosso
tempo, um senador bolsonarista retomou e defendeu a tradição da economia moral
e do tempo justo de trabalho. No dia 12 de novembro, ao comentar, indignado, a
defesa que alguns de seus colegas fizeram da escala 6×1, Cleitinho Azevedo
proferiu um discurso que se revelou um surto de economia popular com pitadas de
trauma infantil, e que circulou bastante nas redes:
Eu vim aqui hoje porque eu não
vou deixar nunca de me posicionar sobre essa questão da escala de 6 por um 1
para os trabalhadores. Eu sou trabalhador a vida inteira, sempre fiz essa
escala. Eu vi meu pai, que morreu agora neste ano, com 70 anos de idade,
fazendo a escala sete por zero. Sempre trabalhou, até não foi seis por um, foi sete
por zero. E sabe o que aconteceu? O meu pai, sempre que chegava em casa, já se
deitava para dormir, para acordar no outro dia para trabalhar. O meu pai não ia
aos jogos de futebol quando eu jogava bola. O meu pai não foi às apresentações
que eu fiz quando eu era cantor; nunca ia. O meu pai não parava um dia para ele
poder me ensinar a estudar. Sabe por quê? Não fazia, não é porque ele não
queria, não. É porque ele não tinha tempo; é porque sempre trabalhou. Então já
foi falada aqui por parlamentares de direita e de esquerda que essa questão da
escala 6×1 é desumana. Então que a gente tira essa questão de ideologia, sabe?,
que a gente possa representar o povo brasileiro aqui e que possamos, sim, nesse
momento, agora, acabar com essa escala seis por um, porque não é questão de
ideologia, não. Essa questão de escala de seis por um é questão de dignidade
humana. Quem vai criticar é porque não tem empatia pelo próximo. Por que quem
vai criticar é porque não faz essa escala de seis por um. Então eu sei muito bem,
eu passei a minha vida inteira fazendo essa escala. Eu amo o que eu faço.
Sempre amei trabalhar. Sempre. Só que eu acho que a gente tem que fazer o
seguinte: a gente tem que valorizar, sim, o trabalhador. Sabe por que eu tô
falando isso? Porque já teve aqui reforma da previdência, já teve aqui reforma
trabalhista, já passou todas as reformas que precisava passar pra ferrar com o
povo, que o país ia melhorar. Por que que não pode ter algo que beneficia o
povo? Qual é o problema de fazer isso? E que fique claro: fonte de riqueza é o
trabalhador, o empreendedor, o empresário; fonte de despesa somos nós.
Seria importante que lêssemos esse
depoimento em sua dupla natureza. De um lado, é um forte testemunho de um
trabalhador que sentiu na pele o que uma jornada de trabalho extensa pode
causar dentro do ambiente familiar: um filho que não é devidamente reconhecido
em seu desejo de afeto e um pai que se esvai no trabalho para garantir o
sustento de casa. Por outro lado, temos de perceber que essa opinião é emitida
por alguém que, hoje, é subjetiva e objetivamente de extrema-direita. Talvez
aqui valha o velho ditado de que a ocasião faz o homem. Por sua sensibilidade
humanista, esse trabalhador poderia ter se tornado de esquerda; queriam os
tempos, contudo, que fosse diferente. Em todo caso, o sentido político dessa
consideração é grave. Mesmo que pareça apenas um caso isolado, um lampejo de
uma consciência ao recordar seu sofrimento, se a esquerda não encampar
rapidamente essa pauta com todas as forças, podemos correr o perigo de ver uma
espécie de mutação trabalhista de uma parte da extrema-direita. Se ela
descobrir que não precisa arcar com a retórica econômica neoliberal, perceberá
ainda melhor que pode andar com as próprias pernas em direção ao poder, sem
levar consigo o que tem sido ainda talvez sua única grande hipoteca de
popularidade entre os mais pobres.
O começo do ensaio de Adorno sobre o tempo
livre parece um banho de água fria nesse otimismo de que a mera liberação do
tempo seria um valor em si:
A questão do tempo livre: o que
as pessoas fazem com ele, que chances eventualmente oferece o seu
desenvolvimento, não pode ser formulada em generalidade abstrata. A expressão,
de origem recente […] aponta para uma diferença específica que o distingue do
tempo não livre, aquele que é preenchido pelo trabalho e, poderíamos
acrescentar, na verdade, determinado desde fora. O tempo livre é acorrentado ao
seu oposto. Esta oposição, a relação em que ela se apresenta, imprime-lhe
traços essenciais. Além do mais, muito mais fundamentalmente, o tempo livre
dependerá da situação geral da sociedade. Mas esta, agora como antes, mantém as
pessoas sob um fascínio. Nem em seu trabalho, nem em sua consciência dispõem de
si mesmas com real liberdade. […] Decerto, não se pode traçar uma divisão tão
simples entre as pessoas em si e seus assim chamados papéis sociais. Estes
penetram profundamente nas Próprias características das pessoas, em sua
constituição íntima. Numa época de integração social sem precedentes, fica
difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do
determinado pelas funções. Isto pesa muito sobre a questão do tempo livre.
Ele tenta nos alertar para o fato de que se
o tempo livre só existe como tal porque é um tempo liberado do trabalho, isso
significa que ele não poderia existir a não ser como produto do tempo de
trabalho. Essa derivação do tempo livre a partir do trabalho implica em uma
dificuldade, pois se o tempo livre habitualmente é visto como emancipação em
si, no capitalismo tardio ele perde esse sentido original, pois está afetado
pela heteronomia que rege o tempo de trabalho. É como se nessa derivação o
tempo livre ainda estivesse afetado pelo trabalho, de tal forma que ele se
torna apenas um hiato para a volta ao trabalho. Isso se reflete naquele tipo de
angústia que invade o trabalhador quando ele finalmente se vê diante de seu
período de férias, de um tempo livre abundante, mas não possui mais condições
subjetivas de usufruir, trazendo a sensação de que o tempo passa sem que ele
consiga de fato realizar o que deseja.
Por conta dessa heteronomia que afeta o
tempo livre, há um enorme espaço para a produção de subjetividades atravessadas
pelos desejos do sistema, desejos que emanam tanto impulsos econômicos, quanto
políticos. Isso significa que, hoje, os germes anticivilizatórios e regressivos
se manifestam também no tempo livre, no tempo gasto nas redes sociais, nas
bets, no jogo do tigrinho. Isso não deveria ser motivo para esmorecer, mas,
sim, um chamado para novas lutas: pela regulamentação das redes sociais e
também pela educação pública de qualidade. Só assim o tempo liberado do
trabalho pode ser, enfim, um tempo livre de fato, e não apenas mais um
território colonizado pelo sistema.
Fonte: Por Arthur
Hussne, em Outras Palavras
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