Elementos para uma Geografia do
Desespero na Metrópole
A partir da tríade segregação – deslocamento –
precarização, busquei balizar aquilo que, informalmente, poderíamos chamar
de Geografia
da Insanidade na metrópole. Ou seja, é plausível que consideremos a metrópole
como um espaço produtor e reprodutor de insanidade, de falta de sanidade, de
produção e de reprodução de tudo aquilo que não é são.
Partindo desse ponto, e tentando entender de que
maneira essa produção daquilo que não é são, por parte da metrópole e das
relações nela desenvolvidas, se traduz e se aprofunda no que poderíamos chamar
de Geografia do Desespero, o que pode ser considerada um desdobramento da
Geografia da Insanidade, daí a proposta de apresentar os textos em sequência.
Os elementos daquilo que chamo de Geografia da
Insanidade – a interpretação e a análise científica partindo dos objetos e das
relações em um espaço determinado, o espaço da metrópole, destacando os
elementos que não produzem uma sanidade – resultam naquilo que poderíamos
chamar de Geografia do Desespero que, dentro da proposta aqui apresentada, pode
ser entendida como aspectos negativos que internalizamos após vivenciarmos
experiências espaciais na metrópole de um modo geral. Para melhorar o entendimento,
duas observações são fundamentais:
·
Tais
aspectos negativos não se fazem presentes apenas nas metrópoles;
·
A
metrópole não desperta apenas sentimentos negativos.
O propósito, aqui, consiste em ir além de uma análise
funcionalista e morfológica do espaço metropolitano, apontando para como a
tríade segregação-deslocamento-precarização pode produzir consequências
negativas nas vidas das pessoas. Como é que, mesmo com todos os avanços no
campo da medicina, da psicologia e da ciência como um todo, a humanidade está
batendo recordes de pessoas afetadas por ansiedade, depressão, síndrome de
burnout, estresse, dentre tantas outras doenças negligenciadas em momentos
pretéritos? Não podemos culpar somente as metrópoles por isso, mas o fato é que
as metrópoles, enquanto espaços excessivamente cansativos e desgastantes, além
de uma era marcada por incertezas em quase todas as dimensões da vida, têm sua
parcela de culpa.
A grande questão é que a tríade
segregação-deslocamento-precarização, sobretudo em espaços congestionados, onde
os trajetos exigem que se enfrente enormes distâncias nas piores condições
possíveis, contribui com a piora de sensações e sentimentos. E, convenhamos,
isso não deixa de ser uma questão de classe. Na cidade capitalista,
principalmente na metrópole capitalista, o preço da terra varia de acordo com a
disponibilidade de recursos, sobrando, para os mais pobres, uma excruciante
relação entre distância e tempo. Nesse centro capitalista, vive mais quem
conseguir comprar sobrevida.
É importante refletir sobre como todo esse quadro de
precariedade acaba afetando o íntimo das pessoas, sobretudo das que acabam
sendo desfavorecidas em várias dimensões. A ideologia da meritocracia, por
exemplo, em um quadro de precarização da vida, certamente promove sensações
negativas na era dos coaches. Afinal, basta querer, desembolsar
alguns milhares de reais por um curso ou mentoria, se esforçar e conseguir.
Caso contrário, foi falta de esforço.
É impossível que um indivíduo assuma a culpa por uma
questão sistêmica e consiga sair ileso. Todas as estratégias de acomodação e
aceitação daquilo que supostamente não tem jeito – sempre tem – acabam por, no
fim das contas, individualizar um problema que é coletivo e estrutural. Falta
de perspectiva, depressão, ansiedade, burnout, esses e tantos outros problemas
de saúde – física e mental – possuem relações com uma vida, muitas vezes sem
muitas esperanças, na metrópole.
Para além desse processo de transformar em pontual e
individual aquilo que é estrutural e coletivo, não há como não mencionar uma
ideologia meritocrática associada ao neoliberalismo que acaba por transformar
tudo que há de mais básico em mercadoria. Então, a pessoa que se vê como
incompetente, incapaz, desqualificada – e ela assim se vê devido a um discurso
criado exatamente com esta finalidade -, na condição de pessoa supostamente
incompetente, incapaz e desqualificada, acaba por não conseguir ter acesso a
“mercadorias” como saúde, educação, lazer, moradia, dentre tantas outras.
E aí, diante dos elementos aqui elencados – segregação,
deslocamento, precarização, meritocracia, neoliberalismo – algumas perguntas
passam a ganhar ainda mais sentido. Como se manter saudável gastando horas ao
realizar o trajeto casa-trabalho-casa, com salário baixo e péssimas condições
de trabalho? Como não se desesperar assumindo um fracasso forjado por agentes e
discursos, em um contexto de alto custo de vida e necessidade de sustentar-se?
Como ter alguma saúde em um país em que os setores conservadores, elitizados e
elitistas bombardeiam, em uma escala assustadora, toda e qualquer política
social que tenha o objetivo de corrigir males provocados no/por um país
escravocrata, colonizado e com traços severos de colonialidade? Como conviver
com a culpa de não conseguir garantir o básico para a família?
Observem que eu desloco, de modo proposital, os
elementos de uma possível Geografia da Insanidade para uma possível e plausível
Geografia do Desespero. Isto ocorre a partir do momento em que realizo uma
alteração na escala de análise. A Geografia enquanto ciência que busca
observar, descrever, analisar e explicar fenômenos espaciais, pode ser seguida
por algum termo que seja alvo de enfoque. Daí expressões como “Geografia
Urbana”, “Geografia Agrária”, “Geografia da Indústria”, dentre tantos outros
campos de análise e de pesquisa. A proposta de uma Geografia da Insanidade e
Geografia do Desespero surge a partir do interesse em provocar incômodo e
estranheza. E as perguntas do parágrafo anterior surgem da necessidade de
exercitarmos a empatia, a capacidade de assumir o lugar de outras pessoas. Não
há como negar: é um texto para incomodar, para trazer certo sufocamento e para
trazer péssimas sensações. A ideia é essa.
Diante disso, o que chamo, no texto anterior, de
Geografia da Insanidade, tem muito mais a ver com a configuração da metrópole
capitalista que, ainda sem detalhar muito, apresenta aspectos relevantes da
dinâmica socioespacial. O que chamo de Geografia do Desespero já tem relações
com as manifestações desses aspectos relevantes no âmbito do indivíduo e da
forma como cada pessoa experimenta o espaço, o que, no caso do capitalismo,
possui relação direta com a renda, que por sua vez, possui relação direta com
local de moradia e com tudo aquilo que cada local de moradia pode oferecer.
Aproveito para sugerir um exercício de, em primeiro
lugar, autoconhecimento. Observe quais sensações o espaço ao seu redor
desperta. Podemos sentir intimidade, vínculo, afeto, medo, angústia, aflição,
dentre outras. O importante é assumir a postura de desnaturalizar tais
sensações para que nelas possamos prestar a devida atenção. É um exercício de
alteridade e empatia, pois é importante sinalizar que, da mesma forma que a
ideologia meritocrática e discursos de setores conservadores empurram para os
mais pobres uma culpa que não é deles, essa mesma ideologia e esses mesmos
discursos confortam os mais ricos, de modo que sejam isentos de qualquer
responsabilidade, por mais exploradores que sejam eles. De que modo nos
relacionamos com o espaço ao redor?
O espaço enquanto dimensão composta por elementos
concretos e, também, como evidenciado ao longo do texto, por relações as mais
diversas, está presente em nossas vidas, e a forma como experimentamos esse
espaço acaba por estabelecer relações com o que nós somos e como nos formamos
ao longo da vida. Existem pessoas empáticas, existem pessoas individualistas,
existem pessoas solidárias, existem pessoas egoístas. Isso tem a ver, também,
com nossas vivências espaciais e com a forma com que cada pessoa experimenta
(ou não) uma Geografia do Desespero.
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