quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Elementos para uma Geografia do Desespero na Metrópole

A partir da tríade segregação – deslocamento – precarização, busquei balizar aquilo que, informalmente, poderíamos chamar de Geografia da Insanidade na metrópole. Ou seja, é plausível que consideremos a metrópole como um espaço produtor e reprodutor de insanidade, de falta de sanidade, de produção e de reprodução de tudo aquilo que não é são.

Partindo desse ponto, e tentando entender de que maneira essa produção daquilo que não é são, por parte da metrópole e das relações nela desenvolvidas, se traduz e se aprofunda no que poderíamos chamar de Geografia do Desespero, o que pode ser considerada um desdobramento da Geografia da Insanidade, daí a proposta de apresentar os textos em sequência.

Os elementos daquilo que chamo de Geografia da Insanidade – a interpretação e a análise científica partindo dos objetos e das relações em um espaço determinado, o espaço da metrópole, destacando os elementos que não produzem uma sanidade – resultam naquilo que poderíamos chamar de Geografia do Desespero que, dentro da proposta aqui apresentada, pode ser entendida como aspectos negativos que internalizamos após vivenciarmos experiências espaciais na metrópole de um modo geral. Para melhorar o entendimento, duas observações são fundamentais:

·        Tais aspectos negativos não se fazem presentes apenas nas metrópoles;

·        A metrópole não desperta apenas sentimentos negativos.

O propósito, aqui, consiste em ir além de uma análise funcionalista e morfológica do espaço metropolitano, apontando para como a tríade segregação-deslocamento-precarização pode produzir consequências negativas nas vidas das pessoas. Como é que, mesmo com todos os avanços no campo da medicina, da psicologia e da ciência como um todo, a humanidade está batendo recordes de pessoas afetadas por ansiedade, depressão, síndrome de burnout, estresse, dentre tantas outras doenças negligenciadas em momentos pretéritos? Não podemos culpar somente as metrópoles por isso, mas o fato é que as metrópoles, enquanto espaços excessivamente cansativos e desgastantes, além de uma era marcada por incertezas em quase todas as dimensões da vida, têm sua parcela de culpa.

A grande questão é que a tríade segregação-deslocamento-precarização, sobretudo em espaços congestionados, onde os trajetos exigem que se enfrente enormes distâncias nas piores condições possíveis, contribui com a piora de sensações e sentimentos. E, convenhamos, isso não deixa de ser uma questão de classe. Na cidade capitalista, principalmente na metrópole capitalista, o preço da terra varia de acordo com a disponibilidade de recursos, sobrando, para os mais pobres, uma excruciante relação entre distância e tempo. Nesse centro capitalista, vive mais quem conseguir comprar sobrevida.

É importante refletir sobre como todo esse quadro de precariedade acaba afetando o íntimo das pessoas, sobretudo das que acabam sendo desfavorecidas em várias dimensões. A ideologia da meritocracia, por exemplo, em um quadro de precarização da vida, certamente promove sensações negativas na era dos coaches. Afinal, basta querer, desembolsar alguns milhares de reais por um curso ou mentoria, se esforçar e conseguir. Caso contrário, foi falta de esforço.

É impossível que um indivíduo assuma a culpa por uma questão sistêmica e consiga sair ileso. Todas as estratégias de acomodação e aceitação daquilo que supostamente não tem jeito – sempre tem – acabam por, no fim das contas, individualizar um problema que é coletivo e estrutural. Falta de perspectiva, depressão, ansiedade, burnout, esses e tantos outros problemas de saúde – física e mental – possuem relações com uma vida, muitas vezes sem muitas esperanças, na metrópole.

Para além desse processo de transformar em pontual e individual aquilo que é estrutural e coletivo, não há como não mencionar uma ideologia meritocrática associada ao neoliberalismo que acaba por transformar tudo que há de mais básico em mercadoria. Então, a pessoa que se vê como incompetente, incapaz, desqualificada – e ela assim se vê devido a um discurso criado exatamente com esta finalidade -, na condição de pessoa supostamente incompetente, incapaz e desqualificada, acaba por não conseguir ter acesso a “mercadorias” como saúde, educação, lazer, moradia, dentre tantas outras.

E aí, diante dos elementos aqui elencados – segregação, deslocamento, precarização, meritocracia, neoliberalismo – algumas perguntas passam a ganhar ainda mais sentido. Como se manter saudável gastando horas ao realizar o trajeto casa-trabalho-casa, com salário baixo e péssimas condições de trabalho? Como não se desesperar assumindo um fracasso forjado por agentes e discursos, em um contexto de alto custo de vida e necessidade de sustentar-se? Como ter alguma saúde em um país em que os setores conservadores, elitizados e elitistas bombardeiam, em uma escala assustadora, toda e qualquer política social que tenha o objetivo de corrigir males provocados no/por um país escravocrata, colonizado e com traços severos de colonialidade? Como conviver com a culpa de não conseguir garantir o básico para a família?

Observem que eu desloco, de modo proposital, os elementos de uma possível Geografia da Insanidade para uma possível e plausível Geografia do Desespero. Isto ocorre a partir do momento em que realizo uma alteração na escala de análise. A Geografia enquanto ciência que busca observar, descrever, analisar e explicar fenômenos espaciais, pode ser seguida por algum termo que seja alvo de enfoque. Daí expressões como “Geografia Urbana”, “Geografia Agrária”, “Geografia da Indústria”, dentre tantos outros campos de análise e de pesquisa. A proposta de uma Geografia da Insanidade e Geografia do Desespero surge a partir do interesse em provocar incômodo e estranheza. E as perguntas do parágrafo anterior surgem da necessidade de exercitarmos a empatia, a capacidade de assumir o lugar de outras pessoas. Não há como negar: é um texto para incomodar, para trazer certo sufocamento e para trazer péssimas sensações. A ideia é essa.

Diante disso, o que chamo, no texto anterior, de Geografia da Insanidade, tem muito mais a ver com a configuração da metrópole capitalista que, ainda sem detalhar muito, apresenta aspectos relevantes da dinâmica socioespacial. O que chamo de Geografia do Desespero já tem relações com as manifestações desses aspectos relevantes no âmbito do indivíduo e da forma como cada pessoa experimenta o espaço, o que, no caso do capitalismo, possui relação direta com a renda, que por sua vez, possui relação direta com local de moradia e com tudo aquilo que cada local de moradia pode oferecer.

Aproveito para sugerir um exercício de, em primeiro lugar, autoconhecimento. Observe quais sensações o espaço ao seu redor desperta. Podemos sentir intimidade, vínculo, afeto, medo, angústia, aflição, dentre outras. O importante é assumir a postura de desnaturalizar tais sensações para que nelas possamos prestar a devida atenção. É um exercício de alteridade e empatia, pois é importante sinalizar que, da mesma forma que a ideologia meritocrática e discursos de setores conservadores empurram para os mais pobres uma culpa que não é deles, essa mesma ideologia e esses mesmos discursos confortam os mais ricos, de modo que sejam isentos de qualquer responsabilidade, por mais exploradores que sejam eles. De que modo nos relacionamos com o espaço ao redor?

O espaço enquanto dimensão composta por elementos concretos e, também, como evidenciado ao longo do texto, por relações as mais diversas, está presente em nossas vidas, e a forma como experimentamos esse espaço acaba por estabelecer relações com o que nós somos e como nos formamos ao longo da vida. Existem pessoas empáticas, existem pessoas individualistas, existem pessoas solidárias, existem pessoas egoístas. Isso tem a ver, também, com nossas vivências espaciais e com a forma com que cada pessoa experimenta (ou não) uma Geografia do Desespero.

 

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