Política: entre fraldas sujas e amor
Manifestei certo incômodo em relação a um trecho da
recente entrevista dada por Maria Rita Kehl, referenciando o artigo “Como dói o
dedo na ferida” (2020). Quero elaborar melhor a verdade – sempre não-toda – de
meu gesto nas redes.
O início é o amor. Talvez elementos
dele sirvam como pontos de partida para o que pretendo abordar sobre política.
Só há amor de verdade junto com a sujeira que dele também é parte. O exemplo
mais óbvio está no cuidado com bebês. A criança faz cocô. O cheiro terrível
exala da fralda e alastra-se pelo recinto. Olha-se para os céus. A esperança é
de que o problema seja magicamente solucionado: alguém limpará a merda. O bebê
será entregue limpinho e cheiroso.
Respira-se fundo. Não há saída. Encara-se o drama. A
raiva – também uma sujeira afetiva – está lá. Limpar merda é desagradável. O
bebê rechonchudo pesa. Os braços se estraçalham nas manobras da lavagem. Impedidas
de se esquivarem, as narinas absorvem ainda mais o fedor. Além de tudo, a merda
quase sempre resguarda surpresas:
1) Sai pelas bordas da fralda, exigindo troca de
roupinha (mais trabalho no futuro com lavagem etc.);
2) Aparece esverdeada, indicando o início de uma
diarreia;
3) O odor é mais forte do que se supunha – e por aí
vai. Também existem boas surpresas. Um cocô durinho, por exemplo. Motivo de
festejo: basta algodão com tônico de limpeza.
Fato é que outras partes compõem essa cena. Em meio à
troca de fraldas aparece o bumbum fofinho do bebê. As mãozinhas dele querem te
pegar. Ele dá aquele sorriso sedutor junto ao olhar amoroso. Logo, a tarefa
inglória transforma-se. Abre-se um campo para a intimidade. Tem cuidado e tem
merda. Tem amor e tem raiva. Quando a missão acaba, é quase certo que o amor
terá invadido a raiva. Todavia, não é necessário romantizar as merdas do
processo para fazer valer o amor.
Alguém pode argumentar que cenas de bebês e cuidadores
são a pior escolha a ser feita para tratar a política. Questões de cuidado,
ainda mais com imagens rasteiras como fraldas, papinhas, vômitos, roupas sujas
etc., não estariam no escopo da vida adulta entre cidadãos que falam na pólis – lugar
do logos, de discursos.
Todavia, o feminismo ensina que o trabalho com a
“sujeira” da vida é parte da política. Tanto a esfera privada, quanto os
cuidados reprodutivos (casa, limpeza, crianças etc.) integram a base material
da vida. Exigem debates sobre distribuições mais justas. Por isso, o lema “o
pessoal é político” vai na direção contrária ao que defende Maria Rita Kehl em
seu “Lugar de cala-se”:
O que seria da democracia se cada um de nós só fosse
autorizado a se expressar em relação a temas concernentes à sua experiência
pessoal? O que seria do debate público? Cada um na sua casinha…? O que seria da
solidariedade, essa atitude baseada na identificação com o nosso semelhante na
diferença, se só conseguíssemos nos solidarizar com quem vive as mesmas
experiências que nós?
Embora difira do lema feminista nessa passagem, o
artigo segue com alguns argumentos que considero pertinentes, dentre os quais
se destaca o seguinte: “Nenhuma ‘palavra de ordem’ se manteve mais atual, ao
longo dos séculos, do que o lema da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e
fraternidade”.
Ainda que já tenha sido exaustivamente discutido e
explicitado pelos movimentos e estudos tidos como “identitários”, insisto que o
alvejado “lugar de fala” não significa manter-se na própria casinha. Embora as
redes sociais favoreçam esse modelo narcísico e egóico, os estudos
interseccionais de classe, raça e gênero não são identitários. Não se trata do
eu narcísico. O que se pretende é situar a emissão das palavras nos diferentes
estratos que compõem as estruturas de poder. O intuito não é calar, mas
garantir que debates se deem com maior isonomia. Se padrões de desigualdade se
perpetuam nas estruturas de poder – o que não é uma simples diferença –, eles
também precisam ser politicamente considerados nas discussões.
Ou seja, a aposta no lema “liberdade, igualdade e
fraternidade” não ocorre em um território liso, no qual as palavras são
neutras. Bases materiais que sustentam lugares de poder não se anulam por
completo na emissão discursiva. Em razão da opressão histórica, palavras também
podem destoar em peso e força. Daí o apelo de comunidades ligadas pelas
questões de classe, raça e gênero para que se leve em conta outras facetas de
desigualdades sociopolíticas e históricas nos debates.
Nessa seara, não é incomum que “sujeiras”, antes
soterradas, sejam trazidas à luz. Desqualificar tais manifestações ou julgá-las
pela régua moral entre dois polos antagônicos – certo e errado – pode
significar recalcar mais uma vez elementos que levaram séculos para emergir. No
limite, suprimir partes sujas da vida e dos discursos pode redundar em
processos de abstração dos corpos falantes. É o procedimento da
extrema-direita. Como ensina Judith Butler, há corpos que se tornam mera morte
a ser limpa de territórios, enquanto há corpos que pronunciam seus vereditos e determinam
quem é ou não matável – concreta ou simbolicamente.
Nesse ponto, presumo que a identidade cartesiana
seja a melhor opção: encarnar o método da dúvida. Se a sujeira emergiu, o
debate pode se desdobrar e se enriquecer a partir dela. Será uma oportunidade
para refletir e separar o joio do trigo, esperando que modelos mais equânimes
possam se expandir.
Não são os “identitários” – péssimo nome, aliás – a
fazerem a distinção entre matáveis e não matáveis. A articulação de classe,
raça e gênero visa conceder consistência e visibilidade aos corpos política e
historicamente tidos como descartáveis, invisíveis ou inaudíveis. Quando Lélia
González diz “o lixo vai falar, e numa boa”, ela indica que aquilo que parecia
descartável finalmente assume poder em seu lugar próprio de fala no interior
dessa estrutura patriarcal e colonialista de espoliação.
Se trago tudo isso à baila é porque o momento demanda
rever certa incomunicabilidade que se estabeleceu entre a esquerda de tradição
marxista e as chamadas lutas identitárias (grande parte, diga-se, alinhadas a
leituras marxistas). Os efeitos de tomar certas pautas como sujeiras meramente
egóicas e narcísicas – elas também podem ser isso, mas não são apenas isso – e
recalcá-las mais uma vez pelo julgamento são avassaladores em diferentes
esferas da existência: sexualidade, afetos, laços, trabalho.
A merda está à mostra. Sem dúvida, vê-la tem um custo,
mas não é necessariamente ruim. Todos somos por ela responsável. O que emana de
bocas descartadas ou oprimidas por tanto tempo nem sempre virá limpinho ou
organizado. O que emana de bocas privilegiadas também não aparecerá limpinho ou
organizado. O que se extrai desse mar de lama revolto?
Seguindo as premissas acima explicitadas, causa espécie
a insistente crítica aos movimentos ditos “identitários” por parte de uma
parcela antiga de intelectuais da esquerda. Situo neste ponto o meu incômodo
diante da crítica feita não só por Maria Rita Kehl, mas por tal segmento de
intelectuais. Inicialmente, o que significa o predicado “identitários”? A
rigor, identidade pode ser qualquer nome junto a algo que o predique: petista,
psicanalista, brasileira/o. Uma grande parcela desses sujeitos “identitários”
se formou com a esquerda marxista. Não é raro ouvir chauvinismos masculinos de
tal parcela de cidadãos bem formados, mas esses “deslizes” são frequentemente
naturalizados – a violência deles não fica registrada. Na academia, perdoa-se
quase cegamente o que se repete de maneira inaceitável. Talvez o amor tenha
relação com tal naturalização: por uma espécie de dívida em relação aos antigos
mestres, passa-se o pano sobre muitos absurdos.
Por outro lado, não é rara a reação desqualificante por
parte de certos porta-vozes da esquerda tradicional diante de alguém que
pesquisa e busca colocar em prática as articulações feitas pelos estudos
interseccionais de classe, raça e gênero. Hoje, em função de uma espécie de
vigilância – muitas vezes excessiva, é verdade – a esquerda tradicional parece
acuada. Parece ser esse, aliás, o ponto do artigo e das falas insistentes de
Maria Rita Kehl contra os nichos ou bolhas “identitárias”.
Se o olhar de algumas figuras da esquerda tradicional
estivesse menos atento ao próprio narcisismo, talvez elas percebessem que a
lógica de cancelamentos e linchamentos é inerente à própria engrenagem digital
das redes, que opera apenas por 0 ou 1. Não se trata de culpar “identitários”.
Aliás, quando se instaura uma polêmica, ao contrário de cancelamentos o que se
tem é uma maior visibilidade para a pauta discutida que se abre em várias
direções, inclusive recuperando aspectos importantes tratados por
representantes da esquerda tradicional.
Por isso, diria que o maior problema das críticas
dirigidas às lutas ditas “identitárias” por parte significativa de intelectuais
que representa a esquerda tradicional é simples. Chama-se limite. Ocupam
plataformas de visibilidade e opinam sobre o que não se deram ao trabalho de
estudar. Além disso, não se pode dizer que o “ser de esquerda” nunca tenha
calado ninguém. O orgulho ressentido de cidadãos que aderiram à
extrema-direita, aliás, relaciona-se com certo anseio envergonhado de
participar da política. Não vendo espaço nos meios mais intelectualizados e
militantes à esquerda, grudaram nos protocolos extremistas da direita. Por mais
difícil que seja admitir, esse problema não é só dos fascistas – a
responsabilidade e o fracasso por haver ainda hoje fascismo no mundo é de todos
nós.
Se o feminismo ensina que “o pessoal é político”, a
psicanálise ensina que o infantil está intensamente vivo no corpo adulto.
Sobreviver ao infantil e ao pessoal, pouco articulados e elaborados, também tem
sido uma tarefa política. Não dá para negar que ainda se engatinha no Brasil em
relação às questões de maior igualdade entre classes, raças e gêneros. Ao invés
de desqualificar lutas importantes com críticas rasas, será necessário abraçar
sem preguiça o imenso trabalho que concerne à esquerda tradicional e às pautas
feministas, negras, indígenas, LGBTQIAP+.
Velhas fórmulas psicanalíticas ou marxistas usadas de
maneira judicativa desqualificante não cabem mais. Ninguém se salva na pureza
quando dedos são apontados. Não seria melhor encarar a sujeira que nos concerne
como humanos ao invés de rechaçá-la mais uma vez? Como a metáfora da fralda,
acolher a sujeira da política e dos laços pode servir para uma abertura ao amor
e à maior intimidade com a nossa história como cidadãos.
Maria Rita Kehl, agradeço-lhe por tudo que você já
escreveu. Se aqui me dedico a comentar sua entrevista é porque também considero
importante não me entregar a um bovarismo à brasileira – me atenho à nossa
história, e você tem uma parte muito bonita nela.
Fonte: por Alessandra Affortunati Martins, em Outras
Palavras
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