quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Rui Martins: Existe o perigo de um golpe nos EUA?

Diante da maneira como vem se comportando o presidente americano Donald Trump, muita gente começa a ficar com a pulga atrás da orelha nos Estados Unidos. A enxurrada de decretos sem consulta ao Congresso, as decisões tomadas ao arrepio da Constituição americana, as ameaças de demissão para quem se colocar à sua frente, tudo isso começa a preocupar jornalistas, analistas e políticos. Mesmo porque as decisões autoritárias de Trump, principalmente as de expulsões de imigrantes e cortes de funcionários na máquina governamental, estão sendo bem recebidas pela população e aumentando sua popularidade.

Embora Trump tenha jurado sobre a Bíblia que irá preservar, proteger e defender a Constituição, isso não parece garantia suficiente contra a tentação de ter plenos poderes e de ignorar as restrições e entraves judiciais destinados a proteger o funcionamento normal da Democracia.

Como se não bastasse sua presença egocêntrica no comando do governo, Trump tem ao seu lado uma espécie de primeiro-ministro, o multimilionário Elon Musk, decidido a enxugar a máquina burocrática do país, no que poderia ser um esforço de economia orçamentária, mas, na verdade, com o objetivo real e principal de debilitar a estrutura orgânica para não haver reações a uma intenção programada de assumir o controle autocrático do país.

Com o domínio das redes sociais e a utilização da Inteligência Artificial isso não seria impossível. Prestes a completar um mês de governo, Trump, cujo comportamento já se assemelha ao de um ditador, não parece ter, até este momento, contrapoderes à altura, seja na Justiça, na sociedade ou na imprensa. 

Trump não reconheceu e não reconhece até hoje sua derrota frente a Joe Biden, em 2020, alegando ter sido vítima de fraude. Além disso, foi Trump quem incentivou o ataque ao Capitólio em janeiro de 2021 contra o resultado das eleições. E, bastante sintomático e preocupante, no dia da posse ele anistiou todos os envolvidos no ataque ao Capitólio, que deixou cinco mortes e dezenas de feridos.

Ou seja, para ele não houve ataque à democracia na tentativa de impedir a posse de Joe Biden e, por tabela, para Trump não havia culpados mesmo se foram presos e condenados. Durante os últimos quatro anos, Trump não só repetia ter havido fraude nas eleições como anunciava seu desejo de vingança, agora consumado neste seu segundo governo, com a tentativa de demitir e processar todos os funcionários da Justiça envolvidos nos processos contra os invasores do Capitólio.

É muito pessoal seu conceito de “preservar, proteger e defender a Constituição”, juramento feito na primeira posse e desrespeitado, quatro anos depois, nos incentivos ao ataque do Capitólio. Com base nessa folha corrida de Trump – o primeiro presidente com uma condenação judicial –, nos seus gestos autoritários e nas ameaças econômicas e mesmo de invasão a outros países desde sua posse, é difícil acreditar num Trump disposto a aceitar decisões judiciais anulando seus decretos ou do seu “primeiro-ministro” Elon Musk. E já tem jornalista, francês no caso da France-Inter, perguntando se Trump vai querer mudar a Constituição para ter um terceiro mandato!

No momento, Trump procura saber até onde pode esticar seus poderes, sobre quem pode passar por cima, até onde pode assustar. No exterior, as reações variam do Hamas, países árabes, França, México, Dinamarca e Canadá ao Brasil.

Dentro dos Estados Unidos já existe alguma resistência por parte de alguns juízes federais. O presidente Trump parece tentado a ignorar as decisões judiciais tomadas por esses juízes e ameaça mesmo puni-los. Se isso realmente ocorrer, a democracia norte-americana, que no passado, incentivou tantos golpes de Estado, inclusive no Brasil em 1964, poderá ver o feitiço virar contra o feiticeiro.

O sinal de alerta foi dado por um magistrado de Rhode Island que denunciou não ter sido respeitada pelo governo uma de suas decisões. Logo depois, um juiz federal, John McConnell, acionado por Estados democratas, bloqueou o corte de bilhões de dólares em subvenções, pedido por Elon Musk, sob o argumento de que tais pagamentos já haviam sido aprovados pelo Congresso. Houve reações contra esses cortes inclusive por deputados republicanos. Trump parecia ter cedido e anulado os cortes, mas uma parte dessas subvenções continua bloqueada. Assim como Trump parece querer fazer passar à força muitos decretos considerados ilegais.

A situação se complicou com uma declaração do vice-presidente J. D. Vance de que “os juízes não têm o poder de controlar o poder legítimo do Executivo”. E a palavra “golpe de Estado judiciário” acabou sendo utilizada por Elon Musk, o multimilionário nomeado por Trump para enxugar as despesas governamentais, como se fosse um ministro com plenos poderes.

O trio Trump, Musk e Vance já mobilizou o senador democrata Chris Murphy, que afirmou em uma entrevista à CNN estar ocorrendo o fim potencial da democracia nos Estados Unidos. “Se o presidente está acima das leis, quem respeitará as leis no país”, disse ele.

Diversos professores de Direito estão alertando sobre o risco de uma crise institucional. Entretanto, comenta o correspondente do jornal suíço Le Temps, “o país parece anestesiado”.

Trump poderia evitar o confronto com os juízes recorrendo de suas decisões na  Suprema Corte. Ao contrário do Brasil, onde o STF defendeu a Constituição e impediu a realização de um golpe, a Suprema Corte dos EUA tem três ministros conservadores nomeados por Trump, que lhe são sempre favoráveis. No caso de litígio com juízes federais, Trump sairia sempre vencedor, porém haveria um longo prazo para julgamento. Diante disso, na sua pressa, o mais provável é Trump passar seus decretos na força, sem se preocupar com as consequências para a democracia.

¨      Enxurrada de decretos: qual é a estratégia de Donald Trump e qual é o objetivo?

Donald Trump ainda não completou um mês no cargo em seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos, mas está implementando sua agenda a toque de caixa.

Desde que assumiu a presidência em 20 de janeiro, ele concedeu perdão a manifestantes que invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, cortou ajuda internacional, reprimiu a imigração, encerrou programas de diversidade e impôs tarifas globais sobre importações de aço e alumínio, entre outras medidas.

Ele conversou ainda com o presidente da RússiaVladimir Putin, sobre o fim da guerra na Ucrânia e até sugeriu que os EUA poderiam ocupar Gaza.

Seus apoiadores veem isso como o cumprimento de promessas de campanha. Mas analistas acreditam que fazer tantos anúncios sucessivos tão rápido também tem a intenção de sobrecarregar os oponentes e enfraquecer sua capacidade de resposta — uma tática conhecida como flooding the zone (inundar a área).

Eles argumentam que Trump usou essa abordagem em seu primeiro mandato, e agora ela está sendo adotada em uma escala maior.

Mas, afinal, o que significa esta estratégia, e o que Trump espera alcançar?

·        Do esporte à política

"Inundar a área" se refere a uma tática no futebol americano em que o ataque sobrecarrega a defesa adversária para explorar os pontos fracos.

Steve Bannon, ex-principal conselheiro e estrategista de Trump, afirmou em 2018 que a verdadeira oposição a Trump não eram os democratas, mas a mídia — e "a maneira de lidar com ela é inundar a área" com muito ruído.

Especialistas dizem que esta abordagem desorienta os críticos, impedindo-os de se unirem em torno de uma única narrativa.

"Trump não apenas define a agenda — ele passa o rolo compressor nela", diz à BBC Evan Nierman, CEO da empresa de comunicação de crise Red Banyan.

"Ao inundar a área, ele garante que nenhuma controvérsia prenda a atenção por tempo suficiente para causar danos duradouros. Escândalos que arruinariam outro político mal são registrados."

O objetivo dele é dominar o ciclo das notícias de forma tão completa que seus oponentes fiquem reagindo a ele, "enquanto ele dita os termos da conversa", acrescenta Nierman, descrevendo a estratégia de Trump como "calculada".

"A maioria dos políticos implementa políticas cuidadosamente; Trump vai direto para o espetáculo", diz ele. "Seja uma medida política, uma batalha jurídica ou um comentário improvisado, a estratégia é a mesma: permanecer na ofensiva, dominar a narrativa e tornar quase impossível que as críticas vinguem".

Michael Montgomery, professor da Universidade de Michigan-Dearborn, nos EUA, argumenta que a estratégia também dispersa a oposição.

"Ela envia pessoas e grupos em todas as direções para lutar um milhão de pequenas batalhas descoordenadas." Isso torna menos provável que os oponentes se unam contra ele, afirmou Montgomery à BBC.

Como parte desta estratégia, Katherine Cartwright, cofundadora da empresa de mídia Criterion Global, menciona outra tática: as revelações na sexta-feira, em que anúncios controversos divulgados no fim da semana perdem força, à medida que o interesse do público diminui ao longo do fim de semana.

Cartwright cita a polêmica nomeação do secretário de Defesa, Pete Hegseth, um ex-apresentador de TV. Os críticos argumentam que Hegseth não tem experiência em gestão e enfrenta acusações de abuso, as quais ele nega. Confirmado em uma sexta-feira para o cargo, "ele saiu dos noticiários na segunda-feira de manhã", disse ela à agência de notícias AFP.

O deputado democrata Jamie Raskin descreve o ritmo frenético de Trump como uma "sobrecarga sensorial avassaladora".

"Em um momento, estou ao telefone com uma pessoa que faz ensaios clínicos de medicamentos contra o câncer para o governo, e que está prevista para ser removida porque uma pequena parte de seu trabalho é alcançar a comunidade minoritária. No momento seguinte, estou conversando com advogados do Departamento de Justiça, e eles estão programados para serem transferidos involuntariamente. Simplesmente não para", disse ele ao The New York Times.

"Inundar a área é criar o caos que esgota sua oposição e aumenta o barulho, na esperança de que ainda mais americanos se desliguem e se afastem", afirma Montgomery.

Ele observa que isso deixa o segundo governo Trump "livre para fazer uma série de coisas que — se não estivessem enterradas sob tantas outras —. provavelmente receberiam muito mais atenção e oposição".

·        Visão dos apoiadores de Trump

Os apoiadores de Trump veem sua enxurrada de medidas como prova de liderança e comprometimento com as promessas de campanha.

A deputada republicana Marjorie Taylor Greene disse ao The New York Times que a agenda de Trump foi endossada pelos eleitores, e que ele está trabalhando "o mais rápido possível" para colocá-la em prática. "Isso requer ficar acordado até tarde da noite", ela acrescentou.

Em seu podcast War Room, Bannon elogiou o ritmo do governo. "Se você observar a escala, a profundidade e a urgência que resultam de anos de pessoas trabalhando nisso", ele disse, "isso não aconteceu da noite para o dia".

"Só no acelerador, sem freio. Dirija. Dirija. Dirija", ele afirmou, acrescentando: "Quando você tem esse tipo de impulso, você não para, não pensa. Você vai, vai, vai!"

Ele também elogiou Stephen Miller, vice-chefe de gabinete para políticas da Casa Branca, considerado o mentor da estratégia de inundar a área durante o segundo mandato do governo Trump.

·        A estratégia já foi usada antes?

Evan Nierman argumenta que a estratégia de inundar a área não é exclusiva de Trump.

"Líderes ao longo da história usaram a saturação da mídia a seu favor, mas de maneiras muito diferentes", diz ele.

"Os fireside chats ('bate-papos ao lado da lareira', em tradução livre, uma série de pronunciamentos de rádio) de Franklin D. Roosevelt, o uso habilidoso da televisão por John F. Kennedy e até mesmo o domínio da mídia digital por Barack Obama tinham como objetivo moldar a percepção do público."

No entanto, há uma diferença, segundo ele. "Trump faz isso em uma velocidade vertiginosa, sem filtros e com total imprevisibilidade."

Montgomery discorda, e vê as ações de Trump como sem precedentes. "Os 100 primeiros dias bastante atribulados de Franklin D. Roosevelt, em 1933, não foram uma tentativa de inundar a área para que iniciativas específicas do novo governo escapassem do escrutínio", ele observa.

"Não creio que haja exemplos anteriores de inundação da cena de Washington com inúmeras ordens e propostas para confundir ou ofuscar, por parte de presidentes democratas ou republicanos."

·        Será que pode funcionar?

Talvez seja muito cedo para dizer se esta estratégia vai funcionar para Trump. Na verdade, alguns especialistas dizem que esta abordagem pode acabar saindo pela culatra.

"Embora eu duvide que muitos dos verdadeiros apoiadores de Trump algum dia se cansem da turbulência que ele causa, acho que esta estratégia pode sair pela culatra para a direita, talvez já nas eleições de meio de mandato de 2026", diz Montgomery.

Ele observa que Trump e os republicanos não contam com um apoio esmagador entre os cidadãos americanos.

"Trump só ganhou no voto popular por cerca de 1,5%. Ele e os republicanos realmente não têm um mandato para mudanças pós-eleitorais regulares e habituais, muito menos para as mudanças extraordinárias que estão tentando realizar", afirma.

Nierman adverte que até mesmo os apoiadores de Trump podem sentir fadiga, "à medida que o caos constante se esgota".

"Este é o maior risco. A força de Trump é dominar a conversa, mas se as pessoas pararem de ouvir, esse domínio vai se transformar em ruído. Se isso acontecer, pode custar a ele eleitores indecisos que o apoiaram por causa das políticas, não apenas pela personalidade", conclui

 

Fonte: Observatório da Imprensa/BBC Word Service

 

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