Bem-vindos ao
Brasil avivado
São 5 da tarde. Faz sol e muito calor em Santo
Antônio de Jesus, Bahia. Na avenida que corta a cidade, um grupo de quatro
pessoas faz um culto. Um violão, um microfone e uma caixa de som são os
utensílios que possibilitam o evento. Fazem o culto na
pequena praça, não porque não possuem um lugar próprio para cultuar, mas porque
acreditam que aquilo é uma ação missionária. As músicas que cantam, as pregações que fazem, as abordagens aos
transeuntes têm o intuito de anunciar uma mensagem. Essa mensagem,
dita como notícia, anuncia que a vida no mundo é morte, e a conversão ao
evangelho e sua consequente participação na comunidade dos santos, a igreja, é
a salvação.
Esses evangelistas da avenida chamam o lugar em que
anunciam sua mensagem de “campo missionário”, ou seja, trata-se do lugar onde
deve ser feita a evangelização, o anúncio da mensagem da fé. A mensagem
precisa ser anunciada porque as pessoas precisam se converter. Agora, sendo parte da
igreja, os crentes deixam de ser do mundo – campo missionário – e para fazer
parte da comunidade dos que creem. Redimidos,
ou seja, limpos das desgraças desta vida (pecado), já começam a viver a própria
eternidade nas suas vidas. Converter-se é sair do lugar de alvo da ação missionária para ser agente
da ação missionária. Em termos teológicos, sair do mundo é estar sendo redimido
pelo sangue de Jesus. O papel de quem foi
redimido é participar da ação missionária e fazer com que mais pessoas tenham
acesso à verdade redentora.
Assim, eles participam da ação de Deus no
mundo. E quanto mais
anunciam a verdade do evangelho, mais se aproxima o retorno de Jesus, a redenção
do universo – em termos teológicos, o fim dos tempos. Mesmo que se creia que o fim dos tempos esteja próximo, em geral não se
acredita que ele já chegou. Há um debate intestino sobre a “forma correta” de
entender o fim dos tempos. O papel da igreja não seria abandonar o mundo em sua
desgraça, mas avançar na ação missionária para que a ação de Deus no mundo, se
for possível, culmine com um avivamento. A ação missionária no campo evangélico se
organiza pela ideia de que, se entregarem suas vidas para o Reino, é possível
que passem por um avivamento.
O termo não é lá
muito complicado: avivar, tornar mais vivo,
mais forte e intenso. Acima de tudo, o avivamento é uma notícia. O avivamento só pode acontecer quando estamos totalmente
despojados de nós mesmos e entregues aos desejos de Deus, a seus propósitos,
que são o anúncio do evangelho para além das fronteiras. Um anúncio para o
outro. A mente evangélica pressupõe a existência de
um espaço, geográfico ou social, onde seja possível viver o tempo de Deus –
o kairós –, de modo que a sua vontade e soberania
seja adorada. Se o avivamento
pressupõe a entrega interior, ele resulta em uma transformação da realidade
social. O lugar em que se realiza a ação missionária
– enquanto a vontade de Deus – é o lado de fora, o além das fronteiras.
Se os evangélicos chegaram com suas missões em
terras brasileiras ainda no final do século XIX, até os anos 1990 não
existia um campo evangélico no Brasil. Havia
igrejas pentecostais das mais diferentes correntes, que foram surgindo organicamente,
e igrejas históricas, como as Batistas, metodistas e Presbiterianas, para ser
sucinto. Dois lados conflagrados e dispostos a uma briga maior contra o
catolicismo. Quase todo evangélico do interior já ouviu alguma história de irmãos que
foram expulsos de uma pequena cidade por padres que não aceitavam evangélicos
no local. Verdade ou mentira, pouco importa, os evangélicos sempre se sentiram
fora de casa no Brasil.
Peregrinos em terra estranha, sem espaço
social. O desembarque da
religião americana levou muito tempo para produzir suas próprias novidades.
Afinal, toda a sorte de símbolos e ideias que estruturam a mentalidade
evangélica estava intimamente ligada com a história dos Estados Unidos; era
parte dela e, fora do seu espaço social de origem, essas ideias já não
significavam as mesmas coisas por aqui. Enquanto
as ideias americanas começavam a ganhar seus próprios significados no Brasil, a
ideia de um avivamento se formava. Esta é a chave para
compreender a experiência de fé no contexto brasileiro, patente na produção cultural:
“O que ocorreu nos anos 90 no Brasil foi uma
explosão do gospel como um movimento
cultural religioso, de um modo de ser evangélico, com efeitos na prática
religiosa e no comportamento cotidiano. Passou-se a experimentar vivências
religiosas combinadas em contextos socioculturais os mais variados, o que torna
possível uma unanimidade evangélica não planejada sem precedentes na história
do protestantismo no Brasil. Essas vivências são expressas por meio da música,
do consumo e do entretenimento.”
E essa mudança não foi pouca coisa. Se, nos anos
1930-40, os evangélicos condenavam o nacionalismo e a defesa da pátria enquanto
idolatria, agora já passavam a ver saídas para essa mesma pátria, saídas que
passam por um avivamento. Em 1994 começaram as marchas para Jesus, postulando publicamente a
presença dessa comunidade imaginada, enquanto fiéis marchavam sob o comando do
seu general. Para Raquel Sant’Ana, a Marcha para Jesus é um evento que se
assemelha a uma guerra, especificamente a uma “guerra de conquista”. O “exército de Deus” se forma a partir da alteridade radical e da
batalha espiritual. A batalha espiritual é essencial para construir a união do
povo de Deus, ela se dá entre o mundo e a igreja. Os que são da igreja, que se
converteram do caminho do mundo, precisam estar atentos e vigilantes para não
serem destruídos pelas armas do diabo no mundo. Assim, unidos, lutam sua
batalha. Essa união se expressa através de ações estratégicas em diversos
espaços, como o evento de culto ao ar livre que contamos no início deste texto.
É nesse momento de união que os evangélicos atuam em favor de
Jesus. Aquela fronteira que organizava a ação missionária se refaz e não
se refere mais à fronteira nacional, mas ao pertencimento ou não à comunidade
evangélica, entre pentecostais e históricos.
Curioso mesmo é que
isso tenha acontecido exatamente quando nossas mentes mais críticas começavam a
perceber que a própria ideia de um Brasil do futuro era coisa do
passado, e que as promessas de integração social que davam sentido a essa
esperança-projeção estavam rodando em falso – afinal, como esses mesmos críticos já constataram, esse Brasil
sempre foi uma projeção. Uma projeção que, no entanto, fez sentido por muito
tempo e dava ao processo de modernização seu significado. Seja como for, o Brasil a ser
colocado diante de Cristo não é outra coisa senão mais uma imagem de Brasil.
Mas, agora, a experiência prática que essa imagem organiza não dá sentido à
formação nacional, e sim ao seu ocaso. Lá do outro lado da
ponte, na fronteira de tensão, é onde está a maior parte dos evangélicos:
mulheres negras e trabalhadoras que sobrevivem em família com renda de até três
salários mínimos, e frequentam pequenas igrejas de até 200 membros. São essas pessoas que sonham acordadas com o Brasil avivado.
Não é nenhum exagero notar que é exatamente essa
esperança de um Brasil sob os domínios de Jesus – e, por isso, avivado – que
estava na boca da ex-primeira-dama durante a campanha derrotada de 2022: somos
um país com promessas que vão se cumprir e vamos fazer o que for necessário
para que a vontade de Deus aconteça aqui. Mas não foi ela quem criou – e
isso é o que importa – esse sentimento evangélico de um Brasil avivado. Esse avivamento do
Brasil, que fundamenta a fala da ex-primeira-dama, tornou-se notícia na mesma
década de 1990, quando os evangélicos começaram a perceber seu crescimento em
massa e, assim, passaram a interpretar que algo estava acontecendo: Deus estava
atuando, um avivamento. Ele está lá,
dentro da experiência de fé daqueles que se chamam de irmãos e fazem com que a
verdade em que acreditam se torne realidade, e a realidade se pareça muito com
a verdade em que acreditam.
Essa realidade é a de
um mundo falido e destruído, prestes ao colapso. Eles veem uma saída na
destruição completa, é claro, mas, ao menos, veem algo. Enquanto nossos olhos continuam voltados para o próximo governo ou
orçamento estatal (engessado pelo teto de gastos), lá, no fundão das grandes
cidades e nos rincões do interior, proclama-se a redenção nacional, o seu
avivamento. Ele começa no coração de cada um: “Quando nos despojarmos e
colocarmos tudo o que temos em Deus, aí sim, pegaremos fogo”. É tudo isso e
um pouco mais que faz pesar o sentimento evangélico de um Brasil avivado, que
organiza um sentido de esperança para esses brasileiros que colocam tudo o que
têm e são nessa certeza de que algo há de acontecer. O fogo há de queimar, como queima em seus corações, no mundo.
Sejam bem-vindos ao Brasil avivado.
Fonte: Por André
Castro, no Blog da Boitempo
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