Saúde mental no trabalho: pelo que lutamos?
O Ministério da Previdência Social divulgou que, em 2024,
foram registrados no país mais de 400 mil casos de afastamentos do trabalho por
problemas relacionados à saúde mental – número que representa a soma dos
afastamentos atribuídos a diagnósticos de transtornos ansiosos, episódios
depressivos, estresse e outros. No ano anterior, em 2023, mais de 288 mil
pessoas foram afastadas por problemas de saúde mental, enquanto, em 2022, foram
208 mil.
Os números impressionam e convocam os que atuam nas
agendas da saúde mental e do mundo do trabalho a refletir e agir.
O que precisamos definir é quais termos mobilizar para
entender esse cenário. Devemos compreendê-lo como um problema individual? Como
uma relação linear de causa e consequência em que a causa é o trabalho e a
consequência, um diagnóstico psiquiátrico – que levaria ao afastamento daquilo
que seria a causa do sofrimento? Se for isso, haveria algo específico no
trabalho que causaria sofrimento? E quais seriam as respostas que, nesses
termos, cabem à pessoa que está sofrendo?
Ou vamos entender como um problema complexo e coletivo?
Uma situação que demanda repensar e reconstruir as relações constituídas sobre
o trabalho e no trabalho? Um problema que demonstra que cuidar da saúde mental
no trabalho é ato que vai além da saúde – e que nos revela a necessidade de
questionar a estrutura do trabalho e as estruturas sociais? Se quisermos
transformar esse cenário é preciso encararmos criticamente o que esses números
sobre afastamento expressam.
Ainda cabe uma observação: teríamos que ir além e
questionar o que estamos definindo socialmente enquanto um problema de saúde
mental. De um lado, há uma discussão necessária a ser feita sobre patologização
da vida e, de outro, note-se que, nesse aumento explosivo de afastamentos do
trabalho por problemas relacionados à saúde mental, os diagnósticos de
ansiedade e depressão correspondem à maior parte dos casos.
Ora, se tomarmos como base o Relatório sobre Saúde
Mental no Mundo, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2022, ali também consta que o
número de diagnósticos de ansiedade e depressão aumentou de maneira geral e
globalmente após a pandemia. Por que? Não há uma única resposta. Seja lá quais
forem as respostas, importa não tomar esses diagnósticos de afastamento como verdade
absoluta.
·
Mudar
o trabalho para proteger a saúde mental
Os desafios para promover saúde mental no trabalho são
globais. Por isso, em 2022 a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
lançou, conjuntamente com a OMS, o documento Diretrizes sobre Saúde Mental no
Trabalho.
Esse documento entende o trabalho como um determinante social da saúde mental e
que, enquanto tal, pode ser tanto um fator de proteção quanto de risco.
A partir desse referencial, sustentado por documentos
anteriores da OIT e pela literatura, o documento reconhece dez categorias de,
assim denominados, “riscos psicossociais”, entre os quais: forma do trabalho,
carga e ritmo de trabalho, baixa ou nula participação do trabalhador na tomada
de decisões, ambiente e condições, cultura institucional e relações
interpessoais no trabalho. E esses fatores precisam ser considerados em
contexto ampliado, pois recessões econômicas, instabilidade financeira,
possibilidade de perda do emprego, contratos informais e precários, além de
iniquidades sociais e discriminação, também influenciam a saúde mental no
trabalho.
Com base nessa compreensão, o documento avança em sua
proposta, recomendando intervenções para a organização do trabalho, atenção
direta ao trabalhador e retorno ao trabalho, além incentivar a participação de
pessoas com problemas de saúde mental no mundo do trabalho. Também enfatiza o
papel do governo em conjunto com organizações sociais para criar políticas que
promovam saúde mental e locais de trabalho solidários.
Dito de outra maneira, o que a OIT e OMS reforçam é a
necessidade de tomada de ação, pois o trabalho, que pode ser importante para a
experiência de saúde mental e para ampliação da vida, também pode ampliar a
vulnerabilidade vivida quando a estrutura, ambiente e relações de trabalho
trazem insegurança e perpetuam violências.
Os caminhos criados pelo Brasil para promover saúde
mental precisam ser próprios, considerando características e desafios locais,
com respostas para os trabalhadores domésticos e informais, que representam 6
milhões e 39 milhões de pessoas, respectivamente, e respostas nos múltiplos
cenários de trabalho, como no campo. Ainda, não é possível ignorar, em especial
nos grandes centros urbanos, os problemas enormes enfrentados cotidianamente
pelos trabalhadores no deslocamento do e para o trabalho: como sentir bem-estar
no trabalho quando estar ali requer duas, três horas de transporte em condições
indignas? E como experimentar saúde mental quando a preocupação é assegurar
dois empregos porque a conta precisa fechar no final do mês?
De fato, é fundamental agir para promover “condições de
trabalho seguras, solidárias e decentes para todos”, como OIT e OMS assinalam.
Mas é preciso ter em vista que a promoção da saúde mental, incluindo no
trabalho, não se realiza se as condições gerais de vida não forem
transformadas.
·
A
disputa em torno da NR-01
No contexto das mudanças do mundo do trabalho e da
experiência de sofrimento mental dos trabalhadores, duas iniciativas recentes
postas no cenário nacional precisam ser mencionadas.
A Norma Regulamentadora nº 01 (NR-1), promovida pelo
Ministério do Trabalho e Emprego (TEM) e que trata do Programa de
Gerenciamento de Riscos (PGR) é um instrumento fundamental para a proteção e
garantia dos direitos dos trabalhadores. Ocorre que a Portaria MTE nº 1.419 , de 27 de
agosto de 2024,
atualizou a NR-01, alterando a sua redação e incluindo, de maneira inédita, a
identificação e gestão dos fatores de riscos psicossociais no ambiente de
trabalho. A normativa, no entanto, não define o que seriam os riscos
psicossociais, nem como esses fatores devem ser geridos.
Daí que está aberta a oportunidade para debate sobre
que trabalho queremos e quais respostas para promoção de saúde mental no
trabalho precisam ser desenvolvidas
Podemos entender, por exemplo, que relações de trabalho
com imposição de metas inalcançáveis, processo de trabalho fragmentados, cargas
horárias excessivas e salários reduzidos são riscos psicossociais. Se assim
for, a reposta teria que envolver a ampliação da participação do trabalhador na
tomada de decisões, a reorganização dos papeis de trabalho, a adoção de
jornadas de trabalho e salário dignos, entre outras mudanças.
Outra via é a da individualização e descontextualização
do sofrimento da estrutura de trabalho o que levaria à possível
responsabilização do trabalhador pelo sofrimento vivido. Por isso a importância
da reflexão sobre o tema — colocando em pauta os contratos de trabalho, a
situação de flexibilização dos direitos trabalhistas, os impactos da não
realização de acordos coletivos e o enfraquecimento das representações
sindicais, entre outras questões — e de debate crítico sobre que Programa de
Gerenciamento de Riscos interessa.
O fato é que está em aberta essa discussão e cabe fazer
a boa disputa.
·
Certificado
Empresa Promotora da Saúde Mental: um cavalo de Tróia?
E, claro, a disputa está sendo feita.
Em março de 2024 foi sancionada a Lei 14.831/2024, que institui o
Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental e estabelece os requisitos para a
concessão da certificação. Tal Certificado, com validade de dois anos, será
concedido pelo governo e pode ser obtido por empresas que desenvolvam ações de
promoção de saúde mental com “implementação de programas de promoção da saúde
mental no ambiente de trabalho” e “oferta de acesso a recursos de apoio
psicológico e psiquiátrico para seus trabalhadores”, entre outras diretrizes. A
lei autoriza as empresas a utilizarem “o certificado em sua comunicação e em
materiais promocionais”.
A Lei aparenta ser um avanço para promoção da saúde
mental no trabalho. No entanto, o que se tem observado desde a sanção da Lei é
a proliferação de plataformas do mundo corporativo que vendem iniciativas para
empresas um pacote de medidas para obtenção do certificado; medidas que incluem
“mindfulness” enquanto programas de saúde mental, “terapias online” para
enfrentar o “estresse financeiro”, e “workshops sobre ansiedade”. Soluções que
não apenas não enfrentam os problemas reais, como podem criar novos problemas –
o que será do funcionário que se recusar a participar de um workshop? Uma busca
rápida na internet ainda revela argumentos pró obtenção da certificação:
“eficiência operacional e redução de absenteísmo” e “melhoria da reputação
corporativa”.
Posto que a Lei está aí, resta questionar: qual é a
instrução normativa que estabelece os indicadores para cumprimento das
diretrizes da Lei? Qual é o método de certificação? Qual é o órgão regulador
para concessão de tal certificação? Não há resposta para nenhuma dessas
perguntas.
É preciso atenção para que esta Lei não se torne apenas
um instrumento do marketing empresarial, desresponsabilizando-as pelas
condições de trabalho e pela criação de novos problemas e sofrimentos para os
trabalhadores.
·
Retomar
as origens
É preciso lembrar: é parte da agenda política da saúde
mental alinhada à reforma psiquiátrica brasileira a relação com mundo do
trabalho. Portanto, a discussão sobre saúde mental e trabalho está longe de ser
uma novidade para esse campo. Os exemplos práticos disso vão das inúmeras
iniciativas desenvolvidas desde os serviços de saúde mental para promover o
direito ao trabalho e à renda, à articulação histórica, em 2004, da Política Nacional
de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas com a perspectiva da economia
solidária, tendo como horizonte garantir direito ao trabalho digno promovendo
como valores e práticas a cooperação e a solidariedade.
Mas é possível ainda voltar algumas décadas. A Carta de
Bauru, de 1987, afirmava: “O manicômio é expressão de uma estrutura, presente
nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas
fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação
contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de
cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os
trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições
de vida”.
Aliás, respostas sobre saúde mental no trabalho que
desconsideram as questões de classe, o racismo, a homofobia, o machismo, entre
outros fatores que constituem as relações sociais – incluindo as de trabalho –
apenas servem para não transformar nenhuma estrutura.
No limite, e retomando o início do texto, escolher os
termos com os quais vamos olhar para esse cenário é definir qual é o nosso
horizonte de transformação – se rebaixado ou se (ainda) é tempo de projetarmos
sonhos de um mundo mais justo. O momento para revermos que saúde mental no
trabalho queremos é pertinente. Em 2025 ocorrerá a 5ª Conferência Nacional de
Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (5ª CNSTT), que é organizada
pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e promovida
pelo Ministério da Saúde. Esta aí uma boa oportunidade para,
coletivamente, inventarmos um mundo em que o trabalho e saúde mental se
articulem de tal modo em que o direito ao trabalho é cuidado e cuidado no
trabalho é direito de todos.
Fonte: Por Cláudia Braga, em Outra Saúde
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