quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

SAÚDE ÚNICA:  O paradoxo da água

A água é um recurso vital para a existência humana e dos seres vivos em nosso planeta. O uso desenfreado, a falta de saneamento e de fiscalização afetam a sua disponibilidade e qualidade. Estima-se que dentre os ambientes aquáticos, a grande quantidade de água existente está presente no ambiente marinho, representando cerca de 97,5%, e somente menos de 2,5% dos corpos hídricos são de água doce, que está concentrada nas geleiras, seguido das águas subterrâneas (armazenadas em aquíferos), e apenas menos de 1% encontra-se nos rios, lagos e mangues – correspondendo à água que pode ser disponibilizada para o consumo humano e demais seres vivos. Além dessa dificuldade, a água existente necessita de tratamentos e avaliações da potabilidade previamente à sua utilização.

Recurso essencial para a vida, a água é fundamental para a manutenção dos ecossistemas e indispensável para o consumo humano, na agricultura, em atividades industriais, para a preservação da biodiversidade e na manutenção dos serviços ecossistêmicos. As bacias hidrográficas, em quase metade da superfície terrestre, ultrapassa os limites das fronteiras políticas dos países, mas parte da disponibilidade de água doce no planeta, correspondendo a cerca de 12% da água superficial, encontra-se no território brasileiro – o país é responsável por uma das principais regiões hidrográficas da Terra, com mais de 1.100 rios, sendo cerca de 80 deles conectados aos países vizinhos, incluindo duas das mais relevantes bacias (do Amazonas e do rio da Prata), bem como dos sistemas de aquíferos Guarani e Amazonas. O Brasil é, portanto, um dos países mais ricos em recursos hídricos (representados por rios, reservatórios, nascentes, aquíferos e áreas de mangue) que desempenham papéis vitais para a biodiversidade, o equilíbrio ambiental e estão no centro de todo o desenvolvimento das populações, como o bem-estar social e econômico. Além de seu papel ecológico, a água exerce uma função social importante, pois garante o desenvolvimento de comunidades, a segurança alimentar e o acesso à saúde, além de lazer, valor paisagístico e transporte. Mas apesar disso, sofremos com a degradação ambiental e o uso inadequado do solo, pela presença de poluentes químicos, agrícolas e industriais, causada principalmente pela contaminação e pelo despejo de esgoto não tratado, pela falta de uma correta gestão do uso da água (especialmente em períodos de estiagem), além da escassez de água agravada pelas mudanças climáticas que afetam o mundo todo, prejudicando os ecossistemas de uma forma irreversível. A contaminação das águas impacta negativamente tanto a fauna e a flora, locais quanto a saúde humana, impactando o abastecimento de água potável e comprometendo a sustentabilidade dos recursos hídricos no país. Consequentemente, a preservação e recuperação das águas brasileiras são urgentes para garantir a saúde dos ecossistemas e a qualidade de vida da população.

·       A agricultura e os recursos hídricos

Ao olharmos para o território brasileiro, o setor produtivo com maior utilização de recursos hídricos e que causa grande impacto na qualidade e disponibilidade de água, é a agricultura. Nosso país ocupa a lista dos 10 que mais possuem áreas irrigadas e de maior consumo de água nos cultivos agrícolas. Se olharmos a necessidade da alimentação, com uma previsão de até 2050 de alimentar cerca de 9 bilhões de pessoas, torna-se imprescindível o aumento em cerca de 60% na produção agrícola, e isso gera uma expectativa de aumento de 15% na captação de água. Além disso, o uso descontrolado de insumos agrícolas nas lavouras é a segunda maior causa da contaminação das águas superficiais e subterrâneas, trazendo ainda mais o risco de escassez deste recurso.

·       A falta de saneamento e as doenças de veiculação hídrica

A falta de saneamento básico no Brasil traz graves consequências para a saúde pública, facilitando a disseminação de doenças de veiculação hídrica, transmitidas pelo contato com água contaminada. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento do Ministério das Cidades, lançados em 2022, apenas 55,5% dos brasileiros têm seu esgoto tratado, o que significa que cerca de 90 milhões de pessoas ainda vivem sem uma coleta adequada. Esse esgoto, em muitos casos, é despejado diretamente nos ecossistemas aquáticos, contaminando rios, lagos e reservatórios. Em 2021, essa situação contribuiu para 191 mil internações causadas por doenças de veiculação hídrica, um reflexo direto das deficiências no saneamento que impactam tanto a saúde pública quanto o meio ambiente no país.

Entre as enfermidades mais comuns estão diarreia, hepatite A, leptospirose, febre tifoide, cólera e esquistossomose. A diarreia, por exemplo, é uma das principais causas de morte infantil em áreas sem acesso à água potável e tratamento de esgoto, especialmente em regiões mais pobres e periféricas. Em áreas onde o esgoto é despejado sem tratamento nos rios e córregos, a contaminação hídrica se intensifica, comprometendo também a qualidade da água que abastece comunidades próximas.

Essa situação impacta o sistema de saúde e a economia, já que o aumento de internações e tratamentos médicos sobrecarrega o atendimento público e reduz a produtividade das populações afetadas. Além disso, a contaminação de rios e reservatórios por esgoto, que muitas vezes são usados para abastecimento de água, não pode ser tratada como algo normal ou sem importância, como infelizmente tem sido encarada nos últimos tempos. Esse tipo de poluição afeta diretamente a qualidade da água destinada ao consumo humano, elevando os riscos de doenças e comprometendo a saúde de milhões de pessoas. Ignorar essa situação é negligenciar a saúde pública e o meio ambiente, além de perpetuar um problema que poderia ser mitigado com políticas de saneamento adequadas e investimentos em infraestrutura hídrica.

Em dois estudos recentes, foi observada a contaminação generalizada dos córregos urbanos na Região Metropolitana de São Paulo pelo vírus causador da COVID – SARS-CoV-2 – e por mais de oito diferentes tipos de antidepressivos. Esses estudos demonstram que o principal motivo da contaminação generalizada é a falta de saneamento, uma vez que, tanto o vírus SARS-CoV-2 quanto a detecção de antidepressivos está diretamente ligada ao lançamento de esgoto não tratado nos corpos hídricos da região. Outro exemplo dos efeitos da falta de saneamento foi a contaminação das águas do litoral paulista pelo norovírus nesse verão, que afetou mais de 11 mil pessoas, causando gastroenterite.

Uma das estratégias propostas pela ONU (Organização das Nações Unidas) foi a organização da Agenda 2030, composta por 18 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) muito audaciosos e que são interligados, representando grandes desafios de desenvolvimento enfrentados no Brasil e no mundo. Dentre os ODS, o objetivo n° 6 visa assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos os aspectos, desde a segurança alimentar e energética à saúde humana e ambiental. Se olharmos todos os objetivos, a importância da água permeia praticamente todos eles, sendo essencial para a vida de todos os organismos do planeta.

·       Padrões para Água Potável, Remoção de Resíduos e Proteção de Águas Superficiais no Brasil

A gestão de recursos hídricos no Brasil é pautada por regulamentações que visam garantir a qualidade da água para consumo humano, o manejo adequado de resíduos e a proteção das águas superficiais no ambiente natural. Esses padrões estão alinhados com diretrizes nacionais e internacionais, reconhecendo a importância de preservar os ecossistemas aquáticos e de atender às necessidades humanas de forma sustentável. No Brasil, os padrões de qualidade da água potável são definidos pela Portaria GM/MS nº 888/2021 do Ministério da Saúde. Ela estabelece limites para poluentes químicos, físicos e biológicos. Os parâmetros seguem normas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e garantem que a água fornecida à população seja segura para o consumo, reduzindo riscos à saúde pública.

A remoção e o tratamento de resíduos líquidos são regulamentados pela Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997) e pela Política Nacional de Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007). Essas normas determinam que resíduos provenientes de esgoto doméstico, atividades industriais e agrícolas devem ser tratadas antes de seu descarte nos corpos d’água. Tecnologias como estações de tratamento de esgoto (ETEs) e práticas de gestão integrada de resíduos visam minimizar a poluição hídrica, protegendo os ecossistemas e a saúde humana. As águas superficiais, como rios, lagos e reservatórios, desempenham um papel essencial no equilíbrio ambiental e no abastecimento hídrico. A Resolução CONAMA nº 357/2005 classifica os corpos d’água de acordo com seus usos preponderantes (abastecimento, recreação, preservação da fauna e flora aquáticas, entre outros) e estabelece limites de qualidade para cada classe.

Nessa mesma resolução é indicada a necessidade de serem realizados testes com organismos vivos (ensaios ecotoxicológicos), além das caracterizações químicas e físicas, tanto para parâmetros de qualidade das águas como de efluentes. Posteriormente, a Resolução CONAMA nº 430/2011 complementou a Resolução CONAMA nº 357/2005, elencando a importância dos ensaios ecotoxicológicos com organismos aquáticos com pelo menos dois níveis tróficos distintos e dispõe sobre as condições e padrões de lançamento de efluentes, mas se ressalta a importância dos órgãos ambientais estaduais, com suas próprias legislações, regulamentarem e direcionarem as diretrizes para o uso de quais organismos devem ser utilizados em tais avaliações. Em nosso país, a normatização de métodos de ensaios adequados é realizada por meio da Comissão de Estudos Especiais de Análises Ecotoxicológicas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). O Brasil, por ser considerado o país com maior biodiversidade do mundo, com seu território composto por biomas ricos em espécies animais e vegetais, as avaliações integradas entre os diversos organismos são imprescindíveis para a manutenção do equilíbrio ecológico e bem estar ambiental.

·       Saúde integrada e perspectivas para a proteção dos recursos hídricos

Diante dos desafios enfrentados pela gestão dos recursos hídricos no Brasil e no mundo, torna-se evidente que a abordagem integrada entre saúde, meio ambiente e desenvolvimento sustentável é essencial para garantir a proteção da água e a qualidade de vida das populações humanas e não humanas. O fortalecimento das políticas de saneamento, a redução da poluição e a implementação de práticas agrícolas mais sustentáveis são medidas urgentes para preservar esse recurso vital. Além disso, alguns aspectos devem ser observados com atenção para garantir a qualidade dos recursos hídricos no Brasil: garantir a universalização do saneamento (incluindo áreas irregulares), o uso de tecnologias avançadas de irrigação e plantio que reduzam o consumo de água na agricultura, o controle efetivo do despejo de resíduos industriais e domésticos e a preservação das áreas de nascentes e matas ciliares.

Muito já se fala em educação ambiental e na busca por despertar a preocupação individual e coletiva para as questões relacionadas ao meio ambiente, estimula-se a consciência crítica e uma nova forma de lidar com os problemas de saúde coletiva e ambiental. A conscientização e o engajamento da sociedade são fundamentais para promover mudanças efetivas, garantindo que as futuras gerações tenham acesso à água de qualidade. A interconexão entre saúde pública e meio ambiente reforça a necessidade de estratégias que considerem não apenas o uso responsável da água, mas também sua preservação como um bem comum indispensável para o equilíbrio dos ecossistemas e para todas as formas de vida no planeta.

 

Fonte: Por Lenita de Freitas Tallarico e Ricardo Hideo Taniwaki , no Le Monde

 

Nenhum comentário: