SAÚDE
ÚNICA: O paradoxo da água
A água é um recurso vital para a existência humana e
dos seres vivos em nosso planeta. O uso desenfreado, a falta de saneamento e de
fiscalização afetam a sua disponibilidade e qualidade. Estima-se que dentre os
ambientes aquáticos, a grande quantidade de água existente está presente no
ambiente marinho, representando cerca de 97,5%, e
somente menos de 2,5% dos corpos hídricos são de água doce, que está
concentrada nas geleiras, seguido das águas subterrâneas (armazenadas em
aquíferos), e apenas menos de 1% encontra-se nos rios, lagos e mangues –
correspondendo à água que pode ser disponibilizada para o consumo humano e
demais seres vivos. Além dessa dificuldade, a água existente necessita de
tratamentos e avaliações da potabilidade previamente à sua utilização.
Recurso essencial para a vida, a água é fundamental
para a manutenção dos ecossistemas e indispensável para o consumo humano, na
agricultura, em atividades industriais, para a preservação da biodiversidade e
na manutenção dos serviços ecossistêmicos. As bacias hidrográficas, em quase
metade da superfície terrestre, ultrapassa os limites das fronteiras políticas
dos países, mas parte da disponibilidade de água doce no planeta,
correspondendo a cerca de 12% da água superficial, encontra-se no território
brasileiro – o país é responsável por uma das principais regiões hidrográficas
da Terra, com mais de 1.100 rios, sendo cerca de 80 deles conectados aos países
vizinhos, incluindo duas das mais relevantes bacias (do Amazonas e do rio da
Prata), bem como dos sistemas de aquíferos Guarani e Amazonas. O Brasil é,
portanto, um dos países mais ricos em recursos hídricos (representados por
rios, reservatórios, nascentes, aquíferos e áreas de mangue) que desempenham
papéis vitais para a biodiversidade, o equilíbrio ambiental e estão no centro
de todo o desenvolvimento das populações, como o bem-estar social e econômico.
Além de seu papel ecológico, a água exerce uma função social importante, pois
garante o desenvolvimento de comunidades, a segurança alimentar e o acesso à
saúde, além de lazer, valor paisagístico e transporte. Mas apesar disso,
sofremos com a degradação ambiental e o uso inadequado do solo, pela presença
de poluentes químicos, agrícolas e industriais, causada principalmente pela
contaminação e pelo despejo de esgoto não tratado, pela falta de uma correta
gestão do uso da água (especialmente em períodos de estiagem), além da escassez
de água agravada pelas mudanças climáticas que afetam o mundo todo,
prejudicando os ecossistemas de uma forma irreversível. A contaminação das
águas impacta negativamente tanto a fauna e a flora, locais quanto a saúde
humana, impactando o abastecimento de água potável e comprometendo a
sustentabilidade dos recursos hídricos no país. Consequentemente, a preservação
e recuperação das águas brasileiras são urgentes para garantir a saúde dos
ecossistemas e a qualidade de vida da população.
· A agricultura e os recursos hídricos
Ao olharmos para o território brasileiro, o setor
produtivo com maior utilização de recursos hídricos e que causa grande impacto
na qualidade e disponibilidade de água, é a agricultura. Nosso país ocupa a
lista dos 10 que mais possuem áreas irrigadas e de maior consumo de água nos
cultivos agrícolas. Se olharmos a necessidade da alimentação, com uma previsão
de até 2050 de alimentar cerca de 9 bilhões de pessoas, torna-se imprescindível
o aumento em cerca de 60% na produção agrícola, e isso gera uma expectativa de
aumento de 15% na captação de água. Além disso, o uso descontrolado de insumos
agrícolas nas lavouras é a segunda maior causa da contaminação das águas
superficiais e subterrâneas, trazendo ainda mais o risco de escassez deste
recurso.
· A falta de saneamento e as doenças de veiculação
hídrica
A falta de saneamento básico no Brasil traz graves
consequências para a saúde pública, facilitando a disseminação de doenças de
veiculação hídrica, transmitidas pelo contato com água contaminada. Segundo
dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento do Ministério das Cidades,
lançados em 2022, apenas 55,5% dos brasileiros
têm seu esgoto tratado, o que significa que cerca de 90 milhões de pessoas
ainda vivem sem uma coleta adequada. Esse esgoto, em muitos casos, é despejado
diretamente nos ecossistemas aquáticos, contaminando rios, lagos e
reservatórios. Em 2021, essa situação contribuiu para 191 mil internações
causadas por doenças de veiculação hídrica, um reflexo direto das deficiências
no saneamento que impactam tanto a saúde pública quanto o meio ambiente no
país.
Entre as enfermidades mais comuns estão diarreia,
hepatite A, leptospirose, febre tifoide, cólera e esquistossomose. A diarreia,
por exemplo, é uma das principais causas de morte infantil em áreas sem acesso
à água potável e tratamento de esgoto, especialmente em regiões mais pobres e
periféricas. Em áreas onde o esgoto é despejado sem tratamento nos rios e
córregos, a contaminação hídrica se intensifica, comprometendo também a
qualidade da água que abastece comunidades próximas.
Essa situação impacta o sistema de saúde e a economia,
já que o aumento de internações e tratamentos médicos sobrecarrega o
atendimento público e reduz a produtividade das populações afetadas. Além
disso, a contaminação de rios e reservatórios por esgoto, que muitas vezes são
usados para abastecimento de água, não pode ser tratada como algo normal ou sem
importância, como infelizmente tem sido encarada nos últimos tempos. Esse tipo
de poluição afeta diretamente a qualidade da água destinada ao consumo humano,
elevando os riscos de doenças e comprometendo a saúde de milhões de pessoas.
Ignorar essa situação é negligenciar a saúde pública e o meio ambiente, além de
perpetuar um problema que poderia ser mitigado com políticas de saneamento
adequadas e investimentos em infraestrutura hídrica.
Em dois estudos recentes, foi observada a contaminação
generalizada dos córregos urbanos na Região Metropolitana de São Paulo
pelo vírus causador da COVID – SARS-CoV-2
– e por mais de oito diferentes tipos
de antidepressivos.
Esses estudos demonstram que o principal motivo da contaminação generalizada é
a falta de saneamento, uma vez que, tanto o vírus SARS-CoV-2 quanto a detecção
de antidepressivos está diretamente ligada ao lançamento de esgoto não tratado
nos corpos hídricos da região. Outro exemplo dos efeitos da falta de saneamento
foi a contaminação das águas do litoral paulista pelo norovírus nesse verão,
que afetou mais de 11 mil pessoas, causando gastroenterite.
Uma das estratégias propostas pela ONU (Organização das
Nações Unidas) foi a organização da Agenda 2030, composta por 18 Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS) muito audaciosos e que são interligados,
representando grandes desafios de desenvolvimento enfrentados no Brasil e no
mundo. Dentre os ODS, o objetivo n° 6 visa assegurar a disponibilidade e gestão
sustentável da água e saneamento para todos os aspectos, desde a segurança
alimentar e energética à saúde humana e ambiental. Se olharmos todos os
objetivos, a importância da água permeia praticamente todos eles, sendo
essencial para a vida de todos os organismos do planeta.
· Padrões para Água Potável, Remoção de Resíduos e
Proteção de Águas Superficiais no Brasil
A gestão de recursos hídricos no Brasil é pautada por
regulamentações que visam garantir a qualidade da água para consumo humano, o
manejo adequado de resíduos e a proteção das águas superficiais no ambiente
natural. Esses padrões estão alinhados com diretrizes nacionais e
internacionais, reconhecendo a importância de preservar os ecossistemas
aquáticos e de atender às necessidades humanas de forma sustentável. No Brasil,
os padrões de qualidade da água potável são definidos pela Portaria GM/MS nº
888/2021 do Ministério da Saúde. Ela estabelece limites para poluentes
químicos, físicos e biológicos. Os parâmetros seguem normas da Organização
Mundial da Saúde (OMS) e garantem que a água fornecida à população seja segura
para o consumo, reduzindo riscos à saúde pública.
A remoção e o tratamento de resíduos líquidos são
regulamentados pela Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997)
e pela Política Nacional de Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007). Essas
normas determinam que resíduos provenientes de esgoto doméstico, atividades
industriais e agrícolas devem ser tratadas antes de seu descarte nos corpos
d’água. Tecnologias como estações de tratamento de esgoto (ETEs) e práticas de
gestão integrada de resíduos visam minimizar a poluição hídrica, protegendo os
ecossistemas e a saúde humana. As águas superficiais, como rios, lagos e
reservatórios, desempenham um papel essencial no equilíbrio ambiental e no
abastecimento hídrico. A Resolução CONAMA nº 357/2005 classifica os corpos
d’água de acordo com seus usos preponderantes (abastecimento, recreação,
preservação da fauna e flora aquáticas, entre outros) e estabelece limites de
qualidade para cada classe.
Nessa mesma resolução é indicada a necessidade de serem
realizados testes com organismos vivos (ensaios ecotoxicológicos), além das
caracterizações químicas e físicas, tanto para parâmetros de qualidade das
águas como de efluentes. Posteriormente, a Resolução CONAMA nº 430/2011
complementou a Resolução CONAMA nº 357/2005, elencando a importância dos
ensaios ecotoxicológicos com organismos aquáticos com pelo menos dois níveis
tróficos distintos e dispõe sobre as condições e padrões de lançamento de
efluentes, mas se ressalta a importância dos órgãos ambientais estaduais, com
suas próprias legislações, regulamentarem e direcionarem as diretrizes para o
uso de quais organismos devem ser utilizados em tais avaliações. Em nosso país,
a normatização de métodos de ensaios adequados é realizada por meio da Comissão
de Estudos Especiais de Análises Ecotoxicológicas da ABNT (Associação
Brasileira de Normas Técnicas). O Brasil, por ser considerado o país com maior
biodiversidade do mundo, com seu território composto por biomas ricos em
espécies animais e vegetais, as avaliações integradas entre os diversos
organismos são imprescindíveis para a manutenção do equilíbrio ecológico e bem
estar ambiental.
· Saúde integrada e perspectivas para a proteção dos
recursos hídricos
Diante dos desafios enfrentados pela gestão dos
recursos hídricos no Brasil e no mundo, torna-se evidente que a abordagem
integrada entre saúde, meio ambiente e desenvolvimento sustentável é essencial
para garantir a proteção da água e a qualidade de vida das populações humanas e
não humanas. O fortalecimento das políticas de saneamento, a redução da
poluição e a implementação de práticas agrícolas mais sustentáveis são medidas
urgentes para preservar esse recurso vital. Além disso, alguns aspectos devem
ser observados com atenção para garantir a qualidade dos recursos hídricos no
Brasil: garantir a universalização do saneamento (incluindo áreas irregulares),
o uso de tecnologias avançadas de irrigação e plantio que reduzam o consumo de
água na agricultura, o controle efetivo do despejo de resíduos industriais e
domésticos e a preservação das áreas de nascentes e matas ciliares.
Muito já se fala em educação ambiental e na busca por
despertar a preocupação individual e coletiva para as questões relacionadas ao
meio ambiente, estimula-se a consciência crítica e uma nova forma de lidar com
os problemas de saúde coletiva e ambiental. A conscientização e o engajamento
da sociedade são fundamentais para promover mudanças efetivas, garantindo que
as futuras gerações tenham acesso à água de qualidade. A interconexão entre
saúde pública e meio ambiente reforça a necessidade de estratégias que
considerem não apenas o uso responsável da água, mas também sua preservação
como um bem comum indispensável para o equilíbrio dos ecossistemas e para todas
as formas de vida no planeta.
Fonte: Por Lenita de Freitas Tallarico e Ricardo Hideo Taniwaki , no Le Monde
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