Chris Hedges: A purga do
Estado profundo e o caminho para a ditadura
A guerra do governo Trump contra o estado profundo não é uma purgação.
Não se trata de nos libertar da tirania das agências de inteligência, da
polícia militarizada, do maior sistema prisional do mundo, das corporações predatórias
ou do fim da vigilância em massa. Não restaurará o Estado de Direito para
responsabilizar os poderosos e os ricos. Não cortará os gastos inchados e sem
prestação de contas — cerca de 1 trilhão de dólares — do Pentágono.
Todos os movimentos revolucionários, sejam de esquerda ou de direita,
desmontam as antigas estruturas burocráticas. Os fascistas na Alemanha e os
bolcheviques na União Soviética, uma vez no poder, purgaram agressivamente o
serviço público. Eles veem nessas estruturas, corretamente, um inimigo que
poderia impedir o seu controle absoluto sobre o poder. Trata-se de um golpe de
Estado aos poucos. Agora, temos o nosso próprio nos EUA.
Batalhas de retaguarda — como nos primeiros anos da União Soviética e da
Alemanha nazista — estão ocorrendo nos tribunais e nos veículos de mídia
abertamente hostis a Trump. No início, haverá vitórias pírricas — os
bolcheviques e os nazistas foram contidos por seus próprios judiciários e uma
imprensa hostil —, mas, gradualmente, as purgas, auxiliadas por um liberalismo
falido que já não defende ou luta por coisa alguma, garantirão o triunfo dos
novos senhores.
O governo Trump expulsou ou demitiu funcionários que investigavam
irregularidades dentro do governo federal, incluindo 17 inspetores-gerais.
Agências federais de inteligência e aplicação da lei, como o FBI e o
Departamento de Segurança Interna, estão sendo purgadas daqueles considerados
hostis a Trump. Os tribunais, à medida que são preenchidos com juízes
complacentes, se tornarão mecanismos de perseguição de “inimigos” do Estado e
esquemas de proteção para os poderosos e os ricos. A Suprema Corte, que
concedeu imunidade legal a Trump, já atingiu esse estágio.
“O expurgo original após a queda do Xá buscou livrar os ministérios dos
remanescentes seniores do antigo regime e fornecer empregos aos fiéis da
revolução”, diz um memorando desclassificado da CIA, datado de 28 de agosto de
1980, sobre a recém-formada República Islâmica do Irã. “A segunda onda de
expurgos começou no mês passado, após uma série de discursos de Khomeini.
Indivíduos de nível mais baixo que faziam parte da burocracia do Xá, aqueles
com formação ocidental ou aqueles considerados sem fervor revolucionário
suficiente foram aposentados ou demitidos em uma escala cada vez maior.”
Estamos repetindo os passos que levaram à consolidação do poder por
ditaduras do passado, embora com o nosso próprio idioma e idiossincrasias.
Aqueles que ingenuamente elogiam a hostilidade de Trump em relação ao Estado
profundo — que, reconheço, causou enormes danos às instituições democráticas,
destruiu as nossas liberdades mais preciosas, é um Estado dentro do Estado sem
prestação de contas e que orquestrou uma série de desastrosas
intervenções globais, incluindo os recentes fiascos militares no Oriente Médio
e na Ucrânia — deveriam observar atentamente o que está sendo proposto para
substituí-lo.
O alvo final do governo Trump não é o Estado profundo. O alvo são as
leis, regulamentos, protocolos e regras, bem como os servidores públicos que os
aplicam, que impedem o controle ditatorial. Compromisso, poder limitado, freios
e contrapesos e responsabilidade estão destinados a ser abolidos. Aqueles que
acreditam que o governo deve servir ao bem comum, e não aos ditames do
governante, serão expulsos. O Estado profundo será reconstituído para servir ao
culto à liderança. As leis e os direitos consagrados na Constituição se
tornarão irrelevantes.
“Aquele que salva o seu país não viola lei alguma”, gabou-se Trump no
Truth Social e no X.
O caos do primeiro governo Trump foi substituído por um plano
disciplinado para estrangular o que resta da anêmica democracia nos EUA. O
Projeto 2025, o Center for Renewing America e o America First Policy Institute
compilaram antecipadamente planos detalhados, documentos de posição, propostas
legislativas, ordens executivas sugeridas e políticas.
A base legal para essa desconstrução do Estado é a teoria do executivo
unitário, articulada pelo juiz da Suprema Corte Antonin Scalia em sua opinião
dissidente no caso Morrison v. Olson. Na visão de Scalia, o Artigo II da
Constituição significa que tudo o que não for designado como poder legislativo
ou judicial deve ser considerado poder executivo. Ele argumenta que o Poder
Executivo pode executar todas as leis dos Estados Unidos, exceto aquelas explicitamente
concedidas ao Congresso ou ao Judiciário pela Constituição. É uma justificativa
legal para a ditadura.
Embora o Projeto 2025 da Heritage Foundation não utilize o termo “teoria
do executivo unitário”, ele defende políticas alinhadas com os seus princípios.
O Projeto 2025 recomenda a demissão de dezenas de milhares de funcionários do
governo e a sua substituição por pessoas leais ao governo. Um ponto-chave desse
projeto é o enfraquecimento das proteções trabalhistas e dos direitos dos
funcionários públicos, tornando mais fácil demiti-los conforme a vontade do
Poder Executivo. Russell Vought, fundador do Center for Renewing America e um
dos principais arquitetos do Projeto 2025, voltou a ocupar o cargo de diretor
do Escritório de Gestão e Orçamento, posição que também ocupou no primeiro
governo Trump.
Um dos últimos atos de Trump em seu primeiro mandato foi assinar a ordem
“Criando a Categoria F no Serviço de Exceção”. Essa ordem removeu as proteções
de emprego para burocratas de carreira do governo. Joe Biden a revogou. Ela foi
ressuscitada com vingança. Isso também traz ecos do passado. A “Lei para a
Restauração do Serviço Público Profissional” dos nazistas, de 1933, resultou na
demissão de opositores políticos e não-arianos, incluindo alemães de ascendência
judaica. Da mesma forma, os bolcheviques expurgaram militares e funcionários
públicos considerados “contrarrevolucionários”.
A demissão de mais de 9.500 funcionários federais — com outros 75.000
aceitando um acordo de compra diferida menos seguro em meio a planos para
cortar 70% do pessoal de várias agências governamentais —, o congelamento de
bilhões de dólares em financiamento e a apreensão contínua de dados
confidenciais pelo chamado Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) de
Elon Musk não trata de reduzir o tamanho do governo ou aumentar a eficiência.
Os cortes nas agências federais farão pouco para conter os gastos
vorazes do governo federal se o orçamento militar — que os republicanos do
Congresso estão pedindo para aumentar em pelo menos US$ 100 bilhões na próxima
década — permanecer intocado. E embora Trump queira acabar com a guerra na
Ucrânia, parte de seu esforço para construir uma aliança com o autocrata de
Moscou que ele admira, ele apoia o genocídio em Gaza. O expurgo trata de desmantelar
a supervisão e as proteções. Trata de contornar milhares de estatutos que
estabelecem as regras para o funcionamento do governo. Trata de preencher
cargos federais com pessoas “leais” recrutadas de um banco de dados compilado
pelo Conservative Partnership Institute. Trata-se de enriquecer corporações
privadas — incluindo várias pertencentes a Musk — que receberão contratos
governamentais lucrativos.
Essa desconstrução também é, suspeito eu, trata de aumentar o capital da
nuvem de Musk, sua infraestrutura algorítmica e digital. Musk planeja
transformar o X no “aplicativo para tudo”. Ele está lançando o “X Money”, um
complemento ao aplicativo de mídia social, que oferece aos usuários uma
carteira digital “para armazenar dinheiro e fazer transferências entre pares”.
Algumas semanas após o anúncio da parceria do X Money com a Visa, a DOGE
solicitou acesso a dados classificados [confidenciais] do Internal Revenue
Service (IRS), incluindo milhões de declarações de impostos. Os dados incluem
números da Previdência Social e endereços, detalhes sobre quanto as pessoas
ganham, quanto dinheiro devem, propriedades que possuem e acordos de custódia
de filhos. Nas mãos erradas, essas informações podem ser comercializadas e
usadas como arma.
Musk está promovendo uma pauta de “IA em primeiro lugar” para aumentar o
papel da inteligência artificial (IA) em agências governamentais. Ele está
construindo um “repositório centralizado de dados” para o governo federal, de
acordo com a revista Wired. O fundador da Oracle, associado comercial de Elon
Musk e antigo doador de Trump, Larry Ellison, que recentemente anunciou um
plano de infraestrutura de IA de US$ 500 bilhões ao lado de Trump, instou as
nações a moverem todos os seus dados para “uma única plataforma de dados
unificada” para que possam ser “consumidos e usados” por modelos de IA. Ellison
já declarou anteriormente que um sistema de vigilância baseado em IA garantirá
que “os cidadãos se comportarão da melhor maneira possível, porque estamos
constantemente gravando e relatando tudo o que está acontecendo”.
Trump tem, como todos os déspotas, longas listas de inimigos. Ele
retirou detalhes de segurança de ex-funcionários do seu mandato anterior,
incluindo o general aposentado Mark Milley, que foi o oficial de mais alta
patente no Exército durante o primeiro mandato de Trump, e Mike Pompeo, que foi
diretor da Agência Central de Inteligência (CIA) e secretário de Estado de
Trump. Ele revogou ou ameaçou revogar as autorizações de segurança do
presidente Biden e de ex-membros do seu governo, incluindo Antony Blinken,
ex-secretário de Estado, e Jake Sullivan, ex-assessor de segurança nacional.
Ele está mirando veículos de mídia que considera hostis, bloqueando os seus
repórteres de cobrir eventos noticiosos no Salão Oval e os despejando dos seus
espaços de trabalho no Pentágono.
Essas listas de inimigos vão se expandir à medida que segmentos cada vez
maiores da população perceberem que foram traídos, que o descontentamento
generalizado se tornar palpável e a Casa Branca de Trump se sentir ameaçada.
Uma vez que o novo sistema esteja em vigor, as leis e regulamentos se
tornarão o que a Casa Branca de Trump disser que são. Agências independentes,
como a Comissão Federal Eleitoral, o Bureau de Proteção Financeira ao
Consumidor e o Sistema da Reserva Federal perderão as suas autonomias.
Deportações em massa, o ensino de valores "cristãos" e
"patrióticos" nas escolas — Trump prometeu "remover os radicais,
zelotes e marxistas que infiltraram o Departamento de Educação Federal" —
juntamente com a destruição de programas sociais, incluindo o Medicaid,
habitação de baixo custo, treinamento profissional e assistência para crianças,
criarão uma sociedade de servos e senhores. Corporações predatórias, como as
indústrias de saúde e farmacêutica, terão licença para explorar e saquear um
público desprovido de poder. O totalitarismo exige conformidade total. O
resultado, para citar Rosa Luxemburg, é a "brutalização da vida
pública."
Os remanescentes esvaziados do antigo sistema — a mídia, o Partido Democrata,
a academia, os restos dos sindicatos — não nos salvarão. Eles emitem platitudes
vazias, se encolhem de medo, buscam reformas incrementais inúteis e
acomodações, e demonizam os apoiadores de Trump, independentemente dos motivos
para votar nele. Eles estão se tornando irrelevantes. Esse desânimo é um
denominador comum na ascensão de regimes autoritários e totalitários. Ele gera
apatia e derrotismo.
O "Ato de Estabelecimento do Dia de Aniversário e Dia da Bandeira
de Trump", apresentado pela congressista Claudia Tenny, é um prenúncio do
que está por vir. O ato designaria 14 de junho como feriado federal para
comemorar o "Aniversário de Donald J. Trump e o Dia da Bandeira". O
próximo passo são os desfiles estatais coreografados com retratos gigantes do
grande líder.
Joseph Roth foi um dos poucos escritores na Alemanha a entender a
atração e a ascensão inevitável do fascismo. Em seu ensaio "O Auto-da-Fé
da Mente", que abordou a primeira queima em massa de livros pelos
nazistas, ele aconselhou outros escritores judeus a aceitar que haviam sido
derrotados: "Deixemos que nós, que lutávamos na linha de frente, sob a
bandeira da mente europeia, cumpramos o dever mais nobre do guerreiro
derrotado: Admitamos nossa derrota."
Roth, colocado na lista negra pelos nazistas, forçado ao exílio e
reduzido à pobreza, não se iludia com falsas esperanças.
"De que servem as minhas palavras", perguntou Roth,
"contra as armas, os alto-falantes, os assassinos, os ministros
desvairados, os jornalistas estúpidos que interpretam a voz deste mundo de
Babel, confuso de qualquer forma, através dos tambores de Nuremberg?"
Ele sabia o que estava por vir.
"Agora ficará claro para você que estamos indo em direção a uma
grande catástrofe", Roth, após exilar-se na França em 1933, escreveu a Stefan
Zweig sobre a ascensão ao poder dos nazistas. "Os bárbaros tomaram o
controle. Não se engane. O inferno reina."
Mas Roth também argumentou que, mesmo que a derrota fosse certa, a
resistência era um imperativo moral, uma maneira de defender a dignidade de
alguém e a santidade da verdade.
"Deve-se escrever, mesmo quando se percebe que a palavra impressa
não pode mais melhorar coisa alguma", insistiu ele.
Sou tão pessimista quanto Roth. A censura e a repressão estatal se
expandirão. Aqueles com consciência se tornarão inimigos do estado. A
resistência, quando ocorrer, será expressa em erupções espontâneas que se
coalescem fora dos centros de poder estabelecidos. Esses atos de desafio serão
recebidos com a repressão brutal do estado. Mas, se não resistirmos,
sucumbiremos moral e fisicamente à escuridão. Tornamo-nos cúmplices de um mal
radical. Isso, nunca devemos permitir.
Fonte: Brasil 247
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