Como exército rebelde
budista ajudou a resgatar os brasileiros escravizados por máfia de golpes
cibernéticos
Um
exército de rebeldes budistas foi essencial para a libertação dos brasileiros
escravizados por uma máfia de golpes cibernéticos em Mianmar. Após serem
mantidos reféns por três meses, Phelipe de Moura Ferreira e Luckas Viana dos
Santos retornaram ao Brasil nesta quarta-feira (19).
A
operação de resgate internacional teve participação do Exército Democrático
Budista dos Karen (DKBA).
Formado
por dissidentes das Forças Armadas de Mianmar, o grupo também colaborou com o
resgate de outros 260 imigrantes, após pressões de organizações da sociedade
civil que combatem o tráfico de pessoas.
Cintia
Meirelles, diretora da ONG The Exodus Road, que prestou assistência às famílias
de Phelipe e Luckas, explica ao g1 como
a organização ajudou a pressionar o exército budista a participar.
A
operação não foi fácil e contou com a ajuda do governo da Tailândia, que faz
fronteira com a região das máfias.
·
Caos
em Karen
Estereótipos
ocidentais costumam associar o budismo, religião predominante no país, apenas
ao pacifismo. A prática em Mianmar é de disputa entre grupos armados, monges
radicais, conflitos étnicos e religiosos e até acusações de genocídio contra o
povo muçulmano rohingya.
Na
fronteira entre Mianmar e a Tailândia fica o estado de Karen, que o governo
central do país não consegue controlar totalmente.
É
lá que vive a minoria dos povos karen, composta por uma população de 3,5
milhões de pessoas, grande parte de religião budista. O território é dominado
por facções armadas que lutam por um sistema independente na região, incluindo
o Exército Democrático Budista de Karen.
O
DKBA foi criado em 1994 após romper com o Exército de Libertação Nacional
Karen, de predominância cristã. É uma das facções rebeldes na fronteira com a
Tailândia que lutam pelo controle de Karen.
·
Milicianos
budistas?
Segundo
a BBC, esses grupos armados são acusados de serem complacentes com as máfias
cibernéticas na região. Em modelo clássico de milícia, os comandantes locais
decidiriam quem pode construir ou administrar os negócios, e parte dos lucros
financiaria a guerra entre as facções.
Cintia
Meirelles explica como foram feitas as negociações para o DKBA interferir no
resgate. O impulso veio da Tailândia, que aceitou cortar parte dos suprimentos
que fornece à região vizinha.
“A
gente começou a fazer pressão como sociedade civil com outras organizações
locais junto ao governo da Tailândia e vários países do mundo”, explica. “Por
que a Tailândia? Porque o país oferece energia e alimento para Mianmar.”
·
Estrangulamento
tailandês
No
início de fevereiro, a Tailândia cortou o fornecimento de eletricidade,
internet e combustível para cinco áreas de fronteira em Mianmar na tentativa de
bloquear os centros de golpes cibernéticos.
A
pressão se intensificou na região após o sequestro do ator chinês Wang Xing,
que foi resgatado no início do ano na região.
Depois
disso, finalmente o comandante do exército do DKBA prometeu ações para reprimir
essas organizações criminosas e resgatar as vítimas de tráfico humano na
região.
“A
partir de agora, o DKBA lançará uma repressão aos estabelecimentos ilegais em
nossa área de responsabilidade em Mianmar. Se algum for encontrado, os
operadores serão expulsos e as vítimas serão resgatadas", afirmou o
comandante do exército, o coronel San Aung, ao jornal tailandês "The
Nation".
As
organizações entregaram ao DKBA uma lista com os nomes de centenas de
imigrantes identificados como vítimas de tráfico humano na região.
A
partir dessa lista, o exército budista identificou os brasileiros e garantiu
sua segurança até serem transferidos de Mianmar a um centro de detenção na
Tailândia, onde foi comprovado que eram vítimas de tráfico.
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Tráfico
humano
O
crime de tráfico humano é comum no Sudeste Asiático, região cercada de
instabilidade política e conflitos internos e religiosos que remontam à
independência da Birmânia do Reino Unido, em 1948.
Enganados
por falsas promessas para trabalhar na área de tecnologia, os brasileiros foram
submetidos a uma rotina de trabalho de 22 horas diárias. Eles eram obrigados a
praticar golpes cibernéticos, sujeitos a punições como agachamentos e
eletrochoques.
Em
9 de fevereiro, antes da operação de resgate do DKBA, Luckas e Phelipe
conseguiram fugir com outros 85 imigrantes.
Como
seus nomes já estavam na lista, eles foram localizados, detidos pelo exército
budista e transferidos para um centro de detenção em Mae Sot, cidade tailandesa
que faz fronteira com Mianmar. De lá, finalmente conseguiram voltar para casa.
¨
Tráfico
humano: veja a cronologia que levou dois brasileiros a serem escravizados em
Mianmar
Dois
brasileiros que estavam sendo mantidos reféns
havia mais de três meses por uma máfia de golpes cibernéticos em Mianmar, no
Sudeste Asiático,
conseguiram fugir do local e foram resgatados com a ajuda da ONG internacional
"The Exodus Road" no último domingo (9).
Luckas
Viana dos Santos, de 31 anos, e Phelipe de Moura Ferreira, de 26 anos, aceitaram promessas falsas de
emprego em 2024 e
acabaram sendo vítimas de tráfico humano em KK Park, Mianmar.
O
local é considerado uma "fábrica de golpes online" e ambos foram
escravizados para aplicarem golpes.
Phelipe
e Luckas conseguiram fugir ao lado de
centenas de imigrantes. A fuga foi combinada pelos reféns, que
conseguiram avisar familiares e ativistas sem que fossem descobertos pelos
mafiosos, que monitoravam tudo.
Eles
foram detidos por agentes do DKBA (Exército Democrático Karen Budista) e, na
sequência, foram levados para um centro de detenção. Três dias depois, foram
transferidos para a Tailândia, onde aguardam a embaixada brasileira para que
possam ser repatriados.
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O g1 elaborou
uma linha do tempo que
destaca os principais acontecimentos do caso. Veja abaixo:
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Outubro de 2024
A
mãe do paulistano Luckas Viana dos Santos, de 31 anos, conta que o filho tem amigos
na Ásia e recebeu uma proposta de um deles que morava na região para trabalhar
em um cassino nas Filipinas no começo de 2024.
Luckas
foi para lá, começou a trabalhar no cassino, mas meses depois o estabelecimento
fechou. Como não tinha dinheiro para voltar ao Brasil, ele procurou por outras
oportunidades de trabalho pela região.
Foi
quando recebeu pelo Telegram o convite para trabalhar na área da tecnologia em
Mae Sot, cidade tailandesa que faz fronteira com Mianmar. A viagem foi marcada
para 7 de outubro.
"Ele
falou que ia para Tailândia que lá era mais barato e que o dinheiro que tinha
dava pra ir pra lá. Estranhei o primeiro telefonema porque ele disse que não
estava bem", afirmou Cleide Viana, em entrevista ao Fantástico em dezembro
de 2024.
Luckas
acabou sendo levado pelos mafiosos para KK Park, em Minamar, e passou a ser
escravizado pela máfia de golpes cibernéticos, sendo obrigado a aplicar golpes.
·
Novembro de 2024
Já
o outro paulistano, Phelipe de Moura Ferreira, foi feito refém em novembro de
2024.
O
pai dele Antônio Ferreira, conta que o filho já havia trabalhado em 2023 em
Laos, no sudeste da Ásia, em Dubai, nos Emirados Árabes e em Filipinas. Em
2024, ele retornou ao Brasil e teve uma proposta de emprego no Uruguai. Então,
decidiu sair novamente do país para trabalhar fora.
Quando
estava no Uruguai, ele recebeu pelo Telegram uma proposta de emprego na área da
tecnologia na Tailândia. "Essa suposta empresa comprou a passagem dele
para Tailândia, do Uruguai para Tailândia", diz o pai.
Phelipe
relatou, na época, que um motorista ia pegá-lo no hotel. Foi esse motorista que
o levou para a área em Mianmar, onde se tornou refém com outros imigrantes,
sendo obrigado a aplicar golpes. O local é o mesmo onde Luckas já estava. Os
dois, até então, não se conheciam.
·
Dezembro de 2024
Phelipe
ficou semanas sem dar notícia, até que conseguiu se comunicar no começo do mês
sem que ninguém descobrisse, já que tudo era monitorado pelos criminosos.
"Eu
estava desesperado. Eu liguei para a polícia, e a polícia falou: "Seu
Antônio, o senhor tem que procurar a embaixada do Brasil ou Itamaraty. Aí eu
liguei para o Ministério de Relações Exteriores e eles me passaram o WhatsApp e
o contato da Embaixada do Brasil lá em Mianmar. Disseram que ia resgatar ele,
mas isso se percorreu por dias e nada. Não fizeram mais nada, nada mesmo",
disse Antônio.
Luckas
também conseguiu se comunicar com a família em dezembro. A mãe dele passou a
divulgar o caso nas redes sociais pedindo ajuda. Ela ressalta também a falta de
ajuda por parte do Ministério das Relações Exteriores.
"Meu
filho aceitou uma vaga de emprego e foi levado para serviço escravo em Mianmar,
dia 8 de dezembro um dia antes do meu aniversário, o chefe pediu 20 mil
dólares. Peço a oração de todos , meu filho não está bem, está sendo punido por
não conseguir aplicar golpes", escreveu nas redes sociais a mãe de Luckas,
na época.
As
duas famílias passaram, então, a ser assistidas pela ONG The Exodus Road",
organização civil internacional de combate ao tráfico de pessoas, e também se
conheceram para se ajudarem.
O
primeiro contato com a ONG foi feito em 11 de dezembro pela família de Phelipe.
"Graças
a Deus que a Polícia Federal me passou o contato para esse anjo chamado Cíntia
Meireles, que é da ONG Exodus. Ela imediatamente já ligou para mim, já orientou
a gente, coisa que a embaixada do Brasil não fez, e nem o Ministério de
Relações Exteriores fez. De lá pra cá tivemos esperança de encontrar nosso
filho", afirmou Antônio, pai de Phelipe, ao g1.
·
15 de janeiro de 2025
Em
15 de janeiro deste ano foi feita uma reunião entre integrantes da ONG
"The Exodus Road" com representantes do governo de Mianmar e da
Tailândia para a liberação de 371 vítimas de tráfico de pessoas, entre elas os
dois brasileiros.
Uma
lista feita pelos integrantes da organização, reunindo as nacionalidades das
centenas de vítimas, foi apresentada às autoridades.
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8 de fevereiro de 2025
Nas
mensagens, às quais o g1 teve
acesso, ele contou que ia cruzar um rio com outras 85 pessoas e correr por dois
quilômetros. Phelipe pediu orações e ainda se despediu caso algo acontecesse
com ele.
"Ora
por mim e pede para minha vó, Iorrana e todo mundo orar por nós para que tudo
dê certo. São 85 pessoas. Eu só quero que tudo dê certo. Eu te amo, pai. Se
acontecer algo comigo, saiba que eu tentei ao máximo", escreveu.
Luckas
Viana também avisou a família. E na sequência, ativistas foram informados sobre
a fuga e já se mobilizaram em relação às documentações que comprovassem que os
dois eram vítimas de tráfico humano.
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9 de fevereiro de 2025
Phelipe
e Luckas conseguiram fugir entre a noite de sábado (8) e madrugada de domingo
(9) com centenas de imigrantes. Os detalhes de como conseguiram fugir não foram
divulgados.
Quando
fugiram, acabaram sendo detidos por agentes do DKBA (Exército Democrático Karen
Budista). O grupo, que é formado por rebeldes dissidentes das Forças Armadas de
Mianmar, encaminharam todos a um centro de detenção local após negociações com
a ONG Exodus Road.
A
ONG confirmou a eles a fuga dos brasileiros e outros estrangeiros de 21 países
feita no último sábado, apresentando a lista e informações.
"Essa
operação da DKBA [de deter os brasileiros] é uma operação pontual onde eles vão
libertar essas 371 vítimas. Eles já estavam na lista de vítimas", explicou
Cíntia Meireles, diretora da ONG, ao g1.
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12 de fevereiro de 2025
Phelipe,
Luckas e outros imigrantes foram transferidos para um centro de detenção em Mae
Sot, cidade tailandesa que faz fronteira com Mianmar, onde estão sendo feitos
procedimentos para comprovarem que são realmente vítimas de tráfico humano.
Os
dois entraram em contato com as famílias e passam bem. Eles aguardam a
embaixada brasileira os retirarem do centro de detenção para conseguirem ser
repatriados.
"No
caso deles, a gente já tem toda a documentação. É um procedimento legal e em 15
dias eles serão liberados. Tendo a liberação, eles vão ser encaminhados para a
embaixada que deve, aí sim, cumprir o repatriamento que foi já solicitado pela dona
Cleide [mãe de Luckas] e pelo senhor Antônio [pai de Phelipe] junto a DPU, que
é a carta de hipossuficiência com pedidos de repatriamento de vítimas de
tráfico no exterior".
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13 de fevereiro de 2025
O
pai de Phelipe de Moura Ferreira contou ao g1 que fez videochamada com o filho na
manhã desta quinta-feira (13) e viu as marcas das agressões que ele sofreu.
"Ele
ligou para mim e mostrou o machucado dele. Está com perna toda vermelha, braço
todo vermelho, de tanto choque e paulada que levava lá. Aqueles malditos",
afirmou Antônio Carlos Ferreira.
Conforme
Antônio, ele foi avisado nesta quinta-feira (13) que no sábado (15) a embaixada
brasileira irá retirar Phelipe e Luckas da base militar onde estão em Mae Sot,
Tailândia, e irá levá-los para Bangkok.
A
mãe de Luckas também foi informada na quinta-feira (13) sobre essa retirada que
será feita pela embaixada e se diz aliviada. "Ele me ligou na madrugada e
está bem, graças a Deus. E agora eu estou bem", afirmou Cleide Viana.
Fonte: g1

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