quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Investigação detalha estratégias de um dos maiores grileiros da Amazônia

Em 15 de fevereiro de 2021, o pecuarista brasileiro Bruno Heller assinou um contrato em que vendia a fazenda Serra Formosa a um de seus funcionários. Passados mais de dois anos, quando Heller foi alvo de uma grande operação da Polícia Federal contra a grilagem, ficou claro que a suposta venda foi o primeiro passo de um sofisticado plano para roubar e desmatar uma grande extensão de terras públicas.

A data do contrato, 16 de março de 2006, era muito anterior à data em que o documento fora efetivamente redigido. Mas havia outros problemas. De acordo com investigadores, o contrato era uma obra de ficção. A propriedade de 3 mil hectares nunca foi de fato vendida para o funcionário de Heller, que era apenas um laranja – estratégia comum na Amazônia brasileira para evitar punições por atividades criminosas. Heller sabia que suas próximas ações não passariam despercebidas, e preparava o terreno para que as autoridades colocassem a culpa em outra pessoa.

As investigações mostraram que a especialidade do fazendeiro não é nem o gado, nem o plantio, mas sim a grilagem de terras no sudoeste do Pará, às margens da BR-163 – um dos principais hotspots do desmatamento na Amazônia, onde grandes extensões de floresta foram desmatadas para dar lugar à pecuária bovina e às plantações de soja.

Lá, no município de Altamira, perto do distrito de Castelo dos Sonhos, Heller e seus familiares registraram mais de 24 mil hectares de terra em seus nomes, equivalente à área urbana da cidade de Campinas, em São Paulo.

Autoridades concluíram que a maior parte dessas áreas está em terras públicas não destinadas, ou seja, que pertencem aos governos federal ou estaduais e ainda não foram transformadas em áreas protegidas, como terras indígenas ou unidades de conservação. Devido à falta de proteção, essas áreas atraem grileiros e respondem por cerca de 30% do desmatamento na Amazônia.

No caso de Heller, a maior parte de suas propriedades foi registrada sobre uma área federal chamada Gorotire, e outra parte sobre o assentamento da reforma agrária PDS Terra Nossa. Áreas que deveriam pertencer a todos os brasileiros, mas que foram ilegalmente transformadas em propriedade privada de Heller.

Ione Nakamura, promotora agrária do Ministério Público do Pará, esclarece que a propriedade privada no Brasil requer a devida documentação que demonstre a transferência da terra do Estado ao indivíduo, antes que este possa vendê-la a terceiros. Ela observa que as pessoas que ocupam essas áreas não costumam ter esses documentos, o que significa que não são donas das terras – embora tenham documentos provando que as compraram de outro indivíduo. “Eles não são donos da terra, pois a terra é pública”, esclarece. Nakamura acrescenta que encontrou muitos casos parecidos em seus dez anos de trabalho no oeste do Pará.

Em e-mail à Mongabay, o advogado de Heller afirmou que “o grupo familiar vem exercendo a propriedade legal, livre e pacífica da propriedade rural da família” desde os anos 1970 e que todas as circunstâncias estão sendo esclarecidas junto às autoridades.

Quando a Polícia Federal lançou a Operação Retomada em agosto de 2023, Heller chegou às manchetes do noticiário como o “maior desmatador da Amazônia”. Ele não foi o primeiro a receber esse título. Os fazendeiros Ezequiel Antônio Castanha e Antonio José Junqueira Vilela Filho também já foram apontados como os maiores desmatadores da Amazônia.

“A competição é acirrada”, diz Girolamo Domenico Treccani, professor de direito agroambiental da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Além de grilar áreas maiores do que alguns municípios, Heller, Vilela e Castanha compartilham outra característica: o profissionalismo com que conduzem seus negócios. O planejamento estratégico de Heller, descrito em detalhes na investigação da Polícia Federal, está à altura da sagacidade de muitos CEOs corporativos.

Algumas semanas depois que a venda falsa da fazenda foi acordada, a filha e braço direito de Bruno Heller, Tatiana Heller, enviou uma mensagem para a advogada Rafaele Dalmagro, de acordo com a polícia. “Vamos mexer com um serviço aqui na fazenda e vai dar uns B.O.  com o Ibama kkk”, escreveu. “Daí a gente queria conversar com você para ver se tem algo a mais que a gente possa fazer para não ficar tão ruim.”

Não se sabe qual foi o resultado da reunião de Tatiana com Dalmagro; de acordo com o advogado da última, ela apenas “forneceu assessoria jurídica e consultoria focadas na legislação ambiental e administrativa”. Mas o trabalho na fazenda de Heller começou dez dias depois, em 15 de março, quando homens equipados com motosserras começaram a derrubar uma grande parte da floresta.

De acordo com a investigação, os trabalhadores foram contratados por um homem conhecido como Mazinho, que cobrou pelo menos R$ 80 mil de Heller para coordenar o trabalho. Esses intermediários, conhecidos no jargão local como “gatos”, são bastante conhecidos Amazônia. Na investigação sobre Heller, os operadores de motosserras testemunharam que trabalhavam oito horas por dia, sete dias por semana, no calor da floresta.

Quando agentes da Polícia Civil do Pará apareceram para autuar o desmatamento ilegal dois meses mais tarde, os trabalhadores ainda estavam lá – e a fiscalização já era aguardada pela família Heller. “Recebemos as visitas  que estávamos esperando”, escreveu Tatiana para Dalmagro à época.

“Já imaginávamos que isso iria acontecer”, respondeu a advogada, que a aconselhou a cumprir a ordem dos policiais de ir à delegacia no dia seguinte: “Eu conheço esse pessoal que autuou vocês. Não há problema em comparecer, mas eles vão exigir dinheiro”, alertou Dalmagro. A advogada disse à Mongabay por e-mail que “seus serviços foram técnicos e nenhum crime foi cometido.”

Em seu depoimento na delegacia de polícia, Heller disse que a área não era dele, mas sim de Humberto Luiz Missassi, o funcionário que havia “comprado” a terra três meses antes, de acordo com o falso contrato de venda.

Segundo a Polícia Federal, Bruno Heller pagou R$ 8 mil aos policiais que, em troca, se comprometeram a fazer um “relatório de boa” sobre o desmatamento que flagraram. Depois do acordo, Dalmagro deu sinal verde aos operadores de motosserra de Heller, dizendo que a família “poderia continuar o serviço sem problema”.

Em meados de junho, 3.134 hectares de floresta, uma área dez vezes maior que o Central Park de Nova York, haviam sido devastados.

·       Assessoria técnica

Grileiros como Bruno Heller utilizam os serviços de vários profissionais para além dos advogados, dos “gatos” e dos operadores de motosserras que cortam as árvores na floresta. “É um tipo de crime organizado que trabalha com divisão de tarefas”, diz a promotora Nakamura. “Não é para amadores.”

Os principais sócios de Heller eram a família Dalmagro, de Novo Progresso, um município a 150 km de Castelo dos Sonhos. Além de Rafaele fornecer assessoria jurídica, sua família é dona de um escritório de engenharia comandado pelo pai, Bianor Dalmagro, e pelo irmão dela, Julio César Dalmagro.

A empresa Guará Agrosserviços é especializada em georreferenciamento de propriedades rurais, o que envolve traçar os limites de fazendas por meio de suas coordenadas geográficas e transformar os dados em um mapa virtual. “O esquema todo precisa desse braço técnico porque a grilagem também acontece numa dimensão cartográfica”, diz Maurício Torres, professor da UFPA que há 20 anos estuda a dinâmica da grilagem de terras no sudoeste do Pará.

O georreferenciamento é exigido para cadastrar as propriedades no Cadastro Ambiental Rural, conhecido como CAR. O sistema foi criado em 2012 pelo governo federal para ajudar a monitorar o desmatamento, mas desde então foi subvertido e transformado numa ferramenta da grilagem.

Como o CAR é autodeclaratório, qualquer um pode registrar uma propriedade sem ter de provar que é o verdadeiro dono dela. O documento fornece um verniz de legalidade a áreas públicas tomadas ilegalmente. É comum, por exemplo, encontrar anúncios de áreas griladas na Amazônia com os dizeres “CAR e GEO, o que significa que estão cadastradas no sistema do CAR e foram georreferenciadas por um engenheiro como Bianor Dalmagro.

“O problema é que, como o CAR é autodeclaratório, o sistema permitiu muita falcatrua”, diz o professor de legislação agroambiental Treccani, para quem o problema não é o cadastro em si, mas sim o mau uso dele. “É por isso que o CAR é agora considerado um dos maiores instrumentos da grilagem.”

Em maio de 2022, Bianor Dalmagro registrou 530 CARs no sudoeste do Pará, 90% dos quais se sobrepunham a terras públicas, inclusive áreas protegidas. Pelo menos 14 desses registros estavam no nome de membros da família Heller; 12 deles são de propriedades contíguas que, juntas, formam uma área enorme, de acordo com as autoridades.

“[Bruno Heller] parece contar com os numerosos membros do seu grupo familiar, pessoas que nem sequer residem no estado do Pará, mas atuam como ‘testas de ferro’ ou laranjas na titularidade formal dos imóveis rurais”, afirmou a Polícia Federal.

O escritório da Guará foi alvo da Polícia Federal pela primeira vez em 2021, numa investigação sobre uma organização criminosa acusada de desmatar 15 mil hectares dentro da Floresta Nacional Jamanxim. De acordo com os investigadores, os Dalmagro eram encarregados de registrar propriedades ilegais para o grupo no sistema do CAR, várias delas no nome de laranjas.

Quando a Operação Retomada foi lançada dois anos depois, o escritório dos Dalmagro foi alvo de nova busca da polícia, desta vez por supostamente apoiar Heller na grilagem de terras.

Em e-mail enviado à Mongabay, o advogado de Bianor e Julio declarou que a Guará Agrosserviços forneceu apenas serviços técnicos, não inventou nenhuma informação e não pode ser responsabilizada pelas ações de seus clientes.)

·       O tapetão

Os serviços dos Dalmagro não se limitaram ao georreferenciamento. Dois meses antes dos Heller começarem a desmatar a fazenda Serra Formosa, a Guará Agrosserviços enviou a Bruno um mapa que mostrava a divisão da área em 11 lotes.

O mapa orientaria o trabalho do empreiteiro contratado para coordenar o desmatamento na área. “O cara que está querendo pegar o serviço lá ele quer dividir porque ele já quer olhar como é o mato, para ter uma noção mais ou menos [do trabalho]”, disse Bruno Heller a um dos funcionários da Guará por mensagem de texto.

Uma vez que a derrubada começou, o mesmo funcionário da Guará passou a enviar imagens de satélite da área a Heller para que ele pudesse acompanhar o trabalho quase que em tempo real. “Parece que os caras desaceleraram… Achei que estivesse perto de acabar, mas ainda falta um tanto, não é?”, disse um funcionário da Guará ao fazendeiro no começo de maio de 2021. De acordo com a Polícia Federal, a equipe de Dalmagro estava “ciente, foi conivente e até prestou assistência ao desmatamento realizado na área investigada.”

Uma vez que as árvores foram derrubadas, Heller começou a planejar o próximo passo: queimar os arbustos e troncos remanescentes. Sua principal preocupação, mais uma vez, era não ser notado pelos agentes ambientais.

Heller aconselhou Mazinho, o empreiteiro contratado, a atear fogo na área só depois que os fazendeiros vizinhos começassem a queimar seus pastos, para distrair as autoridades. “Tem que ser na mesma hora em que o pessoal vai colocar [fogo] também pra confundir o povo aí né?”, disse ele.

Seis meses depois de realizar a venda falsa a seu funcionário, Heller seguiu a cartilha dos desmatadores e comprou sementes de gramíneas de pastagem para espalhar sobre a terra queimada; quase 90% das áreas desmatadas na Amazônia brasileira são transformadas em pasto, de acordo com pesquisa do instituto Imazon. No caso de Heller, o gado criado nas áreas desmatadas ilegalmente foi parar nas prateleiras dos supermercados Carrefour, de acordo com a Repórter Brasil.

“Nasceu bem o capim, parece que tá bem formado”, disse Heller meses mais tarde. “Tá só o tapetão, tá tudo beleza.”

·       A sagrada instituição da grilagem

Grileiros profissionais como Bruno Heller vicejam na Amazônia. Menos de um ano após a Operação Retomada, por exemplo, outra operação na mesma região do Pará teve como alvo uma organização criminosa suspeita de destruir 15 mil hectares de floresta.

“Há muitos Bruno Hellers atuando em toda a Amazônia”, disse Torres, professor da UFPA. Roubar terras públicas é visto como algo normal e até positivo em algumas partes da região, acrescenta. “Há uma aceitação da grilagem como algo heróico, como um vetor do desenvolvimento.”

A história da colonização da Amazônia explica parte dessa cultura. Durante a ditadura militar (1964-1985), pessoas de outras partes do país foram encorajadas a migrar para a floresta para ocupar vastas áreas de terras supostamente desocupadas, ignorando completamente as comunidades indígenas que viviam ali há milhares de anos.

“As pessoas têm a percepção de que há muita terra sem dono na Amazônia, e isso cria a impressão equivocada de que elas podem chegar lá e se apropriar dessas áreas”, diz Nakamura.

De acordo com a promotora, a maioria dos grileiros nem mesmo tem a intenção de trabalhar na terra, mas apenas de lucrar com a transferência da área para outra pessoa. “É a indústria da grilagem”, diz Nakamura, explicando que a principal forma de agregar valor à terra é desmatando a floresta. “A terra é valorizada no mercado assim que é desmatada, numa lógica totalmente contrária à da justiça climática.”

O pecuarista Bruno Heller, alvo de operação da Polícia Federal em agosto de 2023 e considerado um dos “maiores desmatadores da Amazônia”, em uma de suas poucas fotografias conhecidas. Imagem cedida pela Polícia Federal.

O desmatamento também é usado para provar que a terra vinha sendo ocupada de forma produtiva há alguns anos, uma exigência legal para aqueles que querem sua escritura. A lei brasileira atualmente permite a regularização de áreas ilegais ocupadas até 2011, mas deputados da bancada ruralista estão constantemente tentando afrouxar a lei.

Mesmo quando os grileiros são pegos, como no caso de Heller, é raro que tenham de devolver as áreas que roubaram do Estado. “A pessoa é presa, multada, mas ninguém retoma a terra. O crime compensou, e em pouco tempo ele vai grilar outra área”, diz Torres. “Ninguém vai questionar a instituição sagrada da grilagem.”

Nakamura diz que o crime é incentivado por uma combinação de conivência política e desmantelamento dos órgãos públicos que deveriam atuar para regenerar estas áreas. As penas para esses crimes são muito leves, acrescenta ela. “Seria interessante se o crime fosse tratado como o tráfico de drogas, esses crimes extremamente graves para a sociedade e que estão intimamente associados ao crime organizado.”

Heller foi preso em agosto de 2023, no dia em que a polícia fez uma busca em sua casa e encontrou uma arma não registrada e cerca de 340 gramas de ouro. Mas ele foi solto no dia seguinte. O caso ainda está aberto enquanto ele aguarda julgamento. De acordo com o Ministério Público do Pará, se Heller for condenado por grilagem, os promotores pedirão que ele devolva as terras ao Estado.

Em setembro de 2024, uma decisão judicial deu prazo de trinta dias para que Heller devolvesse ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) os cerca de 1.900 hectares ocupados ilegalmente dentro do PDS Terra Nossa. Passado esse prazo, a Polícia Militar do Pará, a Polícia Federal e a Força Nacional de Segurança poderiam ser chamados para cumprir a determinação à força. A decisão ainda não havia sido cumprida até a publicação desta reportagem.

 

Fonte: Mongabay

 

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