Investigação
detalha estratégias de um dos maiores grileiros da Amazônia
Em 15 de fevereiro de 2021, o pecuarista brasileiro
Bruno Heller assinou um contrato em que vendia a fazenda Serra Formosa a um de
seus funcionários. Passados mais de dois anos, quando Heller foi alvo de uma
grande operação da Polícia Federal contra a grilagem, ficou claro que a suposta
venda foi o primeiro passo de um sofisticado plano para roubar e desmatar uma
grande extensão de terras públicas.
A data do contrato, 16 de março de 2006, era muito
anterior à data em que o documento fora efetivamente redigido. Mas havia outros
problemas. De acordo com investigadores, o contrato era uma obra de ficção. A
propriedade de 3 mil hectares nunca foi de fato vendida para o funcionário de
Heller, que era apenas um laranja – estratégia comum na Amazônia brasileira
para evitar punições por atividades criminosas. Heller sabia que suas próximas
ações não passariam despercebidas, e preparava o terreno para que as
autoridades colocassem a culpa em outra pessoa.
As investigações mostraram que a especialidade do
fazendeiro não é nem o gado, nem o plantio, mas sim a grilagem de terras no
sudoeste do Pará, às margens da BR-163 – um dos principais hotspots do
desmatamento na Amazônia, onde grandes extensões de floresta foram desmatadas
para dar lugar à pecuária bovina e às plantações de soja.
Lá, no município de Altamira, perto do distrito de
Castelo dos Sonhos, Heller e seus familiares registraram mais de 24 mil
hectares de terra em seus nomes, equivalente à área urbana da cidade de
Campinas, em São Paulo.
Autoridades concluíram que a maior parte dessas áreas
está em terras públicas não destinadas, ou seja, que pertencem aos governos
federal ou estaduais e ainda não foram transformadas em áreas protegidas, como
terras indígenas ou unidades de conservação. Devido à falta de proteção, essas
áreas atraem grileiros e respondem por cerca de 30% do desmatamento na
Amazônia.
No caso de Heller, a maior parte de suas propriedades
foi registrada sobre uma área federal chamada Gorotire, e outra parte sobre o
assentamento da reforma agrária PDS Terra Nossa. Áreas que deveriam pertencer a
todos os brasileiros, mas que foram ilegalmente transformadas em propriedade
privada de Heller.
Ione Nakamura, promotora agrária do Ministério Público
do Pará, esclarece que a propriedade privada no Brasil requer a devida
documentação que demonstre a transferência da terra do Estado ao indivíduo,
antes que este possa vendê-la a terceiros. Ela observa que as pessoas que
ocupam essas áreas não costumam ter esses documentos, o que significa que não
são donas das terras – embora tenham documentos provando que as compraram de
outro indivíduo. “Eles não são donos da terra, pois a terra é pública”,
esclarece. Nakamura acrescenta que encontrou muitos casos parecidos em seus dez
anos de trabalho no oeste do Pará.
Em e-mail à Mongabay, o advogado de Heller afirmou que
“o grupo familiar vem exercendo a propriedade legal, livre e pacífica da
propriedade rural da família” desde os anos 1970 e que todas as circunstâncias
estão sendo esclarecidas junto às autoridades.
Quando a Polícia Federal lançou a Operação Retomada em
agosto de 2023, Heller chegou às manchetes do noticiário como o “maior desmatador da Amazônia”. Ele não foi o primeiro a receber
esse título. Os fazendeiros Ezequiel Antônio Castanha e Antonio José Junqueira Vilela Filho também já foram apontados como
os maiores desmatadores da Amazônia.
“A competição é acirrada”, diz Girolamo Domenico
Treccani, professor de direito agroambiental da Universidade Federal do Pará
(UFPA).
Além de grilar áreas maiores do que alguns municípios,
Heller, Vilela e Castanha compartilham outra característica: o profissionalismo
com que conduzem seus negócios. O planejamento estratégico de Heller, descrito
em detalhes na investigação da Polícia Federal, está à altura da sagacidade de
muitos CEOs corporativos.
Algumas semanas depois que a venda falsa da fazenda foi
acordada, a filha e braço direito de Bruno Heller, Tatiana Heller, enviou uma
mensagem para a advogada Rafaele Dalmagro, de acordo com a polícia. “Vamos
mexer com um serviço aqui na fazenda e vai dar uns B.O. com o Ibama kkk”,
escreveu. “Daí a gente queria conversar com você para ver se tem algo a mais
que a gente possa fazer para não ficar tão ruim.”
Não se sabe qual foi o resultado da reunião de Tatiana
com Dalmagro; de acordo com o advogado da última, ela apenas “forneceu
assessoria jurídica e consultoria focadas na legislação ambiental e
administrativa”. Mas o trabalho na fazenda de Heller começou dez dias depois,
em 15 de março, quando homens equipados com motosserras começaram a derrubar
uma grande parte da floresta.
De acordo com a investigação, os trabalhadores foram
contratados por um homem conhecido como Mazinho, que cobrou pelo menos R$ 80
mil de Heller para coordenar o trabalho. Esses intermediários, conhecidos no
jargão local como “gatos”, são bastante conhecidos Amazônia. Na investigação
sobre Heller, os operadores de motosserras testemunharam que trabalhavam oito
horas por dia, sete dias por semana, no calor da floresta.
Quando agentes da Polícia Civil do Pará apareceram para
autuar o desmatamento ilegal dois meses mais tarde, os trabalhadores ainda
estavam lá – e a fiscalização já era aguardada pela família Heller. “Recebemos
as visitas que estávamos esperando”, escreveu Tatiana para Dalmagro à
época.
“Já imaginávamos que isso iria acontecer”, respondeu a
advogada, que a aconselhou a cumprir a ordem dos policiais de ir à delegacia no
dia seguinte: “Eu conheço esse pessoal que autuou vocês. Não há problema em
comparecer, mas eles vão exigir dinheiro”, alertou Dalmagro. A advogada disse à
Mongabay por e-mail que “seus serviços foram técnicos e nenhum crime foi
cometido.”
Em seu depoimento na delegacia de polícia, Heller disse
que a área não era dele, mas sim de Humberto Luiz Missassi, o funcionário que
havia “comprado” a terra três meses antes, de acordo com o falso contrato de
venda.
Segundo a Polícia Federal, Bruno Heller pagou R$ 8 mil
aos policiais que, em troca, se comprometeram a fazer um “relatório de boa”
sobre o desmatamento que flagraram. Depois do acordo, Dalmagro deu sinal verde
aos operadores de motosserra de Heller, dizendo que a família “poderia
continuar o serviço sem problema”.
Em meados de junho, 3.134 hectares de floresta, uma
área dez vezes maior que o Central Park de Nova York, haviam sido devastados.
· Assessoria técnica
Grileiros como Bruno Heller utilizam os serviços de
vários profissionais para além dos advogados, dos “gatos” e dos operadores de
motosserras que cortam as árvores na floresta. “É um tipo de crime organizado
que trabalha com divisão de tarefas”, diz a promotora Nakamura. “Não é para
amadores.”
Os principais sócios de Heller eram a família Dalmagro,
de Novo Progresso, um município a 150 km de Castelo dos Sonhos. Além de Rafaele
fornecer assessoria jurídica, sua família é dona de um escritório de engenharia
comandado pelo pai, Bianor Dalmagro, e pelo irmão dela, Julio César Dalmagro.
A empresa Guará Agrosserviços é especializada em
georreferenciamento de propriedades rurais, o que envolve traçar os limites de
fazendas por meio de suas coordenadas geográficas e transformar os dados em um
mapa virtual. “O esquema todo precisa desse braço técnico porque a grilagem
também acontece numa dimensão cartográfica”, diz Maurício Torres, professor da
UFPA que há 20 anos estuda a dinâmica da grilagem de terras no sudoeste do
Pará.
O georreferenciamento é exigido para cadastrar as
propriedades no Cadastro Ambiental Rural, conhecido como CAR. O sistema foi criado em 2012 pelo governo
federal para ajudar a monitorar o desmatamento, mas desde então foi subvertido
e transformado numa ferramenta da grilagem.
Como o CAR é autodeclaratório, qualquer um pode
registrar uma propriedade sem ter de provar que é o verdadeiro dono dela. O
documento fornece um verniz de legalidade a áreas públicas tomadas ilegalmente.
É comum, por exemplo, encontrar anúncios de áreas griladas na Amazônia com os dizeres “CAR e GEO”, o que significa que estão
cadastradas no sistema do CAR e foram georreferenciadas por um engenheiro como
Bianor Dalmagro.
“O problema é que, como o CAR é autodeclaratório, o
sistema permitiu muita falcatrua”, diz o professor de legislação agroambiental
Treccani, para quem o problema não é o cadastro em si, mas sim o mau uso dele.
“É por isso que o CAR é agora considerado um dos maiores instrumentos da
grilagem.”
Em maio de 2022, Bianor Dalmagro registrou 530 CARs no sudoeste do Pará, 90% dos
quais se sobrepunham a terras públicas, inclusive áreas protegidas. Pelo menos
14 desses registros estavam no nome de membros da família Heller; 12 deles são
de propriedades contíguas que, juntas, formam uma área enorme, de acordo com as
autoridades.
“[Bruno Heller] parece contar com os numerosos membros
do seu grupo familiar, pessoas que nem sequer residem no estado do Pará, mas
atuam como ‘testas de ferro’ ou laranjas na
titularidade formal dos imóveis rurais”, afirmou a Polícia Federal.
O escritório da Guará foi alvo da Polícia Federal pela primeira
vez em 2021, numa investigação sobre uma
organização criminosa acusada de desmatar 15 mil hectares dentro da Floresta
Nacional Jamanxim. De acordo com os investigadores, os Dalmagro eram
encarregados de registrar propriedades ilegais para o grupo no sistema do CAR,
várias delas no nome de laranjas.
Quando a Operação Retomada foi lançada dois anos
depois, o escritório dos Dalmagro foi alvo de nova busca da polícia, desta vez
por supostamente apoiar Heller na grilagem de terras.
Em e-mail enviado à Mongabay, o advogado de Bianor e
Julio declarou que a Guará Agrosserviços forneceu apenas serviços técnicos, não
inventou nenhuma informação e não pode ser responsabilizada pelas ações de seus
clientes.)
· O tapetão
Os serviços dos Dalmagro não se limitaram ao
georreferenciamento. Dois meses antes dos Heller começarem a desmatar a fazenda
Serra Formosa, a Guará Agrosserviços enviou a Bruno um mapa que mostrava a
divisão da área em 11 lotes.
O mapa orientaria o trabalho do empreiteiro contratado
para coordenar o desmatamento na área. “O cara que está querendo pegar o
serviço lá ele quer dividir porque ele já quer olhar como é o mato, para ter
uma noção mais ou menos [do trabalho]”, disse Bruno Heller a um dos
funcionários da Guará por mensagem de texto.
Uma vez que a derrubada começou, o mesmo funcionário da
Guará passou a enviar imagens de satélite da área a Heller para que ele pudesse
acompanhar o trabalho quase que em tempo real. “Parece que os caras
desaceleraram… Achei que estivesse perto de acabar, mas ainda falta um tanto,
não é?”, disse um funcionário da Guará ao fazendeiro no começo de maio de 2021.
De acordo com a Polícia Federal, a equipe de Dalmagro estava “ciente, foi
conivente e até prestou assistência ao desmatamento realizado na área
investigada.”
Uma vez que as árvores foram derrubadas, Heller começou
a planejar o próximo passo: queimar os arbustos e troncos remanescentes. Sua
principal preocupação, mais uma vez, era não ser notado pelos agentes
ambientais.
Heller aconselhou Mazinho, o empreiteiro contratado, a
atear fogo na área só depois que os fazendeiros vizinhos começassem a queimar
seus pastos, para distrair as autoridades. “Tem que ser na mesma hora em que o
pessoal vai colocar [fogo] também pra confundir o povo aí né?”, disse ele.
Seis meses depois de realizar a venda falsa a seu
funcionário, Heller seguiu a cartilha dos desmatadores e comprou sementes de
gramíneas de pastagem para espalhar sobre a terra queimada; quase 90% das áreas
desmatadas na Amazônia brasileira são transformadas em pasto, de acordo com
pesquisa do instituto Imazon. No caso de
Heller, o gado criado nas áreas desmatadas ilegalmente foi parar nas prateleiras dos
supermercados Carrefour, de acordo com a Repórter Brasil.
“Nasceu bem o capim, parece que tá bem formado”, disse
Heller meses mais tarde. “Tá só o tapetão, tá tudo beleza.”
· A sagrada instituição da grilagem
Grileiros profissionais como Bruno Heller vicejam na
Amazônia. Menos de um ano após a Operação Retomada, por exemplo, outra operação na mesma região do Pará teve como
alvo uma organização criminosa suspeita de destruir 15 mil hectares de
floresta.
“Há muitos Bruno Hellers atuando em toda a Amazônia”,
disse Torres, professor da UFPA. Roubar terras públicas é visto como algo
normal e até positivo em algumas partes da região, acrescenta. “Há uma
aceitação da grilagem como algo heróico, como um vetor do desenvolvimento.”
A história da colonização da Amazônia explica parte
dessa cultura. Durante a ditadura militar (1964-1985), pessoas de outras partes do país
foram encorajadas a migrar para a floresta para ocupar vastas áreas de terras
supostamente desocupadas, ignorando completamente as comunidades indígenas que
viviam ali há milhares de anos.
“As pessoas têm a percepção de que há muita terra sem
dono na Amazônia, e isso cria a impressão equivocada de que elas podem chegar
lá e se apropriar dessas áreas”, diz Nakamura.
De acordo com a promotora, a maioria dos grileiros nem
mesmo tem a intenção de trabalhar na terra, mas apenas de lucrar com a
transferência da área para outra pessoa. “É a indústria da grilagem”, diz
Nakamura, explicando que a principal forma de agregar valor à terra é
desmatando a floresta. “A terra é valorizada no mercado assim que é desmatada,
numa lógica totalmente contrária à da justiça climática.”
O pecuarista Bruno
Heller, alvo de operação da Polícia Federal em agosto de 2023 e considerado um
dos “maiores desmatadores da Amazônia”, em uma de suas poucas fotografias
conhecidas. Imagem cedida pela Polícia Federal.
O desmatamento também é usado para provar que a terra
vinha sendo ocupada de forma produtiva há alguns anos, uma exigência legal para
aqueles que querem sua escritura. A lei brasileira atualmente permite a regularização de áreas
ilegais ocupadas até 2011, mas deputados da bancada ruralista estão
constantemente tentando afrouxar a lei.
Mesmo quando os grileiros são pegos, como no caso de
Heller, é raro que tenham de devolver as áreas que roubaram do Estado. “A
pessoa é presa, multada, mas ninguém retoma a terra. O crime compensou, e em
pouco tempo ele vai grilar outra área”, diz Torres. “Ninguém vai questionar a
instituição sagrada da grilagem.”
Nakamura diz que o crime é incentivado por uma
combinação de conivência política e desmantelamento dos órgãos públicos que
deveriam atuar para regenerar estas áreas. As penas para esses crimes são muito
leves, acrescenta ela. “Seria interessante se o crime fosse tratado como o
tráfico de drogas, esses crimes extremamente graves para a sociedade e que
estão intimamente associados ao crime organizado.”
Heller foi preso em agosto de 2023, no dia em que a
polícia fez uma busca em sua casa e encontrou uma arma não registrada e cerca
de 340 gramas de ouro. Mas ele foi solto no dia seguinte. O caso ainda está
aberto enquanto ele aguarda julgamento. De acordo com o Ministério Público do
Pará, se Heller for condenado por grilagem, os promotores pedirão que ele
devolva as terras ao Estado.
Em setembro de 2024, uma decisão judicial deu prazo de
trinta dias para
que Heller devolvesse ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária) os cerca de 1.900 hectares ocupados ilegalmente dentro do PDS Terra
Nossa. Passado esse prazo, a Polícia Militar do Pará, a Polícia Federal e a
Força Nacional de Segurança poderiam ser chamados para cumprir a determinação à
força. A decisão ainda não havia sido cumprida até a publicação desta
reportagem.
Fonte: Mongabay
Nenhum comentário:
Postar um comentário