A favela está no “mapa” oficial do Estado. E agora?
Em setembro de 2023, foi realizado, em Brasília,
o Encontro Nacional de
Produção, Análise e Disseminação de Informações sobre as Favelas e Comunidades
Urbanas no Brasil,
pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). O encontro reuniu pesquisadores(as),
lideranças de favelas, organizações sociais e diversas referências na área. Um
ano após a conferência, no final de 2024, foi anunciado pelo IBGE o
retorno do uso dos termos “favelas e comunidades urbanas
brasileiras” para divulgação do Censo 2022 – inclusive, tema já discutido por nós. Este momento foi
considerado um marco para as favelas e os(as) favelados(as) de todo o país.
Afinal, por mais de 50 anos, esses territórios e suas populações foram
significados por diversas nomenclaturas que estigmatizavam e criminalizavam tal
espaço de moradia, sendo uma delas a expressão “aglomerados subnormais”,
adotada pelo Instituto desde 1991, além de tantas outras responsáveis por
reproduzir ao longo das décadas o seu estigma, colocando a favela no imaginário
de um problema social.
Termos, nomenclaturas e conceitos não são apenas formas
de descrever algo a ser apresentado em um documento estático no tempo. Ao
descrevermos algo para o mundo, contribuímos também para a sua própria
constituição e, com isso, a constituição de certa visão de mundo sobre aquilo
assim descrito. A palavra e o ato de nomear produzem a própria realidade sobre
aquilo que está sendo nomeado – seja uma coisa, uma pessoa ou um território. No
caso da definição de termos, nomenclaturas e conceitos oficiais, pretende-se
constituir um consenso sobre o seu significado, carregando, assim, uma certa
representação do que se espera que esteja de acordo com a norma então
estabelecida.
Ao descrever as favelas e periferias urbanas como
“aglomerados subnormais”, por décadas, constituiu-se esses territórios pela sua
precariedade, por um lado, e pelo seu desvio, por outro, como algo “subnormal”,
irregular, informal e, potencialmente (no que vem a ser a sua forma de
ocupação) ilegal. Ao mesmo tempo, seus moradores(as) passaram a ser também
constituídos pelo mesmo prisma da definição de seu território, demarcando
estereótipos e estigmas criminalizantes contra os corpos favelados. Nessa
perspectiva, durante décadas, o olhar das políticas públicas e as
representações sociais sobre as favelas e os(as) favelados(as) marcaram seus
corpos e territórios pela gramática da violência, em contraposição à expansão
dos direitos de cidadania. Neste artigo, pretendemos ressignificar essa
gramática a partir dos(as) próprios(as) favelados(as) e pelo reconhecimento de
suas lutas – materiais e simbólicas – por novas definições e novas
epistemologias.
·
O termo “favela” retorna aos
dados oficiais
Com a divulgação do Censo de 2022, em novembro de 2024,
o IBGE realizou um evento, na Nova Maré, no Rio de Janeiro (RJ), denominado “Censo Demográfico 2022:
Favelas e Comunidades Urbanas: Resultados do Universo”. Lideranças,
moradores(as) de favelas e representantes da sociedade civil estiveram
presentes – inclusive, pesquisadores(as) do Dicionário de Favelas
Marielle Franco.
O novo Censo traz informações sobre o número de favelas e comunidades urbanas,
a população residente nestas áreas, além do número de domicílios. Os dados
foram, então, disponibilizados para os recortes geográficos Brasil, Grande
Região, Unidade da Federação, Concentração Urbana, Município e Favela e
Comunidade Urbana, abrindo-se um debate sobre suas formas de representação e
apropriação pelas próprias favelas e periferias urbanas. No evento, nossa
pesquisadora Flávia Cândido, também representante do Plano Integrado de
Saúde Integral nas Favelas do Rio de Janeiro, ressaltou como os dados entregues
pelo IBGE “dão notoriedade às pessoas que
vivem na favela e chamam atenção das autoridades para a criação de políticas
que tornem a vida da população melhor”.
Não por acaso os movimentos de favelas, historicamente,
lutam para que não sejam reafirmados e reproduzidos termos que estigmatizem e
criminalizem as favelas e os(as) favelados(as). Tais conceitos, vindos de um
Instituto Brasileiro tão referenciado, ajudaram a estereotipar esses
territórios que nasceram há mais de 120 anos no Rio de Janeiro e que, hoje,
estão espalhados por todo o país. Essa história pode ser também acompanhada a
partir do verbete “De Aglomerados
Subnormais para Favelas e Comunidades Urbanas”. No conceito que significou as favelas
por tantos anos como um problema, dizia-se que: “Aglomerados
subnormais são formas de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia
(públicos ou privados) para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral,
caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços
públicos essenciais e a localização em áreas que apresentam restrições à
ocupação” (IBGE, 2010).
O retorno do termo “favela” no Censo é, portanto, fruto
de um processo político que envolveu movimentos sociais e lideranças
comunitárias, focados na luta pelo reconhecimento e pela visibilidade dessas
localidades. Nos últimos anos, lideranças comunitárias e moradores(as) têm
trabalhado ativamente para ressignificar o espaço da favela como um símbolo de
resistência, potência e cultura, buscando romper com os estigmas históricos.
Essa mudança reflete um movimento mais amplo de valorização da favela como um
território de direitos, e não apenas como espaço de carências e exclusões.
Se pararmos para analisar matérias de jornais
comerciais e popularescos, assim como pesquisas e falas públicas de autoridades
governamentais, muitas dessas falas, ao se referirem às favelas, as colocam em
um lugar apenas de carência, desordem, precariedade, desigualdades, ilegalidade
e tantos outras nomeações que inferiorizam o espaço e o seu povo. Por força
desse discurso, toda uma sociedade passou as últimas décadas reproduzindo essas
afirmações e não foi diferente, inclusive, dentro das próprias favelas. Os(as)
próprios(as) favelados(as) também têm preconceito das favelas justamente em
razão dessa reprodução – parte do que os processos de rotulação produzem
ao reificar preconceitos,
estereótipos e violências em determinados corpos e/ou territórios. Por isso é
tão importante o reconhecimento de movimentos favelados que fazem,
historicamente, um trabalho dentro das favelas mostrando que elas têm problemas
sociais e desigualdade, mas que esta não é uma culpa dos moradores(as), e sim
dos que governam.
Hoje, com a retomada do termo “favela”, esperamos que
esta não seja apenas uma nomenclatura a ser utilizada por gestores e
acadêmicos, mas sim que este seja o início de um movimento maior capaz de
incidir e reorientar a auto estima de quem mora nesses territórios vulnerabilizados,
marginalizados e, por esta razão, criminalizados – como representação de
uma reivindicação identitária não individualizada, mas de lutas
sociais, políticas e ideológicas. O conceito atual não ignora os problemas
sociais internos, mas identifica este território a partir de um outro tom,
potencializando o seu povo e sua história comunitária e coletiva. Segue aqui
sua definição: “Favelas e comunidades
urbanas são territórios populares originados das diversas estratégias
utilizadas pela população para atender, geralmente de forma autônoma e
coletiva, às suas necessidades de moradia, diante da insuficiência e
inadequação das políticas públicas e investimentos privados dirigidos à
garantia do direito à cidade. Constituem identidade e representação comunitária
e se manifestam em diferentes formas e nomenclaturas. Retratam a precariedade
de infraestrutura, serviços urbanos, equipamentos coletivos e proteção
ambiental, reproduzindo condições de vulnerabilidade que se agravam com a
insegurança jurídica da posse, que também compromete o direito à moradia e a
proteção legal contra despejos forçados e remoções” (IBGE, 2024).
Como aponta Flávia Cândido, moradora da Maré e pesquisadora
do Dicionário de Favelas Marielle Franco, no verbete “O termo “favela” de
volta ao IBGE”, ao recuperar o
nome que as próprias comunidades utilizam para se referir a seus territórios, o
IBGE atende a uma demanda histórica dos movimentos sociais e populares, que há
décadas lutam para que essas áreas sejam reconhecidas por aquilo que realmente
são: territórios de resistência, cultura e luta. Ao adotar o termo “favela”,
abre-se um caminho para uma narrativa mais autêntica, que valoriza as histórias
e experiências de seus moradores, em vez de relegá-los ao status de
“excepcionalidade” e “anormalidade”.
Além disso, a ressignificação do termo está
intrinsecamente ligada ao processo de
letramento dessas comunidades. O letramento, nesse contexto, refere-se
ao empoderamento de seus moradores, que, ao reivindicar o uso de “favela” para
definir seu espaço, reescrevem as narrativas dominantes e reafirmam sua própria
voz e identidade. Esse ato de autodefinição é um exemplo poderoso de como a
linguagem pode ser utilizada como uma ferramenta de resistência e afirmação,
desafiando estigmas históricos e propondo novas formas de pensar esses espaços
e seus moradores(as).
A mudança na nomenclatura mostra a importância da luta
dos movimentos de favelas, em um trabalho árduo de anos de denúncia e de
incidência política para que houvesse a alteração da forma de classificar os
territórios – e seus moradores(as). Além disso, marca a importância desse
público estar presente na forma como ele realmente é, sem que haja o peso da
marginalização e do estereótipo que esses territórios historicamente carregam.
Ou seja, foi uma importante vitória para os movimentos de favelas e o Dicionário de Favelas
Marielle Franco esteve
presente durante os meses de reuniões, inclusive, sendo representado pela nossa
coordenadora Sonia Fleury no Grupo Consultivo de todo o processo que culminou
com o encontro realizado em Brasília, em 2023. A atuação do Dicionário de
Favelas pode ser considerada, hoje, uma referência no que se refere às
reescrituras do que é “ser favelado”. Acreditamos no poder transformador das
palavras – suas linguagens, narrativas e saberes localizados – e na importância
de dar voz às histórias silenciadas e esquecidas através de corpos negros
favelados e periféricos.
·
Geração de dados e novos
conceitos a partir das favelas
Nos últimos anos, foram inúmeras também as
organizações, coletivos e movimentos de favelas que passaram a coletar,
analisar e trabalhar com a geração de dados e a produção de conhecimentos.
Inclusive, já tivemos a
oportunidade de tratá-las em outro artigo aqui publicado – desta vez,
pretendemos dar destaque àquelas iniciativas produtoras de dados visando a
ressignificação de seus territórios e identidades. O objetivo destes grupos é,
muitas vezes, confrontar os dados anteriormente coletados, divulgados e
narrados, até então, pelo próprio Estado, como os próprios dados do IBGE. Em
termos de coleta e disseminação, temos alguns exemplos. O projeto “Geração cidadã de
dados: cartografia dos coletivos de comunicação comunitária para promoção da
saúde”,
realizado em 2024 por pesquisadores(as) da Fiocruz em parceria com
comunicadores(as) comunitários(as) da Frente de Mobilização
da Maré,
do Instituto Raízes em
Movimento,
do jornal Fala Manguinhos, do Instituto Decodifica e do Dicionário de Favelas
Marielle Franco, teve como objetivo mapear as ações comunicacionais de
coletivos populares e avaliar o possível impacto destas iniciativas na promoção
da saúde. Os resultados já podem ser acessados na plataforma do Dicionário de
Favelas Marielle Franco.
Um dos coletivos que vem também ganhando espaço na
construção dessas contranarrativas é o Data_labe, laboratório de
narrativas e dados localizado no Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do
Rio de Janeiro. O coletivo foi criado com o objetivo de promover a
democratização do conhecimento por meio da geração, análise e divulgação de
dados com foco em raça, gênero e território. Além disso, iniciativas como
o Atlas das Periferias, desenvolvido
pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) e publicado em 2021, analisam aspectos raciais e
de infraestrutura nas favelas e periferias urbanas, oferecendo uma visão
aprofundada das desigualdades urbanas.
Outro exemplo de produção coletiva de dados é a Cartografia Decolonial
das Juventudes Negras e Periféricas da Baixada Fluminense, publicada em
2019, pelo Fórum Grita Baixada, movimento que tem
como missão a garantia da vida de moradores(as) da Baixada Fluminense do Rio de
Janeiro, a partir do fomento e incidência por uma política pública de segurança
pública pautada nos direitos humanos e de enfrentamento ao racismo. A
Cartografia Decolonial pode ser entendida como a vertente cartográfica que tem
como característica marcante a referência sociocultural como ponto de partida
e, logo o poder dos sujeitos envolvidos é central nessa construção. Tem como
pressupostos, devido aos estudos decoloniais, o rompimento das amarras e
epistemologias ocidentais da cartografia tradicional hegemônica, pareando com o
discurso da Cartografia Social. Nesse sentido, tem como objetivo também
reivindicar sua própria epistemologia, tendo como prioridade a significação
cartográfica de quem vive nos territórios oprimidos, fornecendo subsídios que,
por exemplo, darão visibilidade/representatividade e “voz” a povos e comunidades
tradicionais. O que o movimento busca é apresentar uma metodologia de
construção de uma “nova” epistemologia periférica, onde a cartografia é
utilizada como um método participativo de construção de novas narrativas e
símbolos.
No Morro da Providência, no Centro do Rio
de Janeiro, favela conhecida por ser a primeira favela do país, assim como na
Maré, no Alemão e em tantas outras favelas do Rio e para além, têm-se
produzido os Censos Populares através de um
trabalho coletivo e comunitário de auto mapeamento e georreferenciamento. Este
é um movimento que não começou hoje e, com certeza, esse enfrentamento dos
dados e das formas de quantificação e representação foi capaz de influenciar a
mudança de nomenclatura sobre a significação das favelas a nível governamental.
Por exemplo, no relatório que apresenta atividades e resultados da iniciativa
intitulada “Censo Popular, Auto
Mapeamento e Cartografia Social do Morro da Providência – SOS Providência &
Projeto Morador Monitor” é possível observar o rigor metodológico para a
realização da pesquisa, considerando o papel fundamental dos moradores(as) em
seu desenvolvimento. Esta foi uma iniciativa realizada pelo Comitê SOS
Providência, através do projeto Morador Monitor, com assessoria técnica do
Núcleo de Estudos em Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais, do
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ) e aportes financeiros da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) e da Ação da Cidadania.
O Censo Popular da Providência promoveu, junto à coleta
de dados, uma troca de experiências que ultrapassa o seu interrogatório
impessoal característico, se configurando numa relação de reconhecimento mútuo
entre as partes. Além do levantamento, o SOS Providência realiza diversas
outras ações de suporte social aos mais desfavorecidos do território, como a
distribuição de alimentos, gás de cozinha, itens de higiene e outros – ações
fundamentais no quadro de crise social e
sanitária da COVID-19,
e que permanecem importantes no cenário atual. Estas ações, com certeza, serão
qualificadas pelo diagnóstico que ora se apresenta. Coerente com a máxima
praticada no Morro, do “nós por nós”, o recenseamento configura-se em um
importante instrumento de aferição, expressando em números os problemas
socioespaciais identificados, mas também contribuindo para a formulação de
estratégias futuras, apontando para a construção de uma epistemologia que
considere o olhar do morador do território e uma definição de agenda onde
estejam contempladas as suas disputas pela dignidade e fortalecimento de seu
papel como agente definidor das suas reais demandas, e, para considerações na
construção e definição de políticas públicas.
A favela da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, já
no início dos anos 2000, iniciou a produção do seu próprio Censo, sendo
conhecido, hoje, como Censo Maré e, assim, vem servindo como referência para
outras iniciativas em diferentes territórios – como a própria iniciativa na
Providência, descrita acima. O primeiro Censo Maré foi uma iniciativa do Centro de Estudos e
Ações Solidárias da Maré (Ceasm), localizado no Morro do Timbau. Depois,
passou a ser realizado pela Redes da Maré. As três edições
do Censo tiveram o apoio das 16 associações de moradores(as) locais e outras
organizações sociais importantes de outros espaços da cidade do Rio de Janeiro.
O Censo Maré é um marco. Na terceira edição, a realização do Censo Maré contou
com a capacitação de moradores(as) da Maré para o trabalho, que envolveu mais
de 200 pessoas, contando com a parceria das 16 associações de moradores(as) da
região. A equipe multidisciplinar foi composta por geógrafos, economistas,
estatístico, cientista social, assistente social, técnico em geoprocessamento e
técnico em cartografia. O objetivo desta produção de dados é transformar as
condições de vida na Maré e materializar projetos que contribuam com seu
propósito maior. Para tanto, a Redes da Maré definiu como prioridade atuar a partir
dos seguintes eixos de trabalho: (i) Educação, (ii) Arte e Cultura, (iii)
Memórias e Identidades, (iv) Desenvolvimento Territorial e (v) Segurança
Pública e Acesso à Justiça.
A Maré é uma favela que também por décadas vem
trabalhando conceitos para tirar do imaginário de seu povo a ideia de que
favela é um território “problema” – ou um território potencialmente
problemático. Por exemplo, o Jornal O Cidadão, mídia comunitária
surgida nos anos de 1999, fruto da parceria do Centro de Estudos e Ações
Solidárias da Maré com o Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária
(Lecc), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), durante os anos 2000,
iniciou um conceito na Maré para trabalhar a auto estima da favela,
confrontando a ideia de que a favela é um “problema”. O termo “mareense” vem
sendo trabalhado há mais de 20 anos pelas diversas equipes que passaram por
esse jornal comunitário. Inicialmente, muitos(as) pesquisadores(as)
questionaram a relevância dessa invenção de uma identidade. Mas houve um
enfrentamento às críticas e os(as) comunicadores(as) passaram a reproduzir o
termo e a debater essa identidade em todas as matérias, debates públicos, além
de discussões nas assembleias populares de pauta do próprio jornal. Hoje, é
perceptível que os moradores da Maré utilizam com orgulho essa nomenclatura,
nos mais variados movimentos sociais da favela, referenciando sempre os nomes
Maré e Mareense.
De forma mais abrangente, um debate atual que tem se
popularizado entre alguns movimentos e grupos de favelas é o conceito de Geração Cidadã de Dados
(GCD).
Este termo está relacionado à participação da sociedade civil na retratação,
análise e avaliação de assuntos de interesse geral, partindo do princípio da
utilização dos dados para identificar problemas ou potencialidades sociais. No
manifesto da Rede Geração Cidadã de Dados (Rede GCD), espaço de mobilização
constituído por diferentes organizações de favela, entende-se por indispensável
a participação e colaboração da sociedade civil por completo nesse processo,
desde a coleta até a distribuição dos dados. Apesar da diversidade entre as
organizações e na maneira de implementação da GCD, o manifesto apresenta alguns
pressupostos desejáveis, como: a) o protagonismo de periferias e populações
sub-representadas no debate público e científico; b) ênfase nos marcadores de
classe, raça e gênero; c) promoção e uso de softwares livres, ferramentas e
tecnologias acessíveis, e construção de bases de dados abertas e de fácil
leitura; d) divulgação ampla e segura das metodologias e resultados; e)
linguagens e narrativas acessíveis; f) intercâmbio de metodologias;
Ou seja, a geração de dados das/nas favelas também tem
ganhado outros debates e ajudado a pautar, inclusive, as lutas nos espaços do
poder público. Exemplo disso é a ADPF 635, a ADPF das
Favelas,
que pauta a garantia de direitos de moradores(as) e a ampliação do controle
social, político e jurídico sobre as forças de segurança do Estado, denunciando
a alta letalidade de suas polícias. Inúmeros movimentos de favelas que
debatem segurança pública no Rio de
Janeiro têm analisado dados divulgados pelo próprio governo e enfrentado o
debate sobre os efeitos das ditas operações policiais no cotidiano e na
segurança dos próprios moradores(as) das favelas. Com isso, apontam para os
gastos onerosos de orçamento público, o número de escolas e postos de saúde
fechados durante as operações policiais realizadas dentro das favelas e a
quantidade de civis mortos durante tais operações. Ou seja, para rebater os
discursos que alimentam as políticas de guerra (e de morte), movimentos de favelas
têm produzido uma série de outros dados capazes de denunciar as violações das
políticas de segurança pública, em especial, no Rio de Janeiro. Se a favela é
cidade, ela não deve ser tratada a partir de uma política de segurança
repressiva e violenta, mas sim por um conjunto de políticas sociais que
garantam (e expandam) os direitos humanos a toda sua população.
O processo de participação dos movimentos populares na
ADPF 635 possibilitou, por exemplo, a criação do Fórum Popular de
Segurança Pública do Rio de Janeiro (FPOPSEG), espaço de mobilização que articula
movimentos sociais de favelas, familiares de vítimas de violência de Estado,
organizações da sociedade civil, universidades, ativistas, entre outros
sujeitos coletivos, como IDMJRacial, IDPN, Rede de Comunidades e Movimento
contra a Violência, Raízes em Movimento, Frente Estadual pelo Desencarceramento
RJ, Iser, Fase RJ, Justiça Global, Observatório de Favelas, Najup, Mídia 1508,
Geni/UFF, PPCis/UERJ, Iri/PUC, Educafro, Fórum Social de Manguinhos, Casa
Fluminense, Redes da Maré, Blogueiras Negras, Criola, Fala Akari, Movimentos,
Fogo Cruzado, Movimenta Caxias, Coletivo Papo Reto, MST e ativistas de direitos
humanos. Nesse sentido, o FPOPSEG está dispostos a fazer com que o conhecimento
dos territórios negros de favelas e periferias sejam protagonistas na
construção de um Estado que assegure a vida e os direitos da população que
convive diariamente com a violência policial, e, para isso, atua a partir de
três eixos de trabalho: a) mobilização/formação; b) incidência política; c)
produção de conhecimento.
Importante ressaltar que o objetivo de gerar dados por
conta própria abrange diferentes campos de atuação. Podemos observar
organizações que atuam de forma mais ampla na temática das mudanças
climáticas e do racismo ambiental, outras atuam no campo da segurança pública
e da violência, além de grupos que possuem foco em outros temas como saúde,
habitação, infraestrutura etc. Ainda assim, constantemente, tais organizações
relatam que precisam legitimar seu espaço, visto que os conhecimentos e os
dados produzidos por eles não são legitimados e não alcançam o mesmo
reconhecimento que universidades ou órgãos do Estado.
Sem dúvida, a ampliação de um debate que reconheça e
valorize as produções e as gerações de dados organizados e narrados pelas
próprias favelas vêm fazendo a diferença e, dessa forma, têm colocado a favela
numa posição diferente – a partir de sua própria representação. A atuação dos
movimentos de favelas e a realização de diferentes iniciativas, sob diferentes
metodologias (e novas epistemologias), vem fortalecendo o discurso de que a
favela não deve se resumir em terminologias que demarcam o território no lugar
de um “problema”, e, sim, que nela existem diferentes questões que merecem
destaque, assim como a questão racial, de gênero, de escolaridade, saneamento
básico, além das questões como saúde, educação, segurança pública e outras
temáticas de direitos básicos. As desigualdades existem, sob sua forma
estrutural. Mas a superação dessas desigualdades pode também estar no
reconhecimento de demandas e iniciativas locais. A favela não é problema, e,
sim, solução.
·
Muda-se a nomenclatura, mas
e as garantias de direitos dos(as) favelados(as)?
Por isso, é preciso que as favelas também apontem a
direção. Um fuzil de 28 mil reais usado pelas forças armadas de segurança, por
exemplo, é o suficiente para pagar 36.842 merendas escolares no estado do Rio
de Janeiro; um blindado lançador de água de R$4 milhões pagaria o salário de
890 professores; um caveirão de R$652 mil é o equivalente ao valor de 2
ambulâncias. Esse e outros dados referentes ao Projeto de Lei Orçamentária
Anual (PLOA) para 2025 foram divulgados pela Iniciativa Direito à
Memória e Justiça Racial em sua Campanha “Desinveste Já!”, cujo objeto é
trazer o debate do desinvestimento e maior controle das polícias, incidindo
política e diretamente nesses temas. Quando observamos a composição do
orçamento em outros setores para o ano no estado carioca, observamos que a
Segurança Pública representa mais investimento do que a soma das pastas de
Habitação (R$393 milhões), Trabalho (R$71 milhões), Assistência Social (R$1,1
bilhão) e Cultura (R$418 milhões).
Ainda segundo o dossiê apresentado pelo IDMJRacial,
essa ampliação orçamentária vem acontecendo em todo o Brasil. No Espírito
Santo, a pasta da segurança pública é a terceira maior com previsão de R$2,6
bilhões para este ano; em São Paulo, temos a segurança pública com mais de R$20
bilhões – sendo a segunda pasta que mais recebeu aumento orçamentário de 2024
para 2025 (+R$1,9 bilhão); e no Paraná, onde em 2024 foram investidos R$5,9
bilhões em 2024 e a previsão para 2025 é de R$6,4 bilhões.
A partir dessa análise, é importante trazer para o
centro do debate a seguinte reflexão: enquanto o termo “favela” volta a ser
oficialmente utilizado pelo IBGE, uma conquista que merece ser celebrada
coletivamente por todos que compõem essa luta, os direitos básicos desse povo
serão garantidos? Quando falamos de representatividade e resistência, é
necessário falar também sobre a necessidade de que o orçamento público dos
estados seja direcionado para uma política que promova a vida e o bem estar
social nas favelas e periferias, não somente e de forma desproporcional para a
segurança pública, que, atuando como tem feito até aqui, não faz mais do que
uma política de medo, insegurança e morte.
Para fazer valer plenamente as existências desses
grupos diante de tantas produções de dados sobre favelas e periferias, e especialmente
a mudança de nomenclatura usada pelo IBGE, é necessário que o debate sobre
Segurança Pública esteja sempre compondo as discussões, já que os temas são
diretamente complementares. Como analisado
anteriormente a partir das políticas de segurança do estado do Rio de Janeiro, a realidade da
violência urbana no Brasil hoje perpassa atores antigos, mas que se atualizam
sob novas práticas. Sendo assim, é notável que não se trata da necessidade de
um maior investimento numa área de atuação enquanto outras seguem sucateadas,
entendendo que a real mudança será alcançada quando direitos básicos forem
plenamente garantidos ao mesmo passo em que houver vida digna para pessoas
pretas, faveladas e periféricas.
Fonte: Por Lucas Scatolini, em Outras
Palavras
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