sábado, 22 de fevereiro de 2025

Nicola Lacetera: Como aplacar a onda fascista. Poucos a viram chegar, mas agora é hora de reagir

Sem desejos ou inspiração para pensar ou simplesmente imaginar algo novo, melhor e possível - uma sociedade mais igualitária, participativa, inclusiva e pacífica - corre-se o risco de nem mesmo sermos capazes de pensar na possibilidade do pior, e perceber seus sinais.

Um apresentador de TV que procura uma médium para falar com as almas de seus cachorros mortos, prega a erradicação do Estado da economia e dos serviços sociais, define a educação pública como doutrinação, faz campanha empunhando uma motosserra e frequentemente aparece nos debates na TV em estado de embriaguez. Um construtor que ergue arranha-céus com seu nome em letras de 10 metros (muito além dos modestos baixos-relevos com a inscrição DUX que ainda podem ser vistos em alguns monumentos italianos), conclamado racista e misógino há quarenta anos, sonegador de impostos e amigo de ditadores. Uma política que, já em 2008, jurou pela Constituição sem negar seu passado (neo)fascista, passa os últimos dez anos falando sobre substituição étnica, conspirações judaicas internacionais e define Vladimir Putin como um verdadeiro patriota e pessoa confiável.

Um empresário que evitou a falência por vinte anos, concentrando a atenção em sua imagem de “visionário” e “benfeitor” e desfrutando de repetidas ajudas públicas e recuperações, que cresceu na cultura do apartheid sul-africano e conhecido há anos por suas explosões misóginas, racistas e homofóbicas, sua filosofia transhumanista (leia-se: supremacista e eugenista) e sua aversão às regras da democracia.

De avaliações a posteriori, o inferno está cheio. Mas, mesmo assim, vamos tentar voltar para alguns anos atrás.

Tudo isso estava, aliás, na nossa frente. Mas onde estávamos nós (cidadãos, eleitores, opinião pública)? Como é possível não ter percebido essa onda chegar? Há, de fato, aqueles que, recebendo pouca atenção, tentaram soar o alarme. Sem dons proféticos, mas talvez lembrando a lição de Pasolini do “Eu sei”. O que não era uma presunção, mas um apelo para “seguir tudo o que acontece, [...] conhecer tudo o que se escreve a respeito, [...] imaginar tudo o que não se sabe ou que é silenciado; [coordenar] até mesmo fatos distantes, [juntar] as peças desorganizadas e fragmentárias num quadro coerente, [restabelecer] a lógica”.

Há, é claro, aqueles que, agora como naquela época, apreciavam e apoiavam exatamente aqueles traços reacionários e subversivos e o projeto de suplantar a democracia liberal. E apoiavam essas pessoas e seus acólitos exatamente pelo que eram.

Por fim, há um mundo variegado e heterogêneo, mas talvez majoritário e de qualquer forma decisivo em termos de números e poder na sociedade.

As pessoas que acreditam que o mundo em que vivemos, suas regras econômicas e sociais, continuam sendo as “menos piores” e, como tais, são resilientes aos golpes, porque não há alternativas exceto pequenos ajustes no contorno. Em suma, que ficaríamos dentro dos limites do modelo de capitalismo democrático ocidental, independentemente de quem estivesse no poder.

Mas sem desejos nem inspiração para pensar ou simplesmente imaginar algo novo, melhor e possível - uma sociedade mais igualitária, participativa, inclusiva e pacífica - corre-se o risco de não conseguir sequer pensar na possibilidade do pior e perceber seus sinais. Em suma, limitamo-nos ao moderatismo e “pragmatismo” do “Vamos testá-los”, do “Vamos ver os fatos concretos, um a um, e depois avaliaremos”, ou do “Estamos torcendo pela (Itália, Estados Unidos, etc.), e se eles fizerem algo bom (já ouviram isso?) nós os apoiaremos”. Uma abordagem aparentemente racional, mas que pode ter o mesmo efeito dos antolhos para as mulas.

Enquanto isso, no aguardo de julgar os fatos um a um, o governo do expoente político “afascista” traz de volta com todas as honras ao seu país um torturador e estuprador, trava uma batalha contra os outros poderes do Estado e reprime o dissenso pacífico com leis liberticidas. O construtor chama os imigrantes de “animais” e manda deportá-los acorrentados, inicia um plano de controle político da pesquisa científica e se exclui da cooperação internacional. O suposto visionário promovido ao poder executivo inicia o desmantelamento do Estado e acessa dados sensíveis da população, ao mesmo tempo em que oferece apoio direto a partidos neonazistas em países próximos de eleições cruciais. O apresentador de TV que fala com a alma dos cachorros corta serviços básicos, anuncia a demissão de 70.000 funcionários públicos, retira seu país da OMS, brinca com criptomoedas enganando seus concidadãos (alguém realmente achou que ele se importava com o país?) e continua a contaminar o discurso público com uma retórica repugnante, retrógrada, violenta e excludente.

A consternação é tamanha que agora é difícil até mesmo pensar em como reagir, como se opor a essa onda que poucos viram chegar e que agora se abate, violentamente, sobre todos.

O otimismo da vontade faz com que seja necessário acreditar que haverá formas e tempos, que a história pode ser recolocada numa trilha diferente.

Para que isso aconteça, será essencial ver e ouvir os eventos e as palavras ao nosso redor com mais abertura e atenção, não parar nos “fatos” em si e não os manter desconectados uns dos outros. Afastar-se, pelo menos um pouco, de uma abordagem tecnicista do conhecimento e da interpretação, fechada em paradigmas e cautelosa ao se expor fora deles. Quando se expor e correr riscos, na observação e no debate público, são necessários para vislumbrar “tudo o que não se sabe ou sobre o qual não se fala”. Antes que seja tarde demais.

 

¨      A ressurreição de um tirano. Por Marco Mondini

Levará tempo, mas mais cedo ou mais tarde teremos a maioria. E depois a Alemanha”. Kurt Lüdecke, um dos primeiros fanáticos nazistas, afirma em suas memórias que Adolf Hitler disse isso em um dia na primavera de 1924. Ele estava confinado em uma cela na prisão de Landsberg, mas não falava como um homem derrotado. No entanto, deveria. A desorganizada tentativa de golpe do ano anterior em Munique (o “golpe da cervejaria”) havia fracassado no ridículo. Alguns tiros de fuzil da polícia foram suficientes para dispersar sua variegada tropa de dois mil desordeiros e pôr fim à tentativa de derrubar a República de Weimar.

O Partido Nacional Socialista foi banido, os jornais radicais fechados, o próprio Hitler foi capturado e acabou sendo julgado por alta traição. Mas ali, na sala do tribunal onde deveria ter encontrado sua morte política, diante de uma multidão de jornalistas, o futuro Führer encenou a mais genial peça teatral de sua vida. Ele se apresentou com as medalhas de bravura no peito. Reivindicou seu gesto como um ato de amor pela verdadeira nação alemã, aquela dos veteranos das trincheiras. Insultou a democracia e seus governantes socialistas e católicos, traidores e mesquinhos, que haviam se rendido em 1918 e agora só pensavam em contas públicas e pensões. Negou ao tribunal o direito de julgá-lo (“porque a história me absolverá”). Ele invocou um Reich grande de novo, pelo qual valia a pena morrer. E seduziu a todos, tanto jornalistas quanto juízes. Como Brendan Simms escreveu em Hitler: Solo Il mondo era abbastanza (Hitler: Só o Mundo Era o Bastante), graças à sua atuação soberba ele transformou a derrota em um triunfo midiático.

Havia entrado na sala do tribunal como um réu relativamente desconhecido, um dos muitos desmoderados da extrema direita que estavam se manifestando na Europa naquela época. Ele saiu como um astro.

Condenado a cinco anos, foi posto em liberdade condicional depois de apenas alguns meses, reverenciado como patriota e mártir.

Não surpreende que, em 27 de fevereiro de 1925, quando ele entrou na Bürgerbräukeller, a mesma cervejaria de onde havia partido para tentar uma revolução armada, milhares de seguidores o aclamaram como o messias que voltou para liderá-los. Graças à sua fama e à sua promessa de não fomentar mais desordens, Hitler obteve permissão das autoridades para reconstituir o Partido Nazista. Ele se tornou seu senhor absoluto e começou sua marcha rumo ao poder. Naquela noite, muitos seguidores ficaram incrédulos quando seu líder hipnótico ordenou que eles (momentaneamente) depusessem as armas. Não com pistolas e granadas de mão conquistariam o país, mas legalmente, com os votos dos eleitores. Entrando no parlamento e esvaziando a democracia de dentro.

Nas eleições de 1930, após a Grande Depressão ter semeado raiva e desespero, mais de seis milhões de alemães lhe deram razão. Quatorze milhões o escolheram em 1932. “Alemanha, acorde!”, anunciavam os pôsteres de propaganda nazista. Hitler havia oferecido ao eleitorado um inimigo em quem jogar toda a culpar: a democracia liberal. Com seus debates lentos demais, seus governos fracos reféns dos partidos, seus poderes fortes em conluio com o capitalismo e o judaísmo internacionais para extinguir a chama do espírito germânico. E muitos que até então eram membros de partidos socialdemocratas ou do Centro Democrata Cristão se convenceram de que somente ele, o antigo rebelde, poderia tirá-los da pobreza e das humilhações.

Em janeiro de 1933, Adolf Hitler, líder da formação da maioria relativa, tornou-se chanceler. Foram necessários oito anos para que ele cumprisse sua profecia. Em compensação, bastaram apenas alguns meses para que ele desmantelasse a república, a golpes de leis votadas pelo parlamento e não com a violência de seus esquadrões.

A Europa entre as duas guerras mundiais era um mundo sombrio no qual a violência era o ingrediente natural da luta política, e qualquer analogia demasiado simplista com os dias de hoje seria enganosa. No entanto, a ressurreição de Hitler foi o resultado de uma combinação de fatores extremamente, e inquietantemente, atuais. O uso inescrupuloso da mídia de massa complacente para contaminar o debate público por meio da distorção sistemática da realidade. Um culto exasperado à personalidade orquestrado por meio de Mein Kampf, a autobiografia concebida na prisão (e em grande parte inventada) na qual Hitler surgia como herói predestinado a restaurar a grandeza e o orgulho dos alemães.

E as fraquezas da própria cúpula de Weimar, cuja liderança passou a acreditar que, depois do desastre de 1923, da prisão de seus partidários e do encarceramento, aquele estranho cabo austríaco não representasse mais uma ameaça crível. Ian Kershaw, seu principal biógrafo, escreveu que, se as portas das celas não tivessem sido abertas para ele tão rapidamente, a história de Hitler certamente teria tomado um rumo diferente. Talvez os líderes políticos e a magistratura em Munique e Berlim acreditassem que deixá-lo na prisão o transformaria em uma vítima e o tornaria ainda mais popular. Talvez eles pensassem sinceramente que o perigo havia passado e que a república estava tão sólida que não temia mais nenhum ataque. Seja qual for o motivo, o suicídio de Weimar foi uma boa demonstração do que acontece quando a democracia baixa a guarda e se sente a salvo de qualquer ameaça. Cem anos depois, esse é um aviso ainda válido.

 

¨      Querem voltar a 1939. Por Raniero de La Valle

Se o Papa, em resposta à televisão suíça, tivesse falado apenas de negociação, como tem feito incessantemente desde o início da guerra, apresentando-a como um dever moral além de político, ninguém teria prestado atenção nele, porque a esta altura as palavras de bom senso não podem mais nem ser pronunciadas neste mundo (ocidental) de uma só dimensão (a guerra). Em vez disso, ele pegou a metáfora que o entrevistador lhe ofereceu e falou de bandeira branca, e todos ficaram indignados, especialmente aqueles, como Biden e os nossos jornais, que enviam os outros para a guerra.

Mas toda a entrevista era dedicada ao branco, como símbolo da pureza, da mansidão e da bondade, e acabou aparecendo até a razão, desconhecida de todos, pela qual o Papa se veste de branco, que não é aquela de mostrá-lo sem pecado (porque eu peco como os outros, explicou Francisco, homem e não vigário de Deus, que não tem Vigários na terra, ou melhor, tem oito bilhões, tantos quantos somos no mundo), mas é simplesmente aquela que Pio V era um Dominicano e, portanto, usava o hábito branco, e desde então prevaleceu a tradição de vestir de branco também os seus sucessores (o faz pela primeira vez o mestre de cerimônias, antes de anunciar que "habemus papam").

Assim, graças ao simbolismo do branco, que não significa de forma alguma a rendição, mas sim a coragem de permanecer humanos quando é associado à bandeira, todos tiveram que ouvir a única voz do mundo, que enquanto a maioria enaltece a impossível e inevitável vitória dos exércitos de Kiev, cada vez mais abarrotados de armas e cada vez mais privados de homens (e mulheres), diz que o rei está nu, quando o rei (e, infelizmente, que rei!) está realmente nu. E até o Núncio foi convocado a Kiev, como o último dos embaixadores, para informá-lo que a única bandeira da Ucrânia é aquela amarela e azul, ainda que infelizmente, hoje e sabe-se lá por quanto tempo decidirem seus “governantes”, está a meio mastro.

O fato singular é que, embora Biden se tenha permitido dizer a Netanyahu que está causando a ruina do seu povo (e, na verdade, de todos os judeus espalhados pelo mundo), e ninguém o desmentiu, também porque é a sacrossanta verdade, todos descontaram no Papa Francisco que laicamente também fez um discurso de sabedoria e conveniência política.

Juntando tudo isso, o que resulta é que na demência pandêmica, que parece ser a verdadeira segunda epidemia deste início de século, os poderes que nos governam estão voltando para 1939, quando a Alemanha, começando pela Polônia, queria chegar a Moscou, e deu início à guerra mundial, que era então a segunda. Como a Alemanha da época, a OTAN está avançando para o Leste e o Ministro do Exterior polonês revelou que “o pessoal militar da OTAN já está presente na Ucrânia” (europeus incluídos) e, como o mundo se alargou, o plano é, depois da Rússia, eliminar a China. Mas hoje, além disso, existem as armas nucleares, os mísseis, os drones, e até a bucha de canhão aumentou, visto que na Terra somos, de fato, oito bilhões de pessoas. Na época os Estados Unidos não queriam intervir, foi preciso Pearl Harbor, enquanto agora eles já estão aqui, e um pouco de fascismo é disseminado também por eles, e aqui na Itália há uma cultura fascista no poder.

Há quem se refira explicitamente a 1939, e lamente que em Roma esteja o Papa Francisco, não alguém como Pio XII (considerado capelão do Ocidente): mas a partir dos documentos secretos da Santa Sé publicados depois da guerra, resulta que Tardini, vice-secretário de Estado, queria e escrevia que a guerra devia terminar não só com a derrota da Alemanha nazista, mas também com a liquidação da União Soviética e do seu comunismo.

Nesta situação, pedir para ter a coragem de negociar, “para não levar o país ao suicídio” (e isso também se aplica ao Hamas com os palestinos), não é uma blasfêmia, é um convite à salvação, uma centelha de verdade.

 

Fonte: IHU

 

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