sábado, 22 de fevereiro de 2025

Não, as Forças Armadas não salvaram o Brasil da tentativa de golpe de Bolsonaro

A Procuradoria-Geral da República limpou a barra das Forças Armadas na denúncia sobre a tentativa de golpe ao apontar que a cúpula das forças barrou o movimento golpista e ao tratar o envolvimento de militares como condutas individuais. 

Enquanto o procurador-geral Paulo Gonet afirmou que o “próprio Exército foi vítima da conspirata”, o Ministério da Defesa disse ser importante “distinguir as condutas individuais e a das Forças Armadas”, e o ministro José Múcio pontuou que “a responsabilização correta” se dará “livrando as instituições militares de suspeições equivocadas”.

Mas ao contrário do que a Defesa e até mesmo a PGR quer que acreditemos, não, as Forças Armadas não salvaram o Brasil da tentativa de golpe de Bolsonaro. Os próprios fatos elencados pela PGR na denúncia deixam evidente que, apesar de comandantes de Exército e Aeronáutica não apoiarem a minuta apresentada por Bolsonaro, a trama golpista teve militares como protagonistas e foi alimentada e tolerada pelas Forças Armadas.

Das 34 pessoas denunciadas pela PGR ao Supremo Tribunal Federal, 19 são militares – isso sem contar os cinco indiciados pela Polícia Federal em novembro de 2024 que ficaram de fora. 

Embora o general Marco Antonio Freire Gomes, então comandante do Exército, e o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, na época líder da Aeronáutica, tenham se recusado a apoiar o decreto de Bolsonaro, eles se mantiveram em silêncio por mais de um ano até seus depoimentos aos investigadores sobre a minuta do golpe e sobre a pressão de Bolsonaro para que aderissem.

Ao contrário deles, o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, aderiu ao plano golpista em dezembro de 2024. Ele é, inclusive, um dos denunciados pela PGR na terça-feira, 18.

Vale ressaltar, entretanto, que o decreto foi apenas uma das tacadas finais de toda a construção narrativa do golpe que se arrastou por meses. E dessa construção, as Forças Armadas participaram, emprestando o nome e peso da instituição para legitimar o movimento golpista.

Na avaliação de Rodrigo Lentz, professor de ciência política da Universidade de Brasília, UnB, e conselheiro da Comissão de Anistia, essa responsabilização que foca nos indivíduos e ignora as instituições é resultado do que ele chama de um ‘controle negociado’.

“Parece que, para fazer essa responsabilização da extrema direita, desses militares mais militantes, decidiu-se poupar os militares titubeantes ou ainda os militares que ficaram em cima do muro e que ficaram de fora da denúncia”, analisa Lenz, citando como exemplos Freire Gomes, o general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, ex-chefe do Comando Militar do Planalto, e Paulo Jorge Fernandes Da Hora, comandante da Guarda Presidencial.

Na avaliação dele, essa responsabilização dos militares “mais à extrema direita” também busca fortalecer internamente os militares liberais do ponto de vista político-ideológico, que vêm sendo chamados de “legalistas”, ou seja, “aqueles que não aderiram e não chegaram nem a ficar em cima do muro”. 

Confira a seguir as ocasiões em que as Forças Armadas, enquanto instituição – e não militares de forma isolada — agiram em favor de interesses golpistas:

·        Relatório de fiscalização das urnas 

Em 9 de novembro de 2022, o Ministério da Defesa entregou ao Tribunal Superior Eleitoral um relatório técnico de fiscalização das urnas eletrônicas, feito pelas Forças Armadas, que não encontrou indício algum de fraude no processo eleitoral.

Em setembro de 2021, em meio a ataques de Bolsonaro ao processo eleitoral, o então presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, convidou as Forças Armadas a integrarem a Comissão de Transparência das Eleições do TSE. Foi no âmbito dessa participação que as Forças Armadas realizaram a auditoria em busca de supostas fraudes que resultou no relatório que depois seria divulgado pelo Ministério da Defesa. 

Mas a própria divulgação do relatório foi arquitetada de modo a semear dúvidas, pois ocorreu somente após o segundo turno, e não em outubro, como estava inicialmente prevista segundo determinação do presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes. Segundo a denúncia da PGR, a demora não foi acidental, mas sim “manobra da organização para manter viva a narrativa de fraude no sistema eletrônico de votação”. 

Um dia depois que o relatório foi finalmente entregue sem constatação alguma de fraude, o então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, divulgou uma nova nota em que destacou que, embora o relatório não tivesse achado indícios de irregularidades no sistema de votação, ele não havia eliminado a possibilidade de que fraudes pudessem ser cometidas. Conforme a PGR, o objetivo desta manifestação do ministro era “evitar que a mensagem final sobre o processo eleitoral fosse positiva”.

Apesar dessa segunda nota, que serviu para semear dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, nenhum comandante das Forças Armadas falou publicamente sobre o relatório. Quem ficou encarregado da comunicação foi o então ministro Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. 

A delação premiada do ajudante de ordens Mauro Cid, cujo sigilo foi retirado pelo ministro Alexandre de Moraes na quarta-feira, 19, revelou que a alteração na nota “se deu exclusivamente pela determinação e insistência” do então presidente Jair Bolsonaro, que pressionava o então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio, para que fosse demonstrada a existência de supostas fraudes.

Pela Constituição, o presidente da República é o comandante-geral das Forças Armadas, o que torna os comandantes de cada uma das forças submissas a ele. No entanto, a Constituição também estabelece que as Forças Armadas – e, por consequência, aos seus comandantes – “destinam-se à defesa da Pátria”. Por isso, é importante considerar a inação, omissão e complacência dos militares como um desrespeito ao dever de proteger o país.

·        Acampamentos golpistas

No dia seguinte à divulgação da nota sobre o relatório de fiscalização, enquanto militantes bolsonaristas pedindo por intervenção militar se acumulavam em quartéis ao redor do Brasil, as Forças Armadas divulgaram uma nota conjunta

Os chefes de Exército, Aeronáutica e Marinha afirmaram que defendiam que a Constituição brasileira estabelece direitos e deveres que devem ser assegurados pelas instituições, incluindo a livre manifestação do pensamento e a liberdade de reunião – ou seja, não contestaram a tentativa do governo Bolsonaro de distorcer a conclusão do relatório que fizeram e indicava não haver qualquer fraude no sistema eleitoral. 

A denúncia da PGR revelou, através de informação obtida na delação de Mauro Cid, que a nota foi, na verdade, uma encomenda de Jair Bolsonaro. O então presidente sabia que “a mensagem seria recebida por seus apoiadores como sinal de aquiescência das Forças Armadas aos acampamentos espalhados pelo país” – o que implica o envolvimento da instituição como um todo no episódio, não apenas de alguns militares. 

A aposta deu certo. Em mensagem enviada ao general Freire Gomes, comandante do Exército, Mauro Cid disse que os organizadores dos movimentos entenderam a carta como um “respaldo das Forças Armadas”. 

Na delação premiada, Cid disse recordar-se de um vídeo em que o General Braga Netto, que concorreu como vice na chapa de Bolsonaro,  conversava com manifestantes em frente ao quartel e dizia “aos mesmos para terem esperança porque ainda não havia terminado e algo iria acontecer”. Segundo Cid, o vídeo indicava que tanto Bolsonaro quanto Braga Netto tinham convicção que as Forças Armadas poderiam ser convencidas a “darem o golpe” e, por isso, incentivaram as mobilizações em frente aos quartéis.  

·        Reunião golpista na conta do Exército

O Exército custeou a viagem do coronel Bernardo Romão Correa Neto, um dos indiciados pela PGR, para Brasília, durante a qual ele organizou uma reunião de caráter golpista entre militares das Forças Especiais do Exército, os kids pretos, e o ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, conforme revelado pelo Intercept em fevereiro de 2024. 

Oficialmente, de acordo com o Portal da Transparência, Correa Neto esteve na capital federal entre 26 de novembro e 1º de dezembro de 2022 para participar da 347ª Reunião do Alto-Comando do Exército, a RACE –  ainda que o encontro reúna só generais de quatro estrelas e o comandante do Exército. Em resposta ao Intercept, o Exército negou que Correa Neto tenha participado da RACE. 

Segundo as investigações da Polícia Federal que revelaram a trama do golpe, no período em que esteve na capital federal, Correa Neto organizou uma reunião no salão de festas de um bloco residencial da Asa Norte. Nela, foi elaborada uma carta para pressionar o comandante do Exército e outros militares a aderirem ou não se posicionarem contra a tentativa de golpe. Cid esteve presente no encontro.

·        ‘Meu exército’

Desde o início do governo Bolsonaro, militares ocuparam posição de prestígio em Brasília. Quando assumiu, além de Bolsonaro, nove militares ocupavam cargos no primeiro escalão do governo. Um relatório de 2021 do Tribunal de Contas da União mostrou que, sob Bolsonaro, o governo federal mais que dobrou a presença de militares em cargos até então ocupados por civis. 

Ao falar sobre as Forças Armadas, Bolsonaro frequentemente usava a expressão “meu exército” e falava em nome das Forças. Também não restam dúvidas sobre a interferência do ex-presidente nas Forças Armadas: durante seu governo, o presidente fez três trocas no alto comando do Exército, enquanto o habitual é que cada comandante permaneça quatro anos. 

Bolsonaro tentou também realizar uma motociata em apoio à sua figura dentro da sede da Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, onde ele começou sua carreira militar. Segundo o atual comandante do Exército, o general Tomás Ribeiro Paiva, o ato não ocorreu porque Bolsonaro foi alertado por outros militares de que realizar um ato político dentro de uma academia militar seria inadequado.

 

¨      Ministra do STM afirma que militares denunciados podem perder a patente independente do tamanho de suas penas

A ministra do Supremo Tribunal Militar Maria Elizabeth Rocha, que será empossada no próximo dia 12 de março como primeira mulher a ocupar a presidência da casa (tradicionalmente dirigida por homens, há 216 anos), em declaração ao 247, fez um reparo no que está sendo veiculado, sobre a possibilidade de o tenente-coronel Mauro Cid e os demais 23 militares serem considerados indignos das fileiras das Forças Armadas e desligados. 

Apesar do entendimento comum ser o de que somente se for condenado a pena superior a dois anos ele perde a patente, a ministra explicou que não é bem assim. O comando das três Forças pode entender que deve excluir o militar, desde que considere a sua conduta pouco condizente com a arma a que ele serve. Nesse caso, ele poderá perder a patente independentemente de a pena ser inferior ou superior a dois anos.

“Um militar está sujeito à perda da patente mesmo sem receber uma pena inferior a dois anos. Porque, se o comandante entender que ele merece sofrer um Conselho de Justificação, ele pode instaurar dentro do comando e depois esse procedimento irá para o tribunal, cuja competência é exclusiva e privativa para decretar essa perda de posto e patente para com o oficialato”, esclareceu. 

De acordo com a ministra, “se a pena for superior a dois anos, ele será submetido a uma representação de indignidade. Mas o fato de ela ser superior ou inferior a dois anos, não importa, porque o Conselho de Justificação é um tribunal de honra. É um tribunal que avalia se o militar merece permanecer integrando ou não o efetivo das Forças Armadas”. 

Um ponto importante clareado pela ministra, foi o de que “isso vale, inclusive, para os militares que estão na reserva ou foram reformados”. 

Ela chama a atenção para o seguinte: “existe um código de ética militar que tem que ser seguido, e os militares se preocupam muito com isso, então não é o quantitativo que irá determinar. Serão as atitudes e os atos que o militar praticou que foram julgados e houve depois uma condenação, na qual ele então será avaliado depois, por meio de um Conselho de Justificação - se for inferior -, ou de uma representação de indignidade - se for superior a dois anos. Que ele será submetido a essa valoração ética a esse Conselho de honra no tribunal, no Superior Tribunal Militar”.

É preciso deixar muito caro, também, nos alerta a ministra, que o Conselho de Justificação cabe independentemente de pena. Se o oficial cometeu algum ato que é considerado antiético, imoral, não precisa nem ser criminoso. No caso de Mauro Cid, ele pode ir ao Conselho de Justificação por iniciativa do comandante do Exército e depois ele prepara todos o processo e encaminha para o Supremo Tribunal Militar (STM). O que se fala é que é um processo judicial forme. Ele é administrativo, na base, porque começa no comando e termina na Justiça. Ele pode ser instaurado pelo comandante da Força – no caso dos denunciados, com exceção de Almir Garnier, que é da Marinha -, pelo comandante do Exército.

Ao ser considerado indigno ou incompatível com a carreira militar, um oficial perde o posto e a patente. Essa decisão é tomada pelo Conselho de Justificação, formado por militares de graduação superior, e pode ocorrer em casos de crimes, conduta inadequada ou incapacidade para o serviço. As consequências vão além da perda da carreira. Nesse caso, o militar perde também diversos benefícios.

Já os “praças”, como soldados, cabos e sargentos, podem ser excluídos diretamente pelos Comandantes das Forças, sem necessidade de um tribunal militar. Esse é destinado aos oficiais, aos graduados, como é o caso dos denunciados na tentativa de golpe do 8 de janeiro.

Existe, porém na carreira militar, a figura da “morte ficta”, um benefício concedido aos dependentes de militares excluídos das Forças por conduta inadequada. Segundo a Lei 3.765/60, mesmo que o militar perca o posto e a patente, seus dependentes ainda têm direito à pensão correspondente, proporcional ao tempo de serviço.

A existência desse benefício é motivo de muita polêmica e críticas. Diante das controvérsias, foi apresentada na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), com o objetivo de acabar com a pensão por “morte ficta” para militares. A proposta busca proibir a concessão de qualquer benefício relacionado à “morte ficta” para militares que cometam infrações graves. Se aprovada, a PEC alterará o artigo 142 da Constituição, vedando a transferência do militar para a inatividade como sanção e extinguindo a pensão por morte ficta.

 

Fonte: Por Laís Martins, em The Intercept/Brasil 247

 

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