Não, as Forças
Armadas não salvaram o Brasil da tentativa de golpe de Bolsonaro
A Procuradoria-Geral da República limpou a barra
das Forças Armadas na denúncia sobre a tentativa de golpe ao apontar que a
cúpula das forças barrou o movimento golpista e ao tratar o envolvimento de
militares como condutas individuais.
Enquanto o procurador-geral Paulo Gonet afirmou que o
“próprio Exército foi vítima da conspirata”, o Ministério da Defesa disse ser
importante “distinguir as condutas individuais e a das Forças Armadas”, e o
ministro José Múcio pontuou que “a responsabilização correta” se dará “livrando
as instituições militares de suspeições equivocadas”.
Mas ao contrário do que a Defesa e até mesmo a PGR quer
que acreditemos, não, as Forças Armadas não salvaram o Brasil da tentativa de
golpe de Bolsonaro. Os próprios fatos elencados pela PGR na denúncia deixam
evidente que, apesar de comandantes de Exército e Aeronáutica não apoiarem a
minuta apresentada por Bolsonaro, a trama golpista teve militares como
protagonistas e foi alimentada e tolerada pelas Forças Armadas.
Das 34 pessoas denunciadas pela PGR ao Supremo Tribunal
Federal, 19 são militares – isso sem contar os cinco indiciados pela Polícia Federal em novembro
de 2024 que ficaram de fora.
Embora o general Marco Antonio Freire Gomes, então
comandante do Exército, e o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista
Junior, na época líder da Aeronáutica, tenham se recusado a apoiar o decreto de
Bolsonaro, eles se mantiveram em silêncio por mais de um ano até seus
depoimentos aos investigadores sobre a minuta do golpe e sobre a pressão de
Bolsonaro para que aderissem.
Ao contrário deles, o então comandante da Marinha,
almirante Almir Garnier Santos, aderiu ao plano golpista em dezembro de 2024.
Ele é, inclusive, um dos denunciados pela PGR na terça-feira, 18.
Vale ressaltar, entretanto, que o decreto foi apenas
uma das tacadas finais de toda a construção narrativa do golpe que se arrastou
por meses. E dessa construção, as Forças Armadas participaram, emprestando o
nome e peso da instituição para legitimar o movimento golpista.
Na avaliação de Rodrigo Lentz, professor de ciência
política da Universidade de Brasília, UnB, e conselheiro da Comissão de
Anistia, essa responsabilização que foca nos indivíduos e ignora as
instituições é resultado do que ele chama de um ‘controle negociado’.
“Parece que, para fazer essa responsabilização da
extrema direita, desses militares mais militantes, decidiu-se poupar os
militares titubeantes ou ainda os militares que ficaram em cima do muro e que
ficaram de fora da denúncia”, analisa Lenz, citando como exemplos Freire Gomes,
o general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, ex-chefe do Comando Militar do
Planalto, e Paulo Jorge Fernandes Da Hora, comandante da Guarda Presidencial.
Na avaliação dele, essa responsabilização dos militares
“mais à extrema direita” também busca fortalecer internamente os militares
liberais do ponto de vista político-ideológico, que vêm sendo chamados de
“legalistas”, ou seja, “aqueles que não aderiram e não chegaram nem a ficar em
cima do muro”.
Confira a seguir as ocasiões em que as Forças Armadas,
enquanto instituição – e não militares de forma isolada — agiram em favor de
interesses golpistas:
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Relatório de fiscalização das
urnas
Em 9 de novembro de 2022, o Ministério da Defesa entregou
ao Tribunal Superior Eleitoral um relatório técnico de fiscalização das urnas
eletrônicas, feito pelas Forças Armadas, que não encontrou indício algum de
fraude no processo eleitoral.
Em setembro de 2021, em meio a ataques de Bolsonaro ao
processo eleitoral, o então presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso,
convidou as Forças Armadas a integrarem a Comissão de Transparência das
Eleições do TSE. Foi no âmbito dessa participação que as Forças Armadas
realizaram a auditoria em busca de supostas fraudes que resultou no relatório
que depois seria divulgado pelo Ministério da Defesa.
Mas a própria divulgação do relatório foi arquitetada
de modo a semear dúvidas, pois ocorreu somente após o segundo turno, e não em
outubro, como estava inicialmente prevista segundo determinação do presidente
do TSE, ministro Alexandre de Moraes. Segundo a denúncia da PGR, a demora não
foi acidental, mas sim “manobra da organização para manter viva a narrativa de
fraude no sistema eletrônico de votação”.
Um dia depois que o relatório foi finalmente entregue
sem constatação alguma de fraude, o então ministro da Defesa, general Paulo
Sérgio Nogueira de Oliveira, divulgou uma nova nota em que
destacou que, embora o relatório não tivesse achado indícios de irregularidades
no sistema de votação, ele não havia eliminado a possibilidade de que fraudes
pudessem ser cometidas. Conforme a PGR, o objetivo desta manifestação do
ministro era “evitar que a mensagem final sobre o processo eleitoral fosse
positiva”.
Apesar dessa segunda nota, que serviu para semear
dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, nenhum comandante das Forças
Armadas falou publicamente sobre o relatório. Quem ficou encarregado da
comunicação foi o então ministro Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
A delação premiada do ajudante de ordens Mauro Cid,
cujo sigilo foi retirado pelo ministro Alexandre de Moraes na quarta-feira, 19,
revelou que a alteração na nota “se deu exclusivamente pela determinação e
insistência” do então presidente Jair Bolsonaro, que pressionava o então
ministro da Defesa, general Paulo Sérgio, para que fosse demonstrada a
existência de supostas fraudes.
Pela Constituição, o presidente da República é o
comandante-geral das Forças Armadas, o que torna os comandantes de cada uma das
forças submissas a ele. No entanto, a Constituição também estabelece que as
Forças Armadas – e, por consequência, aos seus comandantes – “destinam-se à
defesa da Pátria”. Por isso, é importante considerar a inação, omissão e
complacência dos militares como um desrespeito ao dever de proteger o país.
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Acampamentos golpistas
No dia seguinte à divulgação da nota sobre o relatório
de fiscalização, enquanto militantes bolsonaristas pedindo por intervenção
militar se acumulavam em quartéis ao redor do Brasil, as Forças Armadas
divulgaram uma nota conjunta.
Os chefes de Exército, Aeronáutica e Marinha afirmaram
que defendiam que a Constituição brasileira estabelece direitos e deveres que
devem ser assegurados pelas instituições, incluindo a livre manifestação do
pensamento e a liberdade de reunião – ou seja, não contestaram a tentativa do
governo Bolsonaro de distorcer a conclusão do relatório que fizeram e indicava
não haver qualquer fraude no sistema eleitoral.
A denúncia da PGR revelou, através de informação obtida
na delação de Mauro Cid, que a nota foi, na verdade, uma encomenda de Jair
Bolsonaro. O então presidente sabia que “a mensagem seria recebida por seus
apoiadores como sinal de aquiescência das Forças Armadas aos acampamentos
espalhados pelo país” – o que implica o envolvimento da instituição como um
todo no episódio, não apenas de alguns militares.
A aposta deu certo. Em mensagem enviada ao general
Freire Gomes, comandante do Exército, Mauro Cid disse que os organizadores dos
movimentos entenderam a carta como um “respaldo das Forças Armadas”.
Na delação premiada, Cid disse recordar-se de um vídeo
em que o General Braga Netto, que concorreu como vice na chapa de
Bolsonaro, conversava com manifestantes em frente ao quartel e dizia “aos
mesmos para terem esperança porque ainda não havia terminado e algo iria
acontecer”. Segundo Cid, o vídeo indicava que tanto Bolsonaro quanto Braga
Netto tinham convicção que as Forças Armadas poderiam ser convencidas a “darem
o golpe” e, por isso, incentivaram as mobilizações em frente aos
quartéis.
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Reunião golpista na conta do
Exército
O Exército custeou a viagem do coronel Bernardo Romão
Correa Neto, um dos indiciados pela PGR, para Brasília, durante a qual ele
organizou uma reunião de caráter golpista entre militares das Forças Especiais
do Exército, os kids pretos, e o ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid,
conforme revelado pelo Intercept em fevereiro de
2024.
Oficialmente, de
acordo com o Portal da Transparência, Correa Neto
esteve na capital federal entre 26 de novembro e 1º de dezembro de 2022 para
participar da 347ª Reunião do Alto-Comando do Exército, a RACE – ainda
que o encontro reúna só generais de quatro estrelas e o comandante do Exército.
Em resposta ao Intercept, o Exército negou que Correa Neto tenha participado da
RACE.
Segundo as
investigações da Polícia Federal que revelaram a trama do golpe, no período em que
esteve na capital federal, Correa Neto organizou uma reunião no salão de festas
de um bloco residencial da Asa Norte. Nela, foi elaborada uma carta
para pressionar o comandante do Exército e outros militares a aderirem ou não
se posicionarem contra a tentativa de golpe. Cid esteve presente no encontro.
·
‘Meu exército’
Desde o início do governo Bolsonaro, militares ocuparam
posição de prestígio em Brasília. Quando assumiu, além de Bolsonaro, nove militares ocupavam
cargos no primeiro escalão do governo. Um relatório de 2021 do Tribunal
de Contas da União mostrou que, sob Bolsonaro, o governo federal mais que
dobrou a presença de militares em cargos até então ocupados por civis.
Ao falar sobre as Forças Armadas, Bolsonaro
frequentemente usava a expressão “meu exército” e falava em
nome das Forças. Também não restam dúvidas sobre a interferência do
ex-presidente nas Forças Armadas: durante seu governo, o presidente fez três
trocas no alto comando do Exército, enquanto o habitual é que cada comandante
permaneça quatro anos.
Bolsonaro tentou também realizar uma motociata em apoio
à sua figura dentro da sede da Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman,
onde ele começou sua carreira militar. Segundo o atual comandante do Exército,
o general Tomás Ribeiro Paiva, o ato não ocorreu porque
Bolsonaro foi alertado por outros militares de que realizar um ato político
dentro de uma academia militar seria inadequado.
¨ Ministra do
STM afirma que militares denunciados podem perder a patente independente do
tamanho de suas penas
A ministra do
Supremo Tribunal Militar Maria Elizabeth Rocha, que será empossada no próximo
dia 12 de março como primeira mulher a ocupar a presidência da casa
(tradicionalmente dirigida por homens, há 216 anos), em declaração ao 247, fez um reparo no que está sendo
veiculado, sobre a possibilidade de o tenente-coronel Mauro Cid e os demais 23
militares serem considerados indignos das fileiras das Forças Armadas e
desligados.
Apesar do
entendimento comum ser o de que somente se for condenado a pena superior a dois
anos ele perde a patente, a ministra explicou que não é bem assim. O comando das
três Forças pode entender que deve excluir o militar, desde que considere a sua
conduta pouco condizente com a arma a que ele serve. Nesse caso, ele poderá
perder a patente independentemente de a pena ser inferior ou superior a dois
anos.
“Um militar está
sujeito à perda da patente mesmo sem receber uma pena inferior a dois anos.
Porque, se o comandante entender que ele merece sofrer um Conselho de
Justificação, ele pode instaurar dentro do comando e depois esse procedimento
irá para o tribunal, cuja competência é exclusiva e privativa para decretar
essa perda de posto e patente para com o oficialato”, esclareceu.
De acordo com
a ministra, “se a pena for superior a dois anos, ele será submetido a uma
representação de indignidade. Mas o fato de ela ser superior ou inferior a dois
anos, não importa, porque o Conselho de Justificação é um tribunal de honra. É
um tribunal que avalia se o militar merece permanecer integrando ou não o
efetivo das Forças Armadas”.
Um ponto
importante clareado pela ministra, foi o de que “isso vale, inclusive, para os
militares que estão na reserva ou foram reformados”.
Ela chama a
atenção para o seguinte: “existe um código de ética militar que tem que ser
seguido, e os militares se preocupam muito com isso, então não é o quantitativo
que irá determinar. Serão as atitudes e os atos que o militar praticou que
foram julgados e houve depois uma condenação, na qual ele então será avaliado
depois, por meio de um Conselho de Justificação - se for inferior -, ou de uma
representação de indignidade - se for superior a dois anos. Que ele será
submetido a essa valoração ética a esse Conselho de honra no tribunal, no
Superior Tribunal Militar”.
É preciso
deixar muito caro, também, nos alerta a ministra, que o Conselho de
Justificação cabe independentemente de pena. Se o oficial cometeu algum ato que
é considerado antiético, imoral, não precisa nem ser criminoso. No caso de
Mauro Cid, ele pode ir ao Conselho de Justificação por iniciativa do comandante
do Exército e depois ele prepara todos o processo e encaminha para o Supremo
Tribunal Militar (STM). O que se fala é que é um processo judicial forme. Ele é
administrativo, na base, porque começa no comando e termina na Justiça. Ele
pode ser instaurado pelo comandante da Força – no caso dos denunciados, com
exceção de Almir Garnier, que é da Marinha -, pelo comandante do Exército.
Ao ser
considerado indigno ou incompatível com a carreira militar, um oficial perde o
posto e a patente. Essa decisão é tomada pelo Conselho de Justificação, formado
por militares de graduação superior, e pode ocorrer em casos de crimes, conduta
inadequada ou incapacidade para o serviço. As consequências vão além da perda
da carreira. Nesse caso, o militar perde também diversos benefícios.
Já os
“praças”, como soldados, cabos e sargentos, podem ser excluídos diretamente
pelos Comandantes das Forças, sem necessidade de um tribunal militar. Esse é
destinado aos oficiais, aos graduados, como é o caso dos denunciados na
tentativa de golpe do 8 de janeiro.
Existe, porém
na carreira militar, a figura da “morte ficta”, um benefício concedido aos
dependentes de militares excluídos das Forças por conduta inadequada. Segundo a
Lei 3.765/60, mesmo que o militar perca o posto e a patente, seus dependentes
ainda têm direito à pensão correspondente, proporcional ao tempo de serviço.
A existência
desse benefício é motivo de muita polêmica e críticas. Diante das
controvérsias, foi apresentada na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à
Constituição (PEC), com o objetivo de acabar com a pensão por “morte ficta”
para militares. A proposta busca proibir a concessão de qualquer benefício
relacionado à “morte ficta” para militares que cometam infrações graves. Se
aprovada, a PEC alterará o artigo 142 da Constituição, vedando a transferência
do militar para a inatividade como sanção e extinguindo a pensão por morte
ficta.
Fonte: Por Laís
Martins, em The Intercept/Brasil 247
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