A escalada das
denúncias de quem trabalha sob calor extremo
Na segunda-feira
(17/2), enquanto os termômetros de São Paulo
batiam nos 34°C —
maior temperatura do ano e deste verão para a cidade — o procurador Patrick
Maia Merisio, do Ministério Público do Trabalho (MPT), realizava uma inspeção
em uma loja nas imediações da rua 25 de Março, um dos maiores centros de
comércio popular do país.
"As pessoas
trabalham ali, muitas delas em ambientes fechados, são corredores estreitos, é
muita gente. O problema ali do calor é que é um
lugar muito cheio. Eu mesmo não fui de terno e gravata nesse dia, mas eu até
passei mal – eu mesmo, fazendo a inspeção e indo até lá."
A denúncia que
levou o procurador à loja no centro de São Paulo, em meio à terceira onda de calor do ano, que afetou nove
estados e o Distrito Federal, é parte de uma tendência crescente.
Em meio ao avanço
das temperaturas, entre 2022 e 2024, as denúncias ao MPT que fazem referência a
"calor" quase quintuplicaram – foram 154 em 2022, 621 em 2023 (ano
marcado por uma onda de calor histórica no mês de novembro) e 741 no ano
passado.
Em 2025, somente
até 18 de fevereiro, já foram registradas 194 denúncias em que o calor foi
mencionado, superando em apenas 49 dias o total registrado no ano inteiro de
2022.
"Há uma
necessidade de mudança nos processos de trabalho, porque realmente estamos num
momento muito diferenciado e vemos uma tendência disso só se agravar
mais", diz Merisio, que também é coordenador do Grupo de Estudos sobre
Mudanças Climáticas e Impactos no Meio Ambiente do Trabalho do MPT.
Com temperaturas
que chegaram aos 43°C nas últimas semanas, o Rio Grande do Sul lidera as
denúncias com referência a "calor" junto ao MPT em 2025,
representando 21% do total, seguido por São Paulo (18,1%), Santa Catarina
(12,4%), Paraná (9,5%) e Rio de Janeiro (8,6%).
Paulo Andrade,
presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Caxias do Sul e Região, conta que a
entidade recebeu entre 15 a 20 denúncias sobre calor excessivo em fábricas da
região da Serra Gaúcha nas últimas duas semanas. Trata-se de um número alto em
relação ao histórico, diz ele, que tem 15 anos de trabalho sindical.
"Quando está
34°C, 38°C fora da empresa, dentro da empresa está marcando 43°C. Imagina como
ficam os trabalhadores soldando tanques, fazendo os processos de trabalho aí
nesse calor", diz Andrade.
Segundo ele, entre
as queixas mais frequentes dos metalúrgicos gaúchos estão a falta de ventilação
adequada nas fábricas e de água fresca para beber.
O sindicato tem
realizado reuniões com algumas das empresas denunciadas e já conseguiu acordos
com algumas melhorias, como a realização de pausas de dez minutos por turno
sempre que a medição de calor ficar acima de 28°C, a substituição de bebedouros
antigos por industriais e a instalação de ventiladores.
"A tendência, se
as empresas não se adequarem, vai ser ter um número de denúncias cada vez
maior", afirma o sindicalista.
"Porque os
trabalhadores não aguentam, temos relatos de empresas em que as pessoas estavam
desmaiando, os trabalhadores saindo de ambulância. Isso não pode
acontecer."
·
Os
profissionais mais ameaçados pelo calor extremo
Entre os setores
com denúncias mais frequentes sobre calor excessivo junto ao MPT estão aqueles
que envolvem trabalhos a céu aberto, como agricultura, construção civil,
correios, telecomunicações e vigilância, diz Cirlene Zimmermann, titular da
Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho e da Saúde do
Trabalhador e da Trabalhadora (Codemat), que realizou o levantamento a pedido
da BBC News Brasil.
"Setores como
telemarketing, supermercados e comércio em geral, panificadoras, indústrias e
até hospitais também estão sendo denunciados", cita a procuradora.
As queixas que
chegam ao MPT estão alinhadas com o que mostram estudos recentes sobre os
trabalhadores mais ameaçados pelo calor extremo.
"O aumento das
temperaturas e as ondas de calor cada vez mais frequentes devem causar mais
problemas de saúde e mortes relacionadas ao calor entre trabalhadores ao redor
do mundo", escrevem Kathryn Gibb e coautores, da Unidade de Saúde Ocupacional
do Departamento de Saúde Pública da Califórnia (EUA), que publicaram um estudo sobre o tema em
maio de 2024,
no período científico Annual Reviews.
Segundo os
pesquisadores, que fizeram uma revisão de diversos outros estudos
internacionais sobre o tema, entre os setores mais ameaçados por doenças
ocupacionais relacionadas ao calor estão:
Agricultura;
Construção;
Militares;
Bombeiros;
Mineradores;
Trabalhadores
fabris.
Os trabalhadores
agrícolas, por exemplo, são frequentemente remunerados por produção, o que é um
incentivo financeiro para trabalhar mais e evitar fazer pausas, mesmo sob altas
temperaturas, dizem os pesquisadores.
Já na construção civil
há fatores de risco diversos, como o esforço físico intenso, a necessidade de
usar roupas de proteção e a exposição direta ao sol e às altas temperaturas ao
ar livre.
"Embora os
trabalhadores da construção civil somem 6% da força de trabalho nos EUA, eles
representaram 36% das mortes ocupacionais relacionadas ao calor entre 1992 e
2016", citam os pesquisadores.
Um outro estudo,
produzido por pesquisadores brasileiros da Universidade Estadual de Maringá
e publicado na revista Safety Science, analisou os
acidentes de trabalho ligados ao calor extremo ocorridos no Brasil entre 2006 e
2019.
O levantamento
mostrou que trabalhadores da região Centro-Oeste, pardos ou amarelos, entre 41
e 60 anos, estão mais expostos a acidentes graves com risco de morte
relacionados ao calor.
"O resultado
revela como pessoas de diferentes raças estão sofrendo as consequências das
mudanças climáticas no país, onde pessoas negras e de outras minorias são mais
vulneráveis ao estresse térmico do que pessoas brancas", escrevem os
pesquisadores paranaenses.
Diego Xavier,
coordenador do Observatório de Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), observa que essa maior vulnerabilidade das pessoas negras ao calor
extremo no trabalho está relacionada a fatores estruturais que vão além da
questão de saúde.
"Quando
olhamos quem são os trabalhadores na construção civil ou na limpeza e
conservação, ou seja, quem está trabalhando diretamente exposto em áreas
externas, em geral, a maior parte dessa população é negra", observa
Xavier.
Outro ponto
importante com relação a raça e cor, diz o pesquisador da Fiocruz, é que, nas
periferias urbanas, também predomina a população negra, e nessas áreas não há
condições de habitação que ajudem a dissipar o calor. "A tendência é que
esses locais se transformem em ilhas de calor", afirma.
"Então há essa
discussão de que as mudanças climáticas e as ondas de calor afetam
diferentemente as populações considerando raça e cor, mas isso é tudo problema
subjacente, que vai muito além da questão de saúde, estamos falando de
habitação, de distribuição de renda."
·
Exaustão,
acidentes e perda de produtividade
Segundo a Organização Internacional
do Trabalho (OIT),
2,41 bilhões de trabalhadores (ou 71% da força de trabalho global) estão
expostos aos riscos do calor excessivo, problema que resulta em 22,9 milhões de
lesões e 18.970 mortes por ano em todo o mundo.
"No calor
extremo, o corpo tenta eliminar o calor para fora. Mas se o ambiente está
quente e úmido, o corpo não consegue eliminar o suor para se refrescar. Aí
acontece o superaquecimento – a temperatura corporal sobe e o sistema todo
entra em pane, é o que chamamos de hipertermia", explica Fábio Gonçalves,
professor de biometeorologia humana na Universidade de São Paulo (USP) – a
disciplina estuda a influência do tempo e do clima sobre o ser humano.
Os problemas de
saúde ligados ao estresse térmico vão desde os mais leves, como exaustão,
tontura, perda de concentração e desmaios, até os mais sérios, como ataque
cardíaco, transtornos renais e problemas cardiovasculares e respiratórios.
A exposição ao
calor exagerado também pode levar a acidentes e ferimentos de trabalho, e até à
morte do trabalhador.
"Há trabalhos
que já mostram que há uma queda na produtividade do trabalhador que está
exposto a condições de clima muito quente", destaca Diego Xavier, da
Fiocruz.
"Então, do
ponto de vista econômico, criar condições mais adequadas para as pessoas
trabalharem deveria ser algo de interesse também dos patrões, mas isso não tem
sido muito observado."
·
O
que empresas e poder público podem fazer
Para fazer frente a
esse quadro, o MPT criou no ano passado o Grupo de Estudos sobre Mudanças
Climáticas e Impactos no Meio Ambiente do Trabalho, conta Patrick Merisio.
Um dos primeiros
resultados desse grupo foi o lançamento de diretrizes para o enfrentamento das
mudanças climáticas. O documento traz uma espécie de passo-a-passo para as
empresas protegerem seus trabalhadores do calor excessivo:
Adaptar os horários
de trabalho, priorizando a realização de atividades ao ar livre em períodos de
menor sol, como no início da manhã ou final da tarde;
Promover pausas
para descanso em locais com conforto térmico;
Garantir a
ventilação e a climatização dos ambientes de trabalho;
Suspender
temporariamente as atividades de todos os trabalhadores quando as condições
climáticas extremas representarem risco à saúde ou à vida;
Viabilizar o
trabalho remoto, sempre que possível e, preferentemente, para pessoas com
comorbidades, gestantes e idosos;
Disponibilizar
vestimenta adequada à natureza da atividade e do ambiente, inclusive em tecido
mais leve e em cor que absorva menos calor;
Fornecer água
fresca potável e incentivar o consumo;
Orientar sobre
sinais e sintomas de saúde que devem ser reportados para suspensão da atividade
do trabalhador até que ele se recupere.
No caso dos
trabalhadores informais, cabe ao poder público implementar políticas para
garantir a saúde e segurança dos trabalhadores, diz Cirlene Zimmermann, do MPT.
Ela cita como um
bom exemplo disso a política de regulamentação dos vendedores de mate na praia,
feita pela Prefeitura do Rio de Janeiro, que deu registro e capacitação para
centenas desses profissionais.
Para Xavier, da
Fiocruz, o Rio também é exemplo pelo protocolo de calor adotado pela cidade
desde junho do ano passado, depois que uma fã da cantora americana Taylor
Swift morreu de hipertermia durante o show da americana em 2023.
Nesta semana, por
exemplo, a capital fluminense atingiu pela primeira vez o nível 4 do protocolo,
quando as temperaturas chegam ao patamar de 40°C a 44°C por pelo menos três
dias seguidos.
Em resposta, uma
série de medidas são adotadas, como a instalação de pontos de resfriamentos e
estações de hidratação, e o cancelamento ou reagendamento de eventos de médio e
grande porte em áreas externas.
Xavier pondera,
porém, que o desafio agora para o país é ter diretrizes mais centralizadas de
enfrentamento ao calor extremo, mas que possam ser adaptadas regionalmente.
"Não podemos
mais pensar em trabalhador só como aquele que tem emprego e carteira
assinada", diz Merisio, do MPT.
"Daqui a pouco
esses trabalhadores não vão nem mais ser a maioria da população economicamente
ativa, estamos caminhando para isso. Então temos que pensar em medidas de
proteção social voltadas para todos."
Fonte: BBC News Brasil
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