BBC resgata vozes e
sambas esquecidos dos soldados brasileiros na 2ª Guerra
"Aí cheguei,
me aproximei do Hitler e falei assim: Seu Hitler, o senhor completamente
embriagado! Um homem de cartaz na Alemanha. Por que o senhor bebe tanto assim?
Aí, ele disse, 'por que eu bebo, meu amigo? Escuta só: Tornei-me um ébrio, na
bebida posso esquecer/ o Mussolini, que eu amava, e que me
abandonou/bombardeado pela RAF vivo a sofrer/ e não encontro um lugar pra me
esconder...'"
Esse "diálogo
com Adolf Hitler" é narrado por um soldado brasileiro no estilo stand-up
musical, fazendo uma versão bem-humorada de O Ébrio, grande sucesso
de Vicente Celentino na época, em um show de calouros gravado pelo Serviço Brasileiro
da BBC na Itália em junho de
1945 com os pracinhas que
aguardavam o retorno ao Brasil.
O show, um raro e
precioso registro em áudio do momento em que saboreavam a vitória com um misto
de alto astral e pesar pela morte de companheiros, foi registrado com auxílio
de uma rara unidade móvel de gravação da BBC.
Além de gravar esse
show e vários sambas compostos pelos pracinhas em pleno front, essa unidade
registrou - sempre em frágeis discos de alumínio cobertos por um laque
especial, já que ainda não havia gravadores portáteis de fita magnética - os
sons do dia a dia dos soldados nos acampamentos, além de relatos, crônicas e
mensagens a familiares.
Essas gravações,
feitas pelo correspondente de guerra da Seção Brasileira da BBC, o anglo-gaúcho
Francis Hallawell, com ajuda do técnico de som britânico Douglas Farley, foram
resgatadas pela BBC News Brasil como parte das celebrações dos seus 80 anos e
estão sendo disponibilizadas ao público para marcar essas oito décadas de
produção de conteúdo para o Brasil.
Historiadores e
especialistas que tiveram acesso ao material ouvido pela BBC News Brasil foram
enfáticos ao situar sua importância.
"Foi
emocionante ouvir as gravações", diz Francisco César Ferraz, professor do
Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL), com anos
dedicados à pesquisa da participação brasileira na Segunda Guerra e autor de
dois livros sobre o assunto - O Brasil e a Segunda Guerra
Mundial e A Guerra Que Não Acabou.
"Uma coisa é
passar anos estudando ou lendo sobre o assunto, outra é realmente ouvir esses
registros. A variedade de tópicos, de situações... têm de tudo... desde
reportagens relidas por correspondentes de guerra, seleções musicais, eventos,
missas, humor, personagens, serviço médico... um material fantástico. É um
estímulo a outros pesquisadores."
Para Vinicius
Mariano de Carvalho, professor e pesquisador do Brazil Institute do King's
College, em Londres, que ajudou a BBC a recuperar esse material e está
publicando um trabalho focado nas músicas compostas
pelos pracinhas, as gravações de Hallawell "nos aproximam demais do que
viveram esses soldados na guerra".
"O som do
acampamento, da panela ao fundo, pessoas falando... é a única imagem que a
gente tem do universo sonoro desses pracinhas. Esse material é extremamente
importante, possivelmente o único documento sonoro que dá voz ao soldado
brasileiro na Itália."
As gravações
resgatadas totalizam pouco mais de quatro horas de áudio. São 12 programas de
duração e temas variados com material gravado durante os oito meses de campanha
militar dos 25 mil integrantes da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na
Itália.
·
'Cartas,
pessoal!'
Parte desse
material foi transmitido ao Brasil por rádio durante a guerra, como por exemplo
as reportagens que mostram uma distribuição de cartas e a "hora do
rancho" em um acampamento, a visita a um hospital - transmitida para o
Brasil na noite de Natal de 1944 - e o registro de uma missa na Catedral de
Pisa, em que mais de mil soldados e oficiais, com a presença do comandante da
FEB, general Mascarenhas de Morais, cantaram o Hino Nacional.
Um dos mais
curiosos é o programa com um show de variedades celebrando a vitória, realizado
no clube da FEB em Alessandria, no norte da Itália, quando os soldados
aguardavam o retorno ao Brasil. O programa segue a linha de shows de rádio ao vivo
populares na época, com concurso de calouros, música e muito humor, e foi
gravado especialmente "para as famílias (dos expedicionários) no Brasil,
enquanto espera-se o grande dia do embarque".
Mas boa parte dos
programas foi montada mais tarde, quando os soldados já tinham sido
desmobilizados e retornado a suas cidades, como as homenagens aos três
regimentos de infantaria da FEB - o 1º, também conhecido como Regimento
Sampaio, baseado na então capital, Rio de Janeiro, o 6º, baseado em Caçapava
(SP) e o 11º, de São João del-Rei (MG), recontando suas campanhas com
depoimentos e dramatizações feitas no estúdio da BBC.
O material do
"Chico da BBC" deu impacto às transmissões da Seção Brasileira da BBC
em ondas curtas. Eram três horas diárias de transmissão, sempre à noite, no
horário nobre dos anos de ouro do rádio no Brasil. Havia notícias, programas de
variedades, música, radioteatro e "cerca de 15 minutos dedicados ao
noticiário sobre a guerra", segundo o livro Vozes de Londres, de
Laurindo Lalo Leal Filho, que conta a história da Seção
Brasileira da BBC desde sua criação, em março de 1938.
As notícias que os
brasileiros ouviam sobre a guerra eram traduzidas do inglês, o que, segundo
Rose Esquenazi, professora da PUC-Rio e autora de O Rádio na Segunda
Guerra: no ar, Francis Hallawell, o Chico da BBC, longe de ser um problema,
ajudou a dar crédito ao conteúdo.
"A BBC trouxe
maior equilíbrio. Falava quando um navio inglês era afundado", diz ela à
BBC News Brasil. "As pessoas sabiam que havia a censura do Estado Novo. Se
você ouvia em outra rádio, a notícia seria mais parcial. Os brasileiros sentiam
que o noticiário da BBC era mais isento."
As vozes dos
combatentes brasileiros e as crônicas enviadas por Hallawell "traziam
humanidade" nessas transmissões. "As pessoas queriam que a guerra
acabasse, e o Chico trazia as informações lá do front, onde estavam os filhos,
os maridos e os noivos", afirma Esquenazi.
·
'Ô
Félix, tá caindo muita coisa no front?'
Hallawell, nascido
em Porto Alegre e educado parcialmente na Inglaterra, falava português com um
leve sotaque britânico, mas sua voz, diz Esquenazi, "tinha certa
intimidade com o ouvido do brasileiro".
Apesar de muitos
soldados estarem "lendo" suas falas - em particular nos programas
feitos em homenagem aos regimentos de infantaria -, a impressão que fica no
ouvinte é de que eles se comunicam com "Chico" de forma aberta e
direta.
Para Francisco
Ferraz, as gravações ajudam a traçar um perfil mais nítido dos pracinhas.
"Esse perfil é
um dos pontos sobre o qual menos temos informações, a documentação da FEB não é
muito pródiga nisso. Em vários momentos (nas gravações), há o cuidado de se
perguntar o nome e a origem do soldado, a cidade de onde vem, o que ele fazia..."
"Nos anos
1940, o Brasil era muito diferente, tínhamos uma população pouco alfabetizada.
Dados estatísticos indicam que, apesar de restrições do Exército, 6% dos
soldados eram analfabetos. Quando você vê essa gente simples, que enfrentou
temperaturas que nunca tinha enfrentado, nunca havia treinado para combater em
montanhas - bem diferente a combate em terra plana -, vê que esses jovens
pertencem ao coração do povo brasileiro, no sentido de sua extração."
Vinicius Mariano de
Carvalho aponta para a riqueza "fabulosa" das gravações do
expedicionários fazendo música. "Nos dá a dimensão da expressão humana
musical que esses soldados estão encontrando e fazendo no meio do campo de
batalha".
Hallawell e Farley
gravaram 16 músicas em pelo menos quatro locais diferentes na Itália. Treze
dessas canções, em sua maioria sambas e marchinhas, foram compostas por
pracinhas.
"Música e
guerra andam a par e passo", diz Carvalho. "Ela exerce uma função
catártica incrível."
"A FEB tinha
uma banda de música, formada por cerca 60 músicos. Essa banda se desmembrava em
pequenos grupos para tocar em acampamentos e circular com mais facilidade. Uma
delas era a orquestra de jazz, formada pelo pessoal do regimento de São João
del-Rei (o 11º), quase imitando uma big band americana."
As orquestras
militares eram comuns na Segunda Guerra. O conhecido músico americano Glenn
Miller dirigiu a banda da Força Aérea americana na Europa - e morreu em um
suposto acidente quando seu avião desapareceu em um voo de Londres a Paris em
dezembro de 1944.
Um dos programas
diz, entretanto, "ser interessante notar que os brasileiros são os únicos
de todos os combatentes na Itália que escrevem suas próprias canções".
Carvalho diz ser "difícil saber" se a afirmação procede, mas que os
pracinhas fizeram na Itália "o que se fazia no Brasil, com incorporação de
termos em italiano, com narração do cotidiano que eles estão vivendo".
"É uma rica
transposição de uma vivência musical do Brasil para lá", diz o
pesquisador, salientando "a grande relação de mútua troca" entre
brasileiros e italianos.
Não se ouve a
palavra "alemão" nos sambas. Ouve-se "tedesco" - como nos
sambas Tedeschi Portare Via ou Tedesco Levante o Braço. "Ou
'paúra', em vez de 'medo'."
"Há um fator
que não podemos negligenciar dessa união, que é o catolicismo", pondera
Carvalho. "A Itália é extremamente católica, o Brasil é eminentemente
católico. É comum a narrativa de famílias italianas que abrigavam os
brasileiros, compartilhando o que tinham na mesa, rezando o terço juntos."
"Outra coisa é
a facilidade da língua. De todo o contexto do 5º Exército (americano, ao qual a
FEB se juntou) e seus aliados, um grupo extremamente multicultural - com
indianos, poloneses, neozelandeses, americanos, ingleses, canadenses - a única
língua neolatina é o português. O entendimento foi facilitado por essa raiz
comum na língua."
As composições
próprias, segundo Mariano de Carvalho, em sua maioria "são músicas
humorísticas, ironizando os alemães ou louvando as batalhas que fizeram".
Dessas, ele destaca Onde Vi Muito Tedesco, uma embolada que descreve passo
a passo a tomada de Monte Castello. "É uma música fantástica. Narra
detalhadamente as linhas de defesa, o avanço da tropa, a aviação 'que criou
muita confusão', o major Syzeno Sarmento, comandante de um os batalhões... e
assim vai."
As exceções
são O Morto Vivo, uma surreal conversa entre um soldado e um cadáver, o
emocionante samba Lembrei ('Se algum dia eu voltar/ jamais eu hei de
pensar/ nas crises que eu passei/ pela vitória da pátria que tanto amei/ E será
nobre dizer/ quando meu filho crescer/ a história de seu pai/ que com muito
sacrifício/ buscou em seu benefício/ a vitória e a paz...), composto por um
soldado morto em Monte Castello, Alcebíades Sodré, e apresentado pelo grupo de
jazz da FEB no show de variedades em Alessandria.
"É um samba
bem dramático, dolente, como se (o autor) estivesse prevendo que fosse
morrer", diz Mariano de Carvalho.
·
Menosprezo
Os especialistas
ouvidos pela BBC News Brasil acreditam que essas gravações podem ajudar a
reverter o que Mariano de Carvalho chama de "tendência a menosprezar a
participação brasileira na Guerra".
Francisco César
Ferraz diz que essa reversão já está em curso há alguns anos, e que as
gravações "vêm em hora oportuníssima".
"Durante muito
tempo, a historiografia universitária, que é a que dita os tópicos que serão
valorizados (no ensino escolar de História do Brasil, por exemplo), desprezou a
participação brasileira na Segunda Guerra."
Uma explicação para
esse "desprezo" seria o fato "de parte da cúpula do golpe de
1964 ter pertencido à FEB". "Há essa associação, a meu ver errada,
entre militares da FEB e militares que patrocinaram o regime militar. Na FEB
havia de tudo. Havia células comunistas dentro da FEB. Dois dos dirigentes
nacionais do PCB pertenceram à FEB, Salomão Malina e Jacob Gorender."
"No últimos
dez anos houve um volume crescente de interesse pela participação na FEB e na
FAB (Força Aérea Brasileira, que também esteve na Itália). E isso começou a
repercutir no material didático. O número de documentários sobre a FEB e a
participação do Brasil na Segunda Guerra aumentou bastante."
"Provavelmente
é uma questão geracional. A geração mais jovem não tem o ranço, aquele rancor
contra as Forças Armadas, da geração anterior."
Um exemplo da
retomada das produções sobre o assunto são os livros (1942: O Brasil e sua
Guerra quase Desconhecida e Minha Segunda Guerra) e documentários (1942: O
Brasil e sua Guerra quase Desconhecida, Um Brasileiro no Dia
D e O Caminho dos Heróis) de João Barone, baterista dos Paralamas do
Sucesso, que se interessou pela Segunda Guerra Mundial em parte por seu pai ter
sido pracinha.
"Todo mundo
que toma conhecimento desse assunto fica surpreso, impressionado com o que
aconteceu, com os fatos que levaram o Brasil a entrar na guerra, se comove e se
emociona", conta.
Quando conversou
com a BBC News Brasil, Barone ainda não tinha ouvido as gravações de Hallawell
- das quais conhecia apenas "algumas coisas que circulavam pela internet,
aquela gravação do Hino Nacional sendo cantado em Pisa, algumas músicas".
Mas disse que
"está todo mundo curioso para ouvir isso, é um material
preciosíssimo".
A participação na
Segunda Guerra e o contexto em que ela se deu "foi uma experiência tão
valiosa do nosso povo", ressalta.
"É muita coisa
interessante que ajuda a explicar o Brasil de hoje."
·
Experiência
e espírito de corpo
De fato, é difícil
não se surpreender com a jornada dos pracinhas e como ela se encaixa na
história recente do país. A aproximação com os EUA se consolida durante a
guerra, com os acordos entre Getúlio Vargas e o então presidente americano,
Franklin D. Roosevelt.
O Brasil permite a
instalação de bases militares (notadamente em Natal - RN), promete fornecer
munição e borracha e envia soldados para lutar contra os alemães. Em troca, os
EUA bancam a criação da Companhia Siderúrgica Nacional com a construção da
usina de Volta Redonda, o "marco zero da nossa industrialização",
como diz Barone.
Além disso, os EUA
treinaram e armaram os soldados brasileiros na Europa - ajudando, talvez
involuntariamente, a criar o que muitos viram como um "monstro"
indesejado no Brasil.
Ao final da guerra,
os mais de 24 mil expedicionários compunham uma força militar sem rival no
país. Tinham experiência de combate, armas e um invejável espírito de corpo.
Não à toa, foram
desmobilizados ainda na Europa. Após os desfiles no Rio de Janeiro, onde foram
saudados como heróis, tiveram de retornar imediatamente às vidas que tinham
antes. Francisco Ferraz explica que havia um grande receio, tanto no governo
como na oposição e nos quartéis, com o possível engajamento dos pracinhas nos
eventos políticos do país.
"Eles queriam
despolitizar os pracinhas o quanto antes. A história já havia dado os exemplos
dos soldados russos que voltaram da Primeira Guerra e acabaram apoiando os
bolcheviques, e dos militares alemães que retornaram da mesma guerra e moldaram
as bases do Partido Nazista."
"A FEB teve
células comunistas", lembra Ferraz. "Vargas tinha promovido uma abertura
no fim de seu governo. Ele não apenas libertou líderes comunistas como (Luis
Carlos) Prestes, como também permitiu a legalização do Partido Comunista."
"Era um clima
político bastante conturbado. E nos quartéis, os oficiais que haviam ficado no
país receberam com hostilidade os que voltaram condecorados da Itália. Eles
temiam ser preteridos por oficiais da FEB. A cúpula militar também não ajudou.
Muitos ex-combatentes foram transferidos para bases distantes."
Outra história
pouco conhecida é a dos problemas de adaptação que muitos ex-combatentes
sofreram. Muitos voltaram com traumas e neuroses e tiveram grande dificuldade
para retomar suas vidas. O governo prestou pouca ajuda - ao contrário do que
ocorreu nos EUA, onde houve um plano de reintegração com vários tipos de apoio
aos soldados que regressaram da guerra.
Logo esquecidos -
e, aos poucos, perdendo cada vez mais espaço nos livros de História do Brasil
-, os pracinhas mantiveram acesa a chama do espírito de corpo com associações
de veteranos. Essas foram fundamentais na luta por benefícios como uma pensão,
aprovada apenas em 1988 - 43 anos depois do retorno -, chegando tarde demais
para muitos ex-combatentes.
Fonte: BBC News
Brasil
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