Monte Castelo, 80
anos: 'O diabo é testemunha de que não foi um passeio'
Há mais de 15 dias
sem tomar banho, cortar o cabelo ou fazer a barba, o jornalista e escritor Joel
Silveira, na época com 26 anos, só pensava em viajar para Roma.
Queria gozar uns
momentos de paz e sossego, admitiu na crônica O Castelo é Nosso, publicada no
livro O Inverno da Guerra (Objetiva, 2005).
Foi desaconselhado
pelo major Souza Júnior: "Acho que você deve adiar a viagem", sugeriu
o oficial ao repórter do Diários Associados. "Nas próximas horas, a coisa
aqui vai esquentar". E esquentou mesmo. Era terça-feira, 20
de fevereiro de 1945.
O dia seguinte
começou cedo: 5h. Joel Silveira e os demais correspondentes tomaram um café
apressado, encheram os bolsos de chocolate e saltaram em seus jipes – Rubem
Braga, do Diário Carioca, e Francis Hallawell, da BBC, estavam
em Nápoles, à espera do desembarque de mais um pelotão da Força Expedicionária
Brasileira (FEB).
Naquele 21 de fevereiro
de 1945, Silveira assistiu à tomada de Monte Castelo, o "pesadelo maior da
FEB", de um lugar privilegiado: o Posto Avançado do general Cordeiro de
Farias.
Silveira chegou ao
posto de observação da FEB por volta das 8h. A operação tinha começado cerca de
duas ou três horas antes. Munido de uma luneta, acompanhou a ofensiva do 1º
Regimento de Infantaria, o Sampaio. Um batalhão, comandado pelo major Olívio
Gondim de Uzeda, seguiu pela esquerda. Outro, conduzido pelo major Sizeno
Sarmento, avançou pelo centro. E um terceiro, coordenado pelo tenente-coronel
Emílio Rodrigues Franklin, atacou pela direita. O objetivo da operação era um
só: tirar o Castelo das mãos dos alemães até o fim da tarde.
A uns 500
quilômetros dali, Braga e Hallawell foram receber os homens do 4º Escalão da
FEB. Quando soube que as tropas americanas tinham tomado o Monte Belvedere,
Braga cochichou para Hallawell: "Sou capaz de apostar como aqueles diabos
brasileiros estão atacando outra vez o Monte Castelo. E, dessa vez, vai ver que
eles tomam. E nós aqui em Nápoles", lamentou em O Castelo Caiu, do livro
Crônicas da Guerra na Itália (Record, 2014).
Se Silveira só se
referia ao Castelo como "pesadelo", Braga relata que o monte era
conhecido como "amaldiçoado".
Belvedere e Castelo
eram dois dos montes que, entre outros, como Gorgolesco, La Torraccia e
Ronchidos, formavam uma cordilheira em poder dos alemães. Para chegar à cidade
de Bolonha, os aliados tinham que cruzar a Rodovia 64. Não adiantava conquistar
esse ou aquele morro. Toda a cordilheira tinha que ser ocupada.
"Se a FEB não
tivesse vencido, os aliados teriam dificuldade para romper a resistência
alemã", afirma o historiador Carlos Daróz, doutor em História Social pela
Universidade Federal Fluminense (UFF) e coautor do livro A História do Brasil
nas Duas Guerras Mundiais (Unesp, 2019). "A conquista de Monte Castelo
consolidou a FEB como uma força combatente respeitada e marcou sua contribuição
decisiva para a vitória dos aliados na Itália".
·
Direto
do front
Em garranchos
indecifráveis, Silveira anotou os principais acontecimentos do dia: "Sem
dúvida alguma, o instante mais sensacional aconteceu às 16h20 quando a
Artilharia Divisionária concentrou seu poder de fogo sobre Castelo",
registrou. "No céu de inverno, a noite já se prenunciava, de forma que se
notavam nitidamente as chamas que surgiam a cada explosão dos obuses. Chamas
altas que o binóculo me mostra tão próximas".
Em outro trecho,
acrescentou: "Às 17h45 o general Cordeiro de Farias afasta-se da luneta,
volta-se para mim e diz: 'Castelo está praticamente conquistado'".
O tão esperado
grito de vitória veio às 17h50: "Estou no cume de Monte Castelo!",
avisou, pelo rádio, o major Franklin. Ao lado de Silveira, o general Cordeiro
sussurrou, quase incrédulo: "O Castelo é nosso".
"Não sei que
preço pagamos, em mortos e feridos, por essa vitória", escreveu Braga.
"Mas gostaria de estar na frente na hora em que correu de telefone em
telefone, de boca em boca, a notícia preciosa: 'O Castelo é Nosso!'".
"Os
correspondentes estavam sujeitos aos mesmos infortúnios que os soldados. Podiam
ser alvejados por franco-atiradores ou cair em armadilhas com explosivos",
descreve o jornalista e historiador Helton Costa, autor de Crônicas de Sangue:
Jornalistas Brasileiros na Segunda Guerra Mundial (Motres, 2019).
"Joel Silveira
sofreu um acidente quando o jipe em que estava saiu da pista, a caminho de
Roma, em uma noite muito escura. Não se machucou, mas ficou assustadíssimo. Já
Raul Brandão, do Correio da Manhã, quebrou a bacia em um capotamento. Usou
bengala pelo resto da vida e desenvolveu estresse pós-traumático".
"De vez em
quando, alguém ainda me pergunta: 'A vida de vocês, jornalistas, lá na guerra
da Itália, foi uma sopa, não foi?'", escreveu Joel Silveira. "Até
anos atrás, a pergunta me irritava profundamente. Mas agora pouco ligo.
Limito-me a pensar: 'O diabo é testemunha de que não foi um passeio'.
"Medo, frio e
aquele constante odor de sangue velho e óleo diesel, que é o cheiro da guerra.
E mais o tédio dos longos dias e noites em locais inviáveis, sitiados pela
neve. Onde a sopa? Repito: o diabo, que também estava lá, é testemunha de que
não foi um passeio".
·
Descida
aos infernos
A tomada de Monte
Castelo não se resumiu a um único dia: 21 de fevereiro de 1945. Começou no dia
24 de novembro de 1944 e se estendeu até 21 de fevereiro de 1945. Foram, ao
todo, quatro ofensivas, todas malsucedidas: a primeira aconteceu no dia 24 de
novembro de 1944 e a segunda, já no dia seguinte, 25. O terceiro ataque ocorreu
no dia 29 de novembro e o quarto, no dia 12 de dezembro.
Com exceção do
quinto e último, Rubem Braga cobriu todos os anteriores. "O que mais
impressionou os nossos homens foi a fúria do ataque do alemão, o desprezo do
inimigo pela vida: os nazistas avançavam sob rajadas de metralhadoras, e continuavam
a avançar sem dar importância aos que tombavam atingidos", escreveu numa
crônica.
Das quatro
tentativas, a mais violenta foi a do dia 12 de dezembro de 1944. "Sob
intenso fogo da artilharia alemã e sem apoio técnico adequado, a FEB enfrentou
grandes dificuldades e foi obrigada a recuar", analisa Carlos Daróz.
"Esse revés gerou questionamentos sobre a capacidade da tropa brasileira e
evidenciou a necessidade de um planejamento mais coordenado".
Quando uma ofensiva
fracassava, as tropas tinham que recuar, socorrer os feridos, contabilizar as
baixas, recompor as unidades e planejar uma nova investida.
Território hostil
Outro adversário
impiedoso era o frio intenso. Os pracinhas tiveram que enfrentar um dos
invernos mais rigorosos dos últimos 50 anos, com direito a forte chuva e denso
nevoeiro.
"Por diversas
vezes, a temperatura chegou a 20 graus negativos", afirma o historiador
Dennison de Oliveira, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) e professor de História da Universidade Federal do Paraná
(UFPR).
Os pracinhas
combatiam o frio como podiam. Uns colocavam palha e jornal dentro das galochas
para manter os pés aquecidos. Outros dormiam com o cantil entre as pernas para
impedir o congelamento da água.
O exército de Hitler
tinha outro aliado: a geografia montanhosa. Para conquistar o Monte Castelo, os
brasileiros tiveram que subir a montanha. Do alto dela, os alemães,
entrincheirados, tinham liberdade tanto para observar o inimigo quanto para
abrir fogo contra ele.
"A região
tinha um aspecto desolador porque os nazistas derrubaram a vegetação para
monitorar o invasor", explica o pesquisador Israel Blajberg, diretor da
Casa da FEB. "Os aliados chegaram a usar máquinas de fumaça para camuflar
o avanço das tropas. Mas o resultado foi limitado".
Na opinião do
historiador Cesar Campiani Maximiano, doutor em História Social pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Barbudos, Sujos e Fatigados:
Soldados Brasileiros na Segunda Guerra Mundial (Grua Livros, 2010), um dos maiores
adversários da FEB foi a necessidade de adaptação.
"Os
estrategistas sabem que um exército nunca se prepara para a guerra do futuro,
mas, sim, para a última guerra. Tão logo o contingente brasileiro se adequou
aos parâmetros do combate na Itália, conseguiu executar suas missões em pé de
igualdade com seus aliados", afirma.
·
Entre
mortos e feridos
Segundo o Relatório
Final de Operações, o 1º Regimento de Infantaria teve, ao todo, 414
"baixas em combate", incluindo mortos (74), feridos (319) e desaparecidos
(21).
"Pelas
características de uma operação ofensiva, onde o atacante avança em campo
aberto, exposto à ação do inimigo, em comparação a uma situação defensiva, onde
o defensor está em um abrigo, é possível que o primeiro sofra mais 'baixas' que
o segundo", explica o coronel Cláudio Skora Rosty, pesquisador do Centro
de Estudos e Pesquisas de História Militar do Exército (CEPHiMEx). "Isso
não quer dizer que o atacante não vença o confronto. Pode isolar o defensor e
obrigá-lo a se render".
Não se sabe ao
certo quantos alemães morreram na tomada de Monte Castelo.
"No ataque a
fortificações, as baixas entre quem está na ofensiva são sempre mais altas. A
proporção é de de 3 a 4 atacantes para cada defensor", calcula Campiani.
"Nas praias da Normandia, também morreram mais soldados aliados do que
alemães".
Setenta dias depois
da tomada do Monte Castelo, os expedicionários brasileiros puderam, finalmente,
comemorar o fim da guerra. No dia 2 de maio de 1945, as tropas alemãs que
combatiam na Itália anunciaram sua rendição
Fonte: BBC News
Brasil
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