Eventos como a FLIP estão massacrando
trabalhadores e explorando as editoras
A Festa Literária Internacional de Paraty
(FLIP) anunciou essa semana a data da sua próxima edição. O evento, no entanto,
vem sofrendo retrocessos democráticos nos últimos anos, sendo marcado pelo
achacamento das editoras independentes e a alta exploração dos trabalhadores.
Na edição de 2024, organizadores chegaram ao ponto de pedir em contrato para que as casas
parceiras, realizada pelas editoras, não vendessem livros – mesmo tendo
que pagar caríssimo para ser uma “casa parceira” do evento e ter que alugar um
imóvel na cidade histórica. No final, a “solução” encontrada foi obrigar as
editoras a pagarem para poder vender seus livros, gerando uma
sobre-taxa nas costas de quem sustenta durante todo o ano o mercado
editorial.
Outras editoras que compraram estandes foram
surpreendidas no
dia do evento com uma mudança repentina do local combinado. Além disso, ano passado
foi marcado pelo vácuo causado pela ausência de diversas “casas parceiras”,
como a Festa Literária Pirata das Editoras
Independentes (FLIPEI),
um dos pontos mais efervescentes e democráticos do evento, que tinha se consolidado com maior casa parceira
nos últimos anos.
Devido a falta de apoio e ataques de bolsonaristas, a FLIPEI, que tem
o “P” de pirata, expandiu suas ações para São Paulo em 2024.
A elitização do evento e a precarização do trabalho não
é uma exclusividade da FLIP. O Burning Man, um dos eventos culturais mais
icônicos dos EUA, passou pelo mesmo processo por não conseguir se reinventar em
momentos de crise durante os anos, acabando por recriar os males do capitalismo que o evento se
propôs,
inicialmente, a evitar e debater. A decadência do Burning Man provou que quando
“liberdade” e “inclusão” são desconectadas da democracia, os processos
acabam desembocando no elitismo.
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Trabalhadores na FLIP: o lado que ninguém vê e fala
Estive presente na última edição da FLIP.
Enquanto turistas de diferentes partes do mundo rodopiavam pelo centro
histórico da cidade, com uma vasta programação de atrações, palestras e debates
durante o evento, trabalhadores do comércio dobravam suas escalas com um
sentimento misto de alívio – pela possibilidade de incremento de renda – e
exaustão – devido à dupla ou tripla jornada.
Como parte de um ciclo vicioso, a FLIP, bem como outros
eventos e empreendimentos que se alimentam financeiramente do turismo da
cidade, reforça o modelo exploratório que continua reproduzindo a mentalidade
colonizadora já conhecida historicamente.
Quanto ganham os donos do evento? Quanto ganham os
empresários proprietários de restaurantes e pousadas, geralmente forasteiros
ricos que utilizam mão de obra barata para encherem os bolsos?
Embora essas informações não sejam divulgadas ou
acessíveis a todos, não há dúvidas sobre o modelo de manutenção das
desigualdades que parece gritar em Paraty, até mais que em outras cidades do
Brasil, por conta de todas as particularidades do território, que inclui lutas
por terra e mar, entre povos originários – caiçaras, indígenas e quilombolas –
e as oligarquias nacionais – lembrando que a família Marinho, dona da Rede
Globo, tem casa na região. Sem falar na relação conflituosa de pelo menos 40
anos entre poderosos do condomínio de luxo no bairro de Laranjeiras e os
caiçaras do entorno, que enfrentam constrangimentos, ameaças, dependência e até
restrições de passagem.
Por outro lado, basta conversar com alguns
trabalhadores, entre profissionais do atendimento ao público e montadores do
evento para saber o quão precarizadas são suas condições de trabalho.
De acordo com um garçom que acumula 6 anos e meio de
trabalho no centro histórico da cidade, os valores e condições até variam, mas,
no frigir dos ovos, a média paga para a classe trabalhadora sempre fica em
cerca de R$ 12,50 a hora, com 8 horas ou mais de pé, atendendo mesas.
Além disso, esses profissionais relataram a percepção
de que o público da FLIP é ainda mais “exigente”. Segundo eles, “são muito
impacientes, querem trocar de mesa toda hora porque se sentem com pouco espaço
e não entendem que os lugares estão mais cheios e que, nem sempre, a capacidade
de atendimento consegue suprir suas demandas com a agilidade que eles esperam”.
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Da ponte para cá
Éno Areal que beira o Rio Perequê Açu, do
lado oposto ao centro histórico, que editoras independentes, artistas e
artesãos do Coletivo SOMAR de Economia
Solidária e Ocupa Parati também
reclamaram do cansaço extremo e do baixo número de visitantes, principalmente
por conta da ausência da FLIPEI, que levava grandes atrações e mais de 60
editoras independentes para a praia do Pontal desde 2018.
“O movimento de vendas em 2024 não foi tão bom. A
FLIPEI fez falta, foi muito fraco. Fiz cinco vezes menos do que em 2023 com a
FLIPEI aqui”. Foi o que relatou Lelê Costa, do Quiosque Tonga da Mironga, que
já participou das edições anteriores.
Em nome das 57 famílias do Ocupa Paratii e do Coletivo Somar, Nataly Arantes contou que
precisaram lançar uma vaquinha on-line para custear a sonorização de uma
programação intensa, que inclui lançamentos de livros, oficinas de arte
gratuitas e shows de parceiros.
Apesar da falta de apoio e valorização da FLIP e da
Prefeitura da cidade para este público local, Nataly conta que a resposta da
comunidade foi emocionante. “Os artistas que se apresentaram vieram por amor,
pois não tivemos condições de oferecer o cachê digno que eles realmente
merecem”. Ainda assim, conseguiram oferecer uma ajuda de custo.
A falta de iluminação e de estrutura foram outros pontos
sublinhados pelos trabalhadores. Ainda que tenham encantado quem por ali
passava, grupos locais como o Tambor de Crioula e Mutuan se apresentaram em
chão de terra e brita, que virou lama nos dias de chuva, já que as tendas
atendiam a um espaço reduzido, incapaz de comportar atrações e público ao mesmo
tempo.
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Falta de debate sobre racismo na obra de João do Rio
Oautor homenageado da FLIP em 2024 foi o
jornalista, dramaturgo e cronista João do Rio. Claudia Alexandre, do site Alma Preta notou que, apesar
de o autor ter produzido narrativas que reforçam o racismo biológico e o
cientificismo, descrevendo a perseguição da elite carioca à população preta,
das macumbas e candomblés, os debates oficiais do evento não abordaram o
assunto.
“As memórias de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos
Coelho Barreto (1881-1921), nome verdadeiro do homenageado, citadas nas poucas
mesas que debateram sobre sua obra, reforçaram a imagem de um homem
extraordinário das letras, amado, odiado e cercado de contradições. A ausência
de debates específicos sobre o tema do racismo e do racismo religioso na obra
do autor, aliado ao sucesso de vendas, permite questionar de que forma em pleno
século XXI narrativas que nada contribuem com as pautas da atualidade podem
circular livremente após um evento literário de tanta importância”, critica a jornalista.
Claudia lembra também que quem mais poderia pensar
sobre os conflitos de João do Rio com sua origem negra e suas narrativas
racistas em relação às práticas religiosas negras não foi convidado para o
evento. Autor da única biografia do homenageado, o jornalista João Carlos
Rodrigues chegou a lamentar nas suas redes sobre o deslize da curadora, que não
o chamou para a programação.
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A falta de letramento antirracista da FLIP
Um dos casos que prova esse desleixo foi a
oficina de mediação de leitura levada pela organização, meses antes do evento,
por meio de uma parceria da FLIP com a Caixa Econômica Federal. De acordo com
uma das educadoras participantes da oficina que também atua como mediadora de
leitura para o público infantil, a curadora foi relapsa com os recortes de
gênero e raça, levando, em sua maioria, livros de autores brancos, mantendo à
margem publicações de mulheres, pretos e indígenas.
“Precisei reclamar sobre a garantia de representação
feminina no que ela estava propondo. Mediar é ato ético e político e consegui
contar o dobro de citações de referências masculinas. Pontuei que aqui
insistimos em referências femininas no trampo de mediação com as crias,
sobretudo mulheres não brancas”, conta ela.
Militante da educação afro-indígena, a educadora contou
ainda que em 2023 também precisou colocar o dedo na ferida racista da FLIP.
Convidada para mediar uma mesa por uma das casas parceiras, descobriu que não
havia cachê e questionou: “como vocês querem dizer que estão valorizando a luta
antirracita se, ao mesmo tempo, chamam uma pessoa negra para trabalhar de graça
para compor o evento de vocês?”
Caso parecido que ganhou as redes sociais foi o de Verônica
Bonfim, artista negra independente, escritora com dois livros publicados,
cantora, compositora e atriz.
Em sua conta no Instagram, Verônica expôs que recebeu
um convite para abrir a programação da Casa Azul (a biblioteca comunitária da
FLIP que funciona durante todo o ano em Paraty e integra o Educativo FLIP),
quando, para a sua surpresa, descobriu que, além de não receber cachê pelo show
de abertura, também não teria suporte para os custos básicos como deslocamento
do Rio de Janeiro, acomodação e alimentação durante sua estadia na Festa
Literária.
Ao saber que atuaria de graça, ela conta que,
educadamente, de forma didática e incisiva criticou a maneira como convites são
estendidos a artistas negros e à comunidade LGBTI+ em eventos como a FLIP,
considerando-os afrontosos. “Em 2024, não cabe mais convidar esses grupos sem a
devida sensibilidade. Essa é uma percepção equivocada de uma representante da
FLIP em relação à luta antirracista”, disse.
“A gente sabe que a FLIP recebe muita grana para fazer
o evento, portanto, esse apoio deveria se traduzir em práticas mais respeitosas
e conscientes”, conclui.
Segundo ela, após a exposição do fato em suas redes,
muitos intelectuais negros da linha de frente da luta antirracista, lhe
parabenizaram pela coragem, relatando que também já passaram diversas vezes por
situações semelhantes na Bienal do Livro, por exemplo.
Apesar de ter sido procurada pelo coordenador geral da
FLIP para ser ouvida, Verônica continua sem resposta sobre o questionamento que
fez a ele: “o que vocês vão fazer em relação a isso?”
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Papo reto na Casa da Favela
Felipe Eugênio, editor, fundador do Bando
Editorial Favelofágico e coordenador da Periferia Brasileira de Letras (PBL),
compartilhou suas experiências na FLIP, destacando que esta é a segunda vez que
participa do evento. Como alguém profundamente envolvido no mundo da
literatura, especialmente como editor na cena periférica nos últimos dez anos,
ele se sentia hesitante em comparecer nas edições mais antigas. “Não vinha nos
outros anos porque, apesar de muita vontade de estar na FLIP, supunha que seria
muito frustrante estar presente apenas como espectador e sem ver representados
os projetos coletivos com sujeitos periféricos, não fazia sentido”,
explicou.
No entanto, decidiu participar nessas duas últimas
edições com a Casa da Favela, uma iniciativa da Agência de Notícias das
Favelas, liderada por André Fernandes, que convidou Felipe a se juntar ao
evento. Felipe coordena a PBL, uma iniciativa da Fiocruz, que reúne coletivos
literários atuantes em territórios periféricos de dez estados brasileiros,
promovendo bibliotecas comunitárias, saraus e slams. “Em rede, disputamos
políticas públicas”, afirmou.
Felipe destacou momentos importantes da Casa, como a
participação de Pedro Cardoso na leitura do livro Viela Ensanguentada, de Wesley Barbosa, e
o lançamento do livro Marielle Franco,
de Priscila Britto, organizado pela editora Rubra. “Esse lançamento foi
antecipado na imprensa e percebemos que isso levou um público que talvez não
conheceria a casa”, comentou Felipe, ressaltando a importância do apoio
midiático para atrair novos públicos.
Em sua análise sobre a FLIP, ele destaca que o evento
continua sendo um espelho do mercado editorial no Brasil, refletindo as
dinâmicas do circuito literário, englobando desde autores e editoras até o
público consumidor.
“A literatura de mercado é composta por todo o circuito
do livro, com autores, editoras, livreiros, intermediários, que fazem a chegada
do livro aos lugares, distribuidores e leitores”, explica Eugênio. Ele observa
que o principal público deste circuito é a classe média e média alta, para quem
o livro muitas vezes transcende sua função primária.
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O livro como símbolo de status
Felipe argumenta que, para este público, o
livro se torna, muitas vezes, um símbolo de status e identidade. “É difícil
fazer essa separação de quando a relação com o livro te acompanha a vida
inteira e até que ponto ele se torna também um pouco de um estandarte, de quem
você quer parecer ser para o mundo”, pondera.
Esta relação com o livro como objeto de fetiche se
manifesta claramente nas ruas da FLIP, que ele descreve como “um desfile
fashion”. No entanto, ele nota uma discrepância entre a aparência e o conteúdo
do evento: “Você percebe que os discursos esbarram nos limites do discurso
classe média, entre o alarmismo e o pessimismo, mas sem nenhuma grande conexão
com mudanças práticas ou com movimentos sociais”.
Apesar de reconhecer tentativas de diversidade, Eugênio
afirma que a FLIP ainda é “muito branca”, refletindo as desigualdades
socioeconômicas do país. Ele atribui isso, em parte, aos altos custos de
participação no evento. Por isso, vê a Casa da Favela e a Poéticas Negras como
um contraponto importante. Ele também elogia mudanças recentes na gestão do
evento, como a abertura da grande tenda ao público, dando acesso às discussões
da programação principal, com valores, muitas vezes inviáveis para o
trabalhador comum.
Por fim, Eugênio sugere que o futuro da FLIP depende de
sua capacidade de equilibrar sua natureza comercial com uma representação mais
ampla e diversa da literatura brasileira. Ele menciona iniciativas como
residências artísticas para escritores de origem periférica como passos na
direção certa, concluindo que “é possível produzir e forjar também essas
condições materiais e objetivas para que autores de origem periférica também
consigam ter uma boa caixa de ferramentas para a produção de seus escritos e
acesso à publicação editorial”.
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Debate fraco e festas flopadas?
Além dos comerciantes e trabalhadores de
editoras independentes que sentiram no bolso a falta da FLIPEI, bastava um giro
pelo centro histórico pelas 23h para ouvir os murmurinhos desgostosos sobre a
falta de opções de festas: “A FLIPEI ia estar bombando a essa hora”, “Nada a
ver não ter FLIPEI”, “Pra onde a gente vai já que não tem FLIPEI?”.
Quem corroborou com essa sensação foi um DJ local que
já participou de outras quatro edições da FLIP como DJ e assistência técnica de
produção. “Algo que eu possa falar é que essa FLIP foi flopada, com um vazio
imenso que a FLIPEI deixou”, comenta.
No quesito festa, as bolas da vez foram a Casa da Favela e a Poéticas
Negras, ao som de funk, samba, jazz e música de terreiro.
Além de cobrir a lacuna do “fervo festivo” que a FLIPEI
deixou nas noites de FLIP, as duas casas foram as grandes responsáveis pelo
protagonismo negro e periférico de toda programação.
Fonte:
Por Maruscka Grassano, em Jacobin Brasil
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