segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Lier Pires Ferreira e Renata Medeiros: É de domínio público que Bolsonaro jamais nutriu apreço a democracia

O poder é inebriante. Ele faz de seus titulares seres todo-poderosos, intangíveis, como se fossem super-homens. São bajulados, adulados, enfim, tratados como verdadeiras potestades. Mas o poder é efêmero, e cedo ou tarde a fatura chega.

É o caso do ex-presidente Bolsonaro. Durante sua presidência, o “imbrochável” gozou das benesses do poder, tratado como o genuíno líder da direita conservadora, como defensor da pátria e da família, como o último bastião da moralidade. Nesta condição, sonhou materializar um golpe de Estado, pelo qual, em glória, seria reconduzido à presidência, cercado por honras militares e pelo amor de seus admiradores.

O sonho acabou! Derrotado nas urnas, Bolsonaro viu Lula regressar ao Planalto, passou a ser investigado pela Polícia Federal e, agora, denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), por tentativa de golpe de Estado.

As acusações são robustas. Segundo a PGR, Bolsonaro encabeça um núcleo golpista, também formado por raposas felpudas como os oficiais-generais Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Almir Garnier, os delegados Alexandre Ramagem e Anderson Torres, e o sempre presente Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do então presidente. Segundo a PGR, este núcleo tomava as principais decisões e moldava as ações a serem tomadas.

É de domínio público que Bolsonaro jamais nutriu apreço pela democracia. Já em sua vida na caserna, o futuro capitão-presidente foi useiro e vezeiro em tramar contra a ordem estabelecida. Posteriormente, em suas três décadas como parlamentar, proferiu despautérios como “Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção”, “Sou favorável à tortura” e “Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil”. Por fim, já na presidência, vociferou que “Quem decide se o povo vai viver em uma democracia ou ditadura são as suas Forças Armadas” ou “Só Deus me tira daqui”.

Segundo a PGR, Bolsonaro estava disposto a passar das palavras para a ação. Os crimes de organização criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado, dentre outros, que lhe são imputados, são graves. Eles são particularmente legitimados pelo discurso golpista que Bolsonaro alimentou desde 2021, quando passou a atacar sistematicamente a institucionalidade democrática, as decisões dos tribunais superiores e o sistema de votação eletrônica.

Há farta materialidade na denúncia da PGR. Da “minuta do golpe” à delação premiada de Mauro Cid, passando por gravações, conversas de WhatsApp, até chegar aos “acampamentos golpistas” ou o plano de matar Lula e Alexandre de Moraes, o Xandão, tudo teria a participação direta do capitão-presidente.
Em face da denúncia, as hostes bolsonaristas já se movimentam. Enquanto Eduardo Bolsonaro busca articular com os Republicanos uma investigação no Congresso Americano contra supostas ilegalidades cometidas por Moraes, Hugo Motta e Davi Alcolumbre, os novos presidentes da Câmara e do Senado, parecem trabalhar silenciosamente pela anistia em favor daqueles que participaram dos atos golpistas de 08 de janeiro. Além disso, a máquina de desinformação bolsonarista opera diuturnamente para deslegitimar a denúncia da PGR, desmoralizar o Supremo e enfraquecer o governo Lula, cuja crise de popularidade é preocupante.

De todo modo, o destino de Bolsonaro está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). Afinal, cabe à Suprema Corte decidir se aceita a denúncia da PGR, transformando Bolsonaro e os demais indiciados em réus. Pela teor das denúncias, expostas em mais de 270 páginas, é provável que seja aberta uma ação penal. Do ponto de vista de um processo regular, talvez houvesse um prolongamento das decisões do STF. Todavia, tendo em vista o calendário eleitoral de 2026, é possível que tudo se precipite. E esse é o principal risco.

Como mostraram os processos da Lava-Jato, a sanha condenatória, além de potencialmente injusta, na medida em que cerceia a defesa dos réus, tende a produzir resultados jurídicos imperfeitos, posteriormente anuláveis. Além disso, o Sistema Judicial, das polícias ao Supremo, não pode ser utilizado como instrumento de persecução política, ainda que sob o argumento de defesa da democracia. Há que se ter reserva, há que se observar o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Réus, quaisquer que sejam, não podem ser julgados como se culpados fossem. Ninguém pode ser condenado pela mídia ou pelas redes sociais. A institucionalidade democrática exige prudência, para que o Direito caminhe com a Justiça, binômio vital para qualquer democracia.

 

¨      O Brasil vive uma ‘sinuca de bico’ mas há alternativas institucionais dentro da ordem democrática. Por Aurélio Wander Bastos e Lier Pires Ferreira

Entre 2018 e 2022, foi instituído no Brasil, de modo informal, um presidencialismo de novo tipo, parlamentarista - presidencialista, onde o primeiro-ministro é o presidente da Câmara dos Deputados e o Congresso executa grande parte do orçamento na forma de emendas parlamentares. De acordo com dados da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), desde 2020 a União já pagou ou empenhou cerca de R$ 35 bilhões, um valor exorbitante cuja destinação é incerta. Esse montante exclui outras repasses para o Legislativo, como o fundo partidário, cujo valor girou em torno de 5 bilhões somente em 2024.

Essa situação, cujas origens estão no segundo governo Dilma, quando o desgaste político que levou ao impedimento da presidente ampliou progressivamente a força do Congresso, foi consolidada na gestão Bolsonaro, instalando uma bomba-relógio que o atual governo não sabe como desmontar.

Um exemplo claro das dificuldades do atual governo ocorreu com o recente recuo quanto ao monitoramento do PIX.

A medida, correta do ponto de vista fiscal, visava a atualizar regras para o monitoramento de transações financeiras, para inibir fraudes e sonegação fiscal.

As novas regras fixavam um monitoramento de movimentações acima de R$5 mil para pessoas físicas e de R$15 mil para pessoas jurídicas, reproduzindo o que já ocorre, por exemplo, com os pagamentos que são feitos via cartão de crédito. Foi um caos!

A partir de postagens do deputado federal Nikolas Ferreira (PL/MG), um dos ícones da nova direita no Brasil, uma onda de desinformação varreu as redes sociais, colocando o governo contra as cordas.

Fake News apontavam para a tributação das transações via PIX, que prejudicariam principalmente microempreendedores e pequenos comerciantes, como barraqueiros, pipoqueiros e motoristas de aplicativos.

Em meio à onda de insatisfação, Lula publicou um vídeo esclarecendo que as novas regras não representavam novos tributos.

Ninguém acreditou.

Sob uma avalanche de críticas, replicadas por parlamentares, influenciadores e outros atores vinculados ao bolsonarismo e à direita brasileira, o governo recuou, revogando publicamente a medida com uma declaração lacônica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e do secretário da Receita Federal, Robson Barreirinhas. Em tempos de pós-verdade, a narrativa se impôs aos fatos.

O caso do monitoramento do PIX, principalmente por "fintechs", pois os bancos tradicionais já eram obrigados a prestar essas informações, mostra o custo da governabilidade.

Sem conseguir mobilizar a sociedade civil em torno de um projeto nacional e com um Congresso fisiológico e que lhe é avesso, Lula tem que negociar alianças frágeis, caso a caso, com grupos parlamentares de centro e centro-direita.

Nem mesmo o tradicional loteamento de ministérios e cargos públicos, outrora capaz de amalgamar forças políticas diversas e garantir a governabilidade, está funcionando. Ademais, posto sob a “espada de Dâmocles”, o presidente vive a eterna ameaça de um golpe parlamentar, como aquele que trouxe Temer ao poder.

Um dos aspectos mais perversos deste quadro é que os parlamentares, beneficiários únicos do garroteamento do Executivo, não desejam governar.

O parlamentarismo-presidencialista, ou parlamentarismo-orçamentário, permite ao Congresso controlar amplas parcelas do orçamento federal, mas não lhe traz os dessabores inerentes ao governo.

A denúncia-bomba de Nikolas Ferreira era um questionamento falacioso, político, de uma justa medida do governo, mas Nikolas é um deputado oposicionista, sem compromisso com a governabilidade.

Essa postura mostra a atual posição do Congresso em relação ao governo. É uma cômoda situação de autoridade sem responsabilidade, de bônus sem ônus.

Afinal, se o país for mal, a responsabilidade recairá exclusivamente nos ombros do Executivo.

Neste contexto, sob a batuta de Lira e Pacheco, bancadas ávidas por recursos públicos vendem caro a governabilidade, desfrutando com imensa liberdade as oportunidades do poder.

O Brasil vive uma “sinuca de bico”, mas há alternativas institucionais dentro da ordem democrática.

A sociedade precisa pressionar para que o Parlamento aprove uma Emenda Parlamentarista, nos moldes do que existe na Alemanha, Canadá e França, países de capitalismo maduro nos quais o controle dos congressistas sobre o orçamento e demais instrumentos de governo, inclusive as indicações de bancada para cargos nos ministérios e nas empresas públicas, corresponde à responsabilidade pelo bom desempenho do Executivo.

Não pode haver autoridade legítima sem a responsabilidade correspondente.

Todavia, para além da baixa adesão popular à causa parlamentarista, o Congresso Nacional procura preservar o presidencialismo de coalizão trazido pela Constituição Federal. Trata-se de uma manobra fora da história. Se a combinação de um sistema de representação proporcional com lista aberta, multipartidarismo e gestão presidencial funcionou relativamente bem até o primeiro mandato de Dilma, as crises posteriores, inclusive no que tange à polarização política expressa (mas não limitada) pelas figuras de Lula e Bolsonaro, deixou expostas fraturas que o sistema presidencialista parece incapaz de reparar.

O presidencialismo-parlamentarista hoje implantado deflui irresponsavelmente o poder político do Parlamento Federal, sem permitir um controle transparente do orçamento. Daí as atuais tensões entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, onde o ministro Flávio Dino tenta, a duras penas, estabelecer limites republicanos ao controle parlamentar sobre o orçamento e sobre o próprio governo.

O Brasil vive hoje uma situação anômala, na qual o presidente da república “reina”, mas não governa.

Em que pese as responsabilidades e atribuições conferidas pela própria Constituição, o poder de fato está nas mãos do Parlamento.

Lula, o presidente de plantão, virou um Rei na República. Tem o ônus da governabilidade, mas não dispõe do poder necessário para governar.

É imprescindível refundar o sistema de governo, preservando a Constituição Cidadã tão delicadamente tecida por homens da estatura política de Ulysses Guimarães e Bernardo Cabral. A história nos mostra que o presidencialismo é incompatível com a instabilidade política. É necessário estabilizar a República para evitar uma nova aventura autoritária que vá além dos abalos já provocados pelo 08 de janeiro ou pelo “Punhal Verde e Amarelo”.

O país almeja por uma governança responsável, capaz de responder aos desafios que vivencia. Está claro que o sistema atual está em colapso, exigindo medidas institucionais saneadoras. Ameaças golpistas emergem diuturnamente: não dá mais para esperar.

 

¨      Carlos Latuff: "Não estamos numa situação normal, pensem bem, é a extrema direita golpista"

O chargista Carlos Latuff fez um contundente desabafo durante sua participação no programa Bom Dia 247. Em meio a um debate sobre o papel da esquerda na atual conjuntura política do Brasil, Latuff ressaltou que o momento exige unidade e que os ataques sistemáticos ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva podem fortalecer o campo da extrema direita, que ele classifica como "golpista".

"Foi dito aqui, em outra oportunidade, sobre a tradicional divisão da esquerda. Realmente, às vezes parece que a esquerda só se une na cadeia, e há quem diga que nem na cadeia", ironizou. Para Latuff, a dispersão da esquerda enfraquece a resistência a setores que trabalham contra a soberania do país. "Eu quero ver mais veículos que defendam o trabalhador, que defendam o Brasil. Não quero ver um único veículo, quero ver vários, quanto mais melhor."

Latuff alertou que, diferente dos anos 1990, quando havia uma disputa entre o PT e o PSDB dentro de um jogo democrático, a conjuntura atual é mais grave. "Essa direita dialética e ilustrada que conhecíamos, como a representada por Fernando Henrique Cardoso, acabou. O que temos hoje é uma extrema direita golpista", afirmou, acrescentando que o Brasil passou "por um triz" para não cair novamente em um regime militar.

O chargista também criticou a influência de agentes externos na política brasileira e citou o bilionário sul-africano Elon Musk, dono do X (antigo Twitter). "Musk é o presidente de fato. Aquela cena do salão oval, com ele e o filho completamente à vontade, é a representação mais óbvia disso. O sujeito chega e manda o presidente eleito calar a boca, enquanto Trump fica ali, submisso", disse.

Para Latuff, essa influência de Musk não se limitará aos Estados Unidos. "Ele é desafeto do Alexandre de Moraes e fará tudo para intervir no Brasil. Diante disso, em vez de fortalecer o governo, o que se vê é um ataque sistemático e disputas intestinas dentro da própria esquerda, fazendo coro com a Folha de S. Paulo, com a GloboNews, com Musk e com a direita bolsonarista", criticou.

O chargista ressaltou que faz críticas ao governo Lula, mas frisou que a conjuntura atual é diferente e requer responsável posicionamento. "Eu posso falar isso com tranquilidade, porque sempre fiz críticas ao PT. Agora, ataques ininterruptos só ajudam o outro lado."

Em tom bem-humorado, rebateu as críticas de que estaria sendo "chapa-branca" ao defender Lula. "Não tem problema se me chamarem assim. Se quiserem, eu faço uma charge de um carrinho com uma plaquinha branca escrito 'Latuff'", brincou.

Latuff encerrou seu posicionamento alertando que não se pode reduzir a disputa entre Lula e Bolsonaro a uma falsa equivalência. "Dizer que 'Lula e Bolsonaro são a mesma coisa' é uma irresponsabilidade. Não dá", concluiu.

 

¨      Lições de um ensaio golpista. Por Paulo Moreira Leite

Desmontada em poucas horas, a mobilização golpista contra o governo Luiz Inácio Lula da Silva, no início da semana, encerrou-se como um desfile de militares incapazes de dizer o que estavam fazendo na rua. Foi melhor assim, obviamente.

Num país de persistente tradição de golpes militares, que deixaram marcas lamentáveis em nossa história, inclusive o 31 de março de 64, que criou uma ditadura de duas décadas, o ponto decisivo vem depois.

Consiste em saber o destino de oficiais e soldados que, afrontando as garantias inscritas na Constituição, resolveram mobilizar-se para subverter o regime democratico e ameaçar um governo eleito pelo voto do povo para impor mudanças à revelia da vontade da maioria.

Há duas hipóteses conhecidas. Devem ser localizados e julgados por um crime previsto na Carta de 1988. A outra possibilidade é que acabem livres, leves e soltos -- de mangas arregadas para novas atividades conspiratórias.

Não pode haver dúvidas a respeito. No artigo 142 da Constituição, se afirma que as "Forças Armadas são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, e que sua missão é defender a Pátria e garantir os poderes constitucionais".

No encerramento de um período histórico marcado por duas décadas de ditadura militar, a Carta também reafirma a primazia do poder civil. Estabelece o "Congresso Nacional tem o poder de fiscalizar os atos do Executivo e do Judiciário".

Pelas próprias características, a movimentação golpista da semana não pode ser entendida como pique-nique de marmanjos deslumbrados com fardas e armamentos.

Caracteriza-se, a rigor, como um ensaio à luz do dia para possíveis ações maiores e mais ambiciosas, traço relativamente comum num país onde um regime democrático tem sido levado a conviver com conspiradores em atividade permanente, ora em trajes civis, ora fardados.

Numa América do Sul que nos últimos anos se mostra povoada por um anacrônico retorno de regimes autoritários e democracias em risco, a reação do governo brasileiro deve ser vista como uma reação necessária -- e um bom exemplo a ser seguido por nossos vizinhos, onde as garantias democráticas começam a ser esmagadas por uma combinação de truculência e brutalidade que a região conhece muito bem.

Alguma dúvida?

 

Fonte: JB/Brasil 247

 

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