Lier Pires Ferreira
e Renata Medeiros: É de domínio público que Bolsonaro jamais nutriu apreço a
democracia
O
poder é inebriante. Ele faz de seus titulares seres todo-poderosos,
intangíveis, como se fossem super-homens. São bajulados, adulados, enfim,
tratados como verdadeiras potestades. Mas o poder é efêmero, e cedo ou tarde a
fatura chega.
É
o caso do ex-presidente Bolsonaro. Durante sua presidência, o “imbrochável”
gozou das benesses do poder, tratado como o genuíno líder da direita
conservadora, como defensor da pátria e da família, como o último bastião da
moralidade. Nesta condição, sonhou materializar um golpe de Estado, pelo qual,
em glória, seria reconduzido à presidência, cercado por honras militares e pelo
amor de seus admiradores.
O
sonho acabou! Derrotado nas urnas, Bolsonaro viu Lula regressar ao Planalto,
passou a ser investigado pela Polícia Federal e, agora, denunciado pela
Procuradoria-Geral da República (PGR), por tentativa de golpe de Estado.
As
acusações são robustas. Segundo a PGR, Bolsonaro encabeça um núcleo golpista,
também formado por raposas felpudas como os oficiais-generais Braga Netto,
Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Almir Garnier, os delegados Alexandre
Ramagem e Anderson Torres, e o sempre presente Mauro Cid, ex-ajudante de ordens
do então presidente. Segundo a PGR, este núcleo tomava as principais decisões e
moldava as ações a serem tomadas.
É
de domínio público que Bolsonaro jamais nutriu apreço pela democracia. Já em
sua vida na caserna, o futuro capitão-presidente foi useiro e vezeiro em tramar
contra a ordem estabelecida. Posteriormente, em suas três décadas como
parlamentar, proferiu despautérios como “Sou a favor, sim, de uma ditadura, de
um regime de exceção”, “Sou favorável à tortura” e “Através do voto você não
vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar,
infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil”. Por fim, já na
presidência, vociferou que “Quem decide se o povo vai viver em uma democracia
ou ditadura são as suas Forças Armadas” ou “Só Deus me tira daqui”.
Segundo
a PGR, Bolsonaro estava disposto a passar das palavras para a ação. Os crimes
de organização criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e
Golpe de Estado, dentre outros, que lhe são imputados, são graves. Eles são
particularmente legitimados pelo discurso golpista que Bolsonaro alimentou
desde 2021, quando passou a atacar sistematicamente a institucionalidade
democrática, as decisões dos tribunais superiores e o sistema de votação
eletrônica.
Há
farta materialidade na denúncia da PGR. Da “minuta do golpe” à delação premiada
de Mauro Cid, passando por gravações, conversas de WhatsApp, até chegar aos
“acampamentos golpistas” ou o plano de matar Lula e Alexandre de Moraes, o
Xandão, tudo teria a participação direta do capitão-presidente.
Em face da denúncia, as hostes bolsonaristas já se movimentam. Enquanto Eduardo
Bolsonaro busca articular com os Republicanos uma investigação no Congresso
Americano contra supostas ilegalidades cometidas por Moraes, Hugo Motta e Davi
Alcolumbre, os novos presidentes da Câmara e do Senado, parecem trabalhar
silenciosamente pela anistia em favor daqueles que participaram dos atos
golpistas de 08 de janeiro. Além disso, a máquina de desinformação bolsonarista
opera diuturnamente para deslegitimar a denúncia da PGR, desmoralizar o Supremo
e enfraquecer o governo Lula, cuja crise de popularidade é preocupante.
De
todo modo, o destino de Bolsonaro está nas mãos do Supremo Tribunal Federal
(STF). Afinal, cabe à Suprema Corte decidir se aceita a denúncia da PGR,
transformando Bolsonaro e os demais indiciados em réus. Pela teor das denúncias,
expostas em mais de 270 páginas, é provável que seja aberta uma ação penal. Do
ponto de vista de um processo regular, talvez houvesse um prolongamento das
decisões do STF. Todavia, tendo em vista o calendário eleitoral de 2026, é
possível que tudo se precipite. E esse é o principal risco.
Como
mostraram os processos da Lava-Jato, a sanha condenatória, além de
potencialmente injusta, na medida em que cerceia a defesa dos réus, tende a
produzir resultados jurídicos imperfeitos, posteriormente anuláveis. Além
disso, o Sistema Judicial, das polícias ao Supremo, não pode ser utilizado como
instrumento de persecução política, ainda que sob o argumento de defesa da
democracia. Há que se ter reserva, há que se observar o devido processo legal,
a ampla defesa e o contraditório. Réus, quaisquer que sejam, não podem ser
julgados como se culpados fossem. Ninguém pode ser condenado pela mídia ou
pelas redes sociais. A institucionalidade democrática exige prudência, para que
o Direito caminhe com a Justiça, binômio vital para qualquer democracia.
¨ O Brasil vive uma ‘sinuca de bico’ mas há alternativas
institucionais dentro da ordem democrática. Por Aurélio Wander Bastos e Lier
Pires Ferreira
Entre
2018 e 2022, foi instituído no Brasil, de modo informal, um presidencialismo de
novo tipo, parlamentarista - presidencialista, onde o primeiro-ministro é o
presidente da Câmara dos Deputados e o Congresso executa grande parte do
orçamento na forma de emendas parlamentares. De acordo com dados da Associação
Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), desde 2020 a União já pagou ou
empenhou cerca de R$ 35 bilhões, um valor exorbitante cuja destinação é
incerta. Esse montante exclui outras repasses para o Legislativo, como o fundo
partidário, cujo valor girou em torno de 5 bilhões somente em 2024.
Essa
situação, cujas origens estão no segundo governo Dilma, quando o desgaste
político que levou ao impedimento da presidente ampliou progressivamente a
força do Congresso, foi consolidada na gestão Bolsonaro, instalando uma
bomba-relógio que o atual governo não sabe como desmontar.
Um
exemplo claro das dificuldades do atual governo ocorreu com o recente recuo
quanto ao monitoramento do PIX.
A
medida, correta do ponto de vista fiscal, visava a atualizar regras para o
monitoramento de transações financeiras, para inibir fraudes e sonegação
fiscal.
As
novas regras fixavam um monitoramento de movimentações acima de R$5 mil para
pessoas físicas e de R$15 mil para pessoas jurídicas, reproduzindo o que já
ocorre, por exemplo, com os pagamentos que são feitos via cartão de crédito.
Foi um caos!
A
partir de postagens do deputado federal Nikolas Ferreira (PL/MG), um dos ícones
da nova direita no Brasil, uma onda de desinformação varreu as redes sociais,
colocando o governo contra as cordas.
Fake
News apontavam para a tributação das transações via PIX, que prejudicariam
principalmente microempreendedores e pequenos comerciantes, como barraqueiros,
pipoqueiros e motoristas de aplicativos.
Em
meio à onda de insatisfação, Lula publicou um vídeo esclarecendo que as novas
regras não representavam novos tributos.
Ninguém
acreditou.
Sob
uma avalanche de críticas, replicadas por parlamentares, influenciadores e
outros atores vinculados ao bolsonarismo e à direita brasileira, o governo
recuou, revogando publicamente a medida com uma declaração lacônica do ministro
da Fazenda, Fernando Haddad, e do secretário da Receita Federal, Robson
Barreirinhas. Em tempos de pós-verdade, a narrativa se impôs aos fatos.
O
caso do monitoramento do PIX, principalmente por "fintechs", pois os
bancos tradicionais já eram obrigados a prestar essas informações, mostra o
custo da governabilidade.
Sem
conseguir mobilizar a sociedade civil em torno de um projeto nacional e com um
Congresso fisiológico e que lhe é avesso, Lula tem que negociar alianças
frágeis, caso a caso, com grupos parlamentares de centro e centro-direita.
Nem
mesmo o tradicional loteamento de ministérios e cargos públicos, outrora capaz
de amalgamar forças políticas diversas e garantir a governabilidade, está
funcionando. Ademais, posto sob a “espada de Dâmocles”, o presidente vive a
eterna ameaça de um golpe parlamentar, como aquele que trouxe Temer ao poder.
Um
dos aspectos mais perversos deste quadro é que os parlamentares, beneficiários
únicos do garroteamento do Executivo, não desejam governar.
O
parlamentarismo-presidencialista, ou parlamentarismo-orçamentário, permite ao
Congresso controlar amplas parcelas do orçamento federal, mas não lhe traz os
dessabores inerentes ao governo.
A
denúncia-bomba de Nikolas Ferreira era um questionamento falacioso, político,
de uma justa medida do governo, mas Nikolas é um deputado oposicionista, sem
compromisso com a governabilidade.
Essa
postura mostra a atual posição do Congresso em relação ao governo. É uma cômoda
situação de autoridade sem responsabilidade, de bônus sem ônus.
Afinal,
se o país for mal, a responsabilidade recairá exclusivamente nos ombros do
Executivo.
Neste
contexto, sob a batuta de Lira e Pacheco, bancadas ávidas por recursos públicos
vendem caro a governabilidade, desfrutando com imensa liberdade as
oportunidades do poder.
O
Brasil vive uma “sinuca de bico”, mas há alternativas institucionais dentro da
ordem democrática.
A
sociedade precisa pressionar para que o Parlamento aprove uma Emenda
Parlamentarista, nos moldes do que existe na Alemanha, Canadá e França, países
de capitalismo maduro nos quais o controle dos congressistas sobre o orçamento
e demais instrumentos de governo, inclusive as indicações de bancada para
cargos nos ministérios e nas empresas públicas, corresponde à responsabilidade
pelo bom desempenho do Executivo.
Não
pode haver autoridade legítima sem a responsabilidade correspondente.
Todavia,
para além da baixa adesão popular à causa parlamentarista, o Congresso Nacional
procura preservar o presidencialismo de coalizão trazido pela Constituição
Federal. Trata-se de uma manobra fora da história. Se a combinação de um
sistema de representação proporcional com lista aberta, multipartidarismo e
gestão presidencial funcionou relativamente bem até o primeiro mandato de
Dilma, as crises posteriores, inclusive no que tange à polarização política
expressa (mas não limitada) pelas figuras de Lula e Bolsonaro, deixou expostas
fraturas que o sistema presidencialista parece incapaz de reparar.
O
presidencialismo-parlamentarista hoje implantado deflui irresponsavelmente o
poder político do Parlamento Federal, sem permitir um controle transparente do
orçamento. Daí as atuais tensões entre o Congresso e o Supremo Tribunal
Federal, onde o ministro Flávio Dino tenta, a duras penas, estabelecer limites
republicanos ao controle parlamentar sobre o orçamento e sobre o próprio
governo.
O
Brasil vive hoje uma situação anômala, na qual o presidente da república
“reina”, mas não governa.
Em
que pese as responsabilidades e atribuições conferidas pela própria
Constituição, o poder de fato está nas mãos do Parlamento.
Lula,
o presidente de plantão, virou um Rei na República. Tem o ônus da
governabilidade, mas não dispõe do poder necessário para governar.
É
imprescindível refundar o sistema de governo, preservando a Constituição Cidadã
tão delicadamente tecida por homens da estatura política de Ulysses Guimarães e
Bernardo Cabral. A história nos mostra que o presidencialismo é incompatível
com a instabilidade política. É necessário estabilizar a República para evitar
uma nova aventura autoritária que vá além dos abalos já provocados pelo 08 de
janeiro ou pelo “Punhal Verde e Amarelo”.
O
país almeja por uma governança responsável, capaz de responder aos desafios que
vivencia. Está claro que o sistema atual está em colapso, exigindo medidas
institucionais saneadoras. Ameaças golpistas emergem diuturnamente: não dá mais
para esperar.
¨ Carlos Latuff:
"Não estamos numa situação normal, pensem bem, é a extrema direita
golpista"
O chargista
Carlos Latuff fez um contundente desabafo durante sua participação no
programa Bom Dia 247. Em meio a um debate sobre o papel da esquerda
na atual conjuntura política do Brasil, Latuff ressaltou que o momento exige
unidade e que os ataques sistemáticos ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva
podem fortalecer o campo da extrema direita, que ele classifica como
"golpista".
"Foi dito
aqui, em outra oportunidade, sobre a tradicional divisão da esquerda.
Realmente, às vezes parece que a esquerda só se une na cadeia, e há quem diga
que nem na cadeia", ironizou. Para Latuff, a dispersão da esquerda
enfraquece a resistência a setores que trabalham contra a soberania do país.
"Eu quero ver mais veículos que defendam o trabalhador, que defendam o Brasil.
Não quero ver um único veículo, quero ver vários, quanto mais melhor."
Latuff alertou
que, diferente dos anos 1990, quando havia uma disputa entre o PT e o PSDB
dentro de um jogo democrático, a conjuntura atual é mais grave. "Essa
direita dialética e ilustrada que conhecíamos, como a representada por Fernando
Henrique Cardoso, acabou. O que temos hoje é uma extrema direita
golpista", afirmou, acrescentando que o Brasil passou "por um
triz" para não cair novamente em um regime militar.
O chargista
também criticou a influência de agentes externos na política brasileira e citou
o bilionário sul-africano Elon Musk, dono do X (antigo Twitter). "Musk é o
presidente de fato. Aquela cena do salão oval, com ele e o filho completamente
à vontade, é a representação mais óbvia disso. O sujeito chega e manda o
presidente eleito calar a boca, enquanto Trump fica ali, submisso", disse.
Para Latuff,
essa influência de Musk não se limitará aos Estados Unidos. "Ele é
desafeto do Alexandre de Moraes e fará tudo para intervir no Brasil. Diante
disso, em vez de fortalecer o governo, o que se vê é um ataque sistemático e
disputas intestinas dentro da própria esquerda, fazendo coro com a Folha
de S. Paulo, com a GloboNews, com Musk e com a direita
bolsonarista", criticou.
O chargista
ressaltou que faz críticas ao governo Lula, mas frisou que a conjuntura atual é
diferente e requer responsável posicionamento. "Eu posso falar isso com
tranquilidade, porque sempre fiz críticas ao PT. Agora, ataques ininterruptos
só ajudam o outro lado."
Em tom
bem-humorado, rebateu as críticas de que estaria sendo "chapa-branca"
ao defender Lula. "Não tem problema se me chamarem assim. Se quiserem, eu
faço uma charge de um carrinho com uma plaquinha branca escrito 'Latuff'",
brincou.
Latuff
encerrou seu posicionamento alertando que não se pode reduzir a disputa entre
Lula e Bolsonaro a uma falsa equivalência. "Dizer que 'Lula e Bolsonaro
são a mesma coisa' é uma irresponsabilidade. Não dá", concluiu.
¨ Lições de um
ensaio golpista. Por Paulo Moreira Leite
Desmontada em
poucas horas, a mobilização golpista contra o governo Luiz Inácio Lula da
Silva, no início da semana, encerrou-se como um desfile de militares incapazes
de dizer o que estavam fazendo na rua. Foi melhor assim, obviamente.
Num país de
persistente tradição de golpes militares, que deixaram marcas lamentáveis em
nossa história, inclusive o 31 de março de 64, que criou uma ditadura de duas
décadas, o ponto decisivo vem depois.
Consiste em
saber o destino de oficiais e soldados que, afrontando as garantias inscritas
na Constituição, resolveram mobilizar-se para subverter o regime democratico e
ameaçar um governo eleito pelo voto do povo para impor mudanças à revelia da
vontade da maioria.
Há duas
hipóteses conhecidas. Devem ser localizados e julgados por um crime previsto na
Carta de 1988. A outra possibilidade é que acabem livres, leves e soltos -- de
mangas arregadas para novas atividades conspiratórias.
Não pode haver
dúvidas a respeito. No artigo 142 da Constituição, se afirma que as
"Forças Armadas são instituições nacionais, permanentes e regulares,
organizadas com base na hierarquia e na disciplina, e que sua missão é defender
a Pátria e garantir os poderes constitucionais".
No
encerramento de um período histórico marcado por duas décadas de ditadura
militar, a Carta também reafirma a primazia do poder civil. Estabelece o
"Congresso Nacional tem o poder de fiscalizar os atos do Executivo e do
Judiciário".
Pelas próprias
características, a movimentação golpista da semana não pode ser entendida como
pique-nique de marmanjos deslumbrados com fardas e armamentos.
Caracteriza-se,
a rigor, como um ensaio à luz do dia para possíveis ações maiores e mais
ambiciosas, traço relativamente comum num país onde um regime democrático tem
sido levado a conviver com conspiradores em atividade permanente, ora em trajes
civis, ora fardados.
Numa América
do Sul que nos últimos anos se mostra povoada por um anacrônico retorno de
regimes autoritários e democracias em risco, a reação do governo brasileiro
deve ser vista como uma reação necessária -- e um bom exemplo a ser seguido por
nossos vizinhos, onde as garantias democráticas começam a ser esmagadas por uma
combinação de truculência e brutalidade que a região conhece muito bem.
Alguma dúvida?
Fonte: JB/Brasil 247
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