Gabriel Vilardi:
Brasil - nunca mais! O velho golpismo e a velha tentativa de anistia
Em 1979 já se
tentou calar a memória histórica do país e impedir a punição do terrorismo de
Estado, praticado pelos militares e seus leais prepostos. Resultado? Atualmente
continuam existindo pessoas que, por algum tipo de crença arraigada e/ou de
total desinformação, são defensoras do abuso, da tortura e do golpismo. Se o
país tivesse realizado uma imprescindível Justiça de Transição e adotado uma
política da verdade, os adoradores da ditadura já estariam presos ou
seriam uma minoria insignificante.
Eis o artigo.
“Meu pai contou
para mim; eu vou contar para meu filho. Quando ele morrer? Ele conta para o
filho dele. É assim: ninguém esquece”, assegurou Kelé Maxacali (1984)
sobre a importância da memória. E quando se completam os quarenta anos da
publicação do marcante relatório Brasil:
nunca mais,
parece novamente necessário afirmar o valor inegociável da democracia. Assim
como o fizeram tantas Clarices e Eunices, desde o último período autoritário
imposto ao país pelos militares, é preciso equilibrar a esperança em meio
às investidas antidemocráticas.
Os filhotes
da ditadura civil-militar não descansam. Após mais de dois anos de
investigações, a Polícia Federal indiciou e a Procuradoria-Geral
da República denunciou uma suposta organização criminosa que articulou
um golpe
de Estado,
no final de 2022, com graves consequências no início de 2023. O desespero dos
envolvidos é tamanho que há tempos tentam emplacar uma descabida anistia,
tentando dar continuidade a um péssimo histórico
nacional de impunidade dos golpistas.
A tortura, ainda tão comum
nos presídios e delegacias país afora, foi largamente utilizada nos anos de
chumbo (1964-1985). Mas suas raízes são profundas e, infelizmente, bastante
antigas, como aponta o ex-secretário-geral do Conselho Mundial de
Igrejas, Philip Potter:
“A prática da tortura
é uma indicação dos valores herdados que influenciam uma sociedade ou nação. O
que aconteceu no Brasil precisa ser visto à luz da sua longa história desde
1500 quando os primeiros colonizadores chegaram. O tratamento dos indígenas, a
cruel instituição da escravidão que somente foi abolida em 1888, e a forma
violenta como o Brasil foi explorado através dos séculos, tudo isso deixou suas
marcas na mentalidade do povo e especialmente nas classes dominantes.
Infelizmente, a época da colonização foi também a época da Inquisição da
Igreja, o que fez com que a Igreja ficasse inibida, na sua tarefa
evangelizadora, de disseminar os valores da dignidade humana e justiça para
todos. Nos últimos trinta e tantos anos, no entanto, os cristãos ficaram
conscientes da necessidade de acordar a consciência das pessoas a fim de
promover o respeito para com todos e uma sociedade mais justa”.
E o Arcebispo da
maior metrópole da América do Sul certamente foi um desses cristãos
comprometidos com o fim da tortura. Desde meados de 1979 até março de 1985, um
grupo ligado à Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, com
o fundamental e entusiasmado apoio de Dom
Paulo Evaristo Arns,
copiou, estudou e sistematizou as informações referentes a 707 processos, que
tramitaram na Justiça Militar (1964-1979). Um total de mais de 1
milhão de páginas, em um trabalho minucioso e primoroso de preservação
da memória histórica.
Ainda durante a repressão e correndo grande risco, essas pessoas não se
dobraram ao terror. Arriscaram-se para que o passado não fosse apagado, como
tanto se tem tentado fazer:
“O que se pretende
é um trabalho de impacto, no sentido de revelar à consciência nacional, com as
luzes da denúncia, uma realidade obscura ainda mantida em segredo nos porões da
repressão política hipertrofiada após 1964. É a observância do preceito
evangélico que nos aconselha o conhecimento da verdade como pressuposto para a
libertação”.
Os atuais e
autonomeados defensores da “família tradicional”, talvez tenham esquecido os dramas
vividos por milhares de famílias que foram vítimas dos desmandos dos
generais de plantão. Seus membros foram cassados e afastados de seus
empregos públicos, submetidos a prisões arbitrárias, com os trágicos
desaparecimentos forçados e cruéis assassinatos de alguns. Isso sem mencionar
no exílio de outras milhares de pessoas, com danos psicológicos profundos
deixados em indefesas crianças e adolescentes.
Outras tantas
famílias de indígenas foram completamente exterminadas, com o patrocínio
da Doutrina de Segurança Nacional e a justificativa do
desenvolvimento dos rincões do país. Era a época do ufanismo do “Brasil, ame-o
ou deixe-o”, muito similar aos patriotas que acamparam em frente aos quartéis.
Estima-se que mais de 8 mil indígenas tenham sucumbido sob o jugo da
“civilização e do progresso”. Mesmo assim, há anos se espera a instalação de
uma sempre adiada Comissão
Nacional Indígena da Verdade.
Algum tempo antes
do início do “Projeto
Brasil: nunca mais”,
um bárbaro crime chocou a nação. O jornalista Vladimir
Herzog foi
preso, torturado e acusado de um falso suicídio pelo DOI-CODI do II
Exército. O depoimento do colega de profissão Rodolfo Osvaldo Konder, que
também estava encarcerado na ocasião, é perturbador:
“Vladimir disse que
não sabia de nada e nós dois fomos retirados da dala e levados de volta ao
banco de madeira onde antes nos encontrávamos, na sala contígua. De lá,
podíamos ouvir nitidamente os gritos, primeiro do interrogador e, depois, de
Vladimir, e ouvimos quando o interrogador pediu que lhe trouxessem a
‘pimentinha’ e solicitou ajuda de uma equipe torturadora. Alguém ligou o rádio
e os gritos de Vladimir confundiam-se com o som do rádio”.
A que ponto chegou
a política, quando um ex-presidente elogia publicamente abjetos torturadores e
relativiza os descalabros praticados nos porões fétidos do regime de
exceção de 64? E não satisfeito adotou um discurso atentatório às
instituições democráticas e instigou seus militantes mais fanáticos a
exigirem um novo golpe de Estado. Trata-se do principal responsável, como
mentor intelectual, dos atos
antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Uma verborragia violenta e fascista
possui consequências, ainda mais quando vinda de alguém que ocupava a
Presidência da República.
Provavelmente
o Cardeal Arns (1921-2016), grande defensor dos Direitos
Humanos, ficaria estarrecido com a gravidade e a intensidade dos ataques recentes
ao Estado Democrático de Direito, tão duramente conquistado com
a Constituição de 1988. Uma sucessão de fatos perigosos que, sem deixar de
ser atabalhoada e dantesca, foi bem consciente e criminosamente planejada, com
o intuito de enfraquecer o sistema político. Por isso que alegar agora qualquer
tipo de perseguição é absolutamente ridículo e sem esteio na realidade fática.
O cardeal, que se
colocou ao lado dos presos políticos, não mediu esforços para minorar seus
sofrimentos e denunciar os relatos de abusos que lhe chegavam em profusão.
Certa feita confidenciou, profundamente tocado na sua humanidade sensível pela
dor inconsolável uma mãe:
“A senhora mais
idosa me fez a pergunta que já vinha repetindo há meses: ‘O senhor tem alguma
notícia do paradeiro do meu filho?’ Logo após o sequestro, ela vinha todas as
semanas. Depois reapareci de mês em mês. Sua figura se parecia sempre mais com
a de todas as mães de desaparecidos. Durante mais de cinco anos, acompanhei a
busca de seu filho, através da Comissão de Justiça e Paz e mesmo do Chefe da
Casa Civil da Presidência da República O corpo da mãe parecia diminuir, de
visita em visita. Um dia também ela desapareceu. Mas seu olha suplicando de mãe
jamais se apagará de minha retina. Não há ninguém na Terra que consiga
descrever a dor de quem viu um ente querido desaparecer atrás das grades da
cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que lhe aconteceu. O ‘desaparecido’
transforma-se numa sombra que ao escurecer-se vai encobrindo a última
luminosidade da existência terrena. Para a esposa e a mãe, a Terra se enche de
trevas, como por ocasião da morte de Jesus”.
Uma dor palpável, cortante, asfixiante. O
mesmo sofrimento que carregam milhares de mães
que tiveram seus filhos exterminados, vítimas da onipresente e
inextinguível violência
policial.
Com um Congresso conservador e dominado pela bancada da bala, qualquer
iniciativa para reformar o sistema de segurança pública resulta ineficaz.
Todavia, chegará o dia em que o país deverá enfrentar com seriedade referida
questão.
Afinal, tem-se
uma Polícia Militar que é herdeira dessas práticas desumanas tão
aprimoradas nos porões do horror ditatorial. Mas, os policiais algozes são ao
mesmo tempo vítimas de uma má formação, baixos salários e péssimas condições de
trabalho – muitos inclusive, com a saúde mental seriamente deteriorada. Diante
de imensa violência descontrolada, quando foi que a vida passou a nada valer,
com um silêncio cúmplice de uma sociedade entorpecida pela lógica
neoliberal?
A falta de um
mínimo letramento em Direitos Humanos é mais do que evidente. O
selvagem e não regulado ambiente digital aprofundou uma ideologia
extremista e neofascista. A empatia parece cada vez mais em extinção. Nesse
sentido descreve Rubens Casara a mentalidade do sujeito que se julga
empreendedor e aposta na meritocracia:
“As bolhas de
iguais, fechadas ao outro, ocupam o espaço das comunidades restritas que, desde
o pensamento grego, eram identificadas com a ideia de humanidade. O outro
passa, então, a ser visto como estranho à humanidade e à comunidade. O
indivíduo, que se perde em uma bolha de iguais, também passa a acreditar que se
tornou outra pessoa, a partir de uma nova subjetividade, não mais a
velha subjetividade neurótica construída a partir do recalque, mas uma
superior, que não conhece limites ou constrangimentos”.
A liberdade de
expressão e os jornalistas sempre estão entre os primeiros a serem afetados
pelo porrete dos opressores. Ademais, qualquer reflexão crítica causa tremores
nos truculentos de plantão. Pensar é uma ameaça para o arbítrio. Aqueles que
atualmente bradam por uma inconcebível autorização para desinformar e atacar
adversários pelas redes sociais, não sabem o que foi realmente a ferrenha censura
que vigorou no país.
Desde o final de
2024, o cinema nacional vive um período de merecido reconhecimento, com o
estrondoso sucesso do filme “Ainda
Estou Aqui”.
Baseado na obra de Marcelo
Rubens Paiva,
o Brasil que está no meio de uma crise de memória, tal qual o triste alzheimer
de Eunice Paiva, teve que se defrontar com uma parte dolorosa de sua
história. Os desaparecidos políticos, mais especialmente o caso de Rubens
Paiva e a impressionante resistência de sua esposa. Eunice Paiva, que se
reinventou e se tornou uma advogada amiga e defensora da causa indígena, é o
símbolo de uma nação que não se conforma com a truculência dos fardados.
É o mesmo grito
entalado de Clarice
Herzog,
viúva do também covardemente assassinado Vlado, então diretor de
Jornalismo da TV Cultura. Há 50 anos mais uma família tinha sua vida
interrompida, revirada, destroçada. Por mais que tenham tentado silenciar a
verdade histórica sobre o fim criminoso de seus companheiros, a teimosia
e a luta dessas mulheres ainda falam alto. Conhecer suas histórias significar
impedir a volta do silêncio ensurdecedor e insuportável do calabouço:
“A partir de um
determinado momento, o som da voz de Vladimir se modificou, como se tivessem
introduzido coisa em sua boca; sua voz ficou abafada, como se lhe tivessem
posto uma mordaça. Mais tarde, os ruídos cessaram. (...) O interrogador saiu
novamente da sala e dali a pouco voltou para me apanhar pelo braço e me levar
até à sala onde se encontrava Vladimir, permitindo mais uma vez que eu tirasse
o capuz. Vladimir estava sentado na mesma cadeira, com o capuz enfiado na
cabeça, mas agora me parecia particularmente nervoso, as mãos tremiam muito e a
voz era débil”.
Era 25 de outubro
de 1975 e mais um pai de dois filhos pequenos perecia, vítima da
tortura. Dom Paulo rompeu o “cala-boca” em vigor e abriu as portas da
catedral da Sé, para aquele que seria o primeiro grande ato após
o AI-5 (1968). Em uma celebração
inter-religiosa,
no dia 31 de outubro, com a presença do rabino Henry
Sobel e
do pastor presbiteriano James
Wright,
8 mil pessoas compareceram.
E apesar do forte
esquema de segurança e da pressão direta de dois secretários do
governador Paulo Egydio Martins para que cancelasse o ato, o cardeal
da Esperança se manteve firme. Ao lado de outro inimigo declarado dos
militares, Dom
Helder Câmara,
Dom Arns bradou desafiador: “ninguém toca impunemente no homem, que nasceu do
coração de Deus para ser fonte de amor”!
Mesmo depois de
todo esse horror, um ex-capitão do Exército ascendeu ao poder e trabalhou
intensamente para destruir as conquistas democráticas. As ameaças aos
integrantes do Supremo Tribunal Federal foram constantes, em um
padrão semelhante a outros Estados que vivem situações de abalo da democracia.
Nessa esteira pontuam Arantes, Frias e Meneses:
“Fora do Brasil as
supremas cortes têm sido foco de grandes disputas políticas. Nos
EUA, Trump conseguiu emplacar uma maioria reacionária, que tem
revertido decisões históricas, como a legalidade do aborto e as políticas
afirmativas nas universidades. Em Israel, que também é referência política para
a extrema-direita brasileira, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu,
mesmo com ampla oposição nas ruas, conseguiu aprovar uma lei que permite à
maioria no Congresso reverter decisões da Suprema Corte. Steven
Levitsky e Daniel Ziblatt, autores de ‘Como as democracias morrem’,
alertam que o ataque ao Judiciário costuma ser o primeiro passo dos autocratas
para se perpetuar no poder”.
Segundo
investigação da Polícia Federal, no final de 2022, houve o planejamento de uma
operação, por parte de integrantes das forças especiais do Exército, para matar
o presidente da República recém-eleito, seu vice e o ministro do
Supremo, Alexandre de Moraes. Deve-se reconhecer que o STF exerceu
um papel importantíssimo para frear os arroubos autoritários
de Bolsonaro e sua patota. Isso gerou constantes ataques à instância
máxima do Judiciário, com bordões surreais como uma esdrúxula “ditadura da
toga”.
Depois desses atos
criminosos e outros mais devidamente registrados nas centenas de páginas do
inquérito policial e da denúncia do Procurador-Geral da República, os
responsáveis continuam arremetendo contra o Estado Constitucional ao
querer distorcer os fatos. Já no final de 2022, preocupados com as repercussões
jurídicas de seus atos, alguns parlamentares bolsonaristas apresentaram
projetos de lei para anistiar os golpistas.
As justificativas
são as mais impensáveis possíveis, como a narrativa de que o país viveria em
uma ditadura que persegue os seus desprotegidos opositores ou que tudo não
passou de legítimas manifestações, asseguradas em uma democracia. Ou mais
hipócrita ainda, que é “preciso pacificar o país”. Ora, pacificar implica
exatamente em responsabilizar, na medida da lei, os autores dos graves e violentos crimes
contra o Estado de Direito. Impõe-se, assim, confrontar o ignoródio a
solta na parcela fascista das classes política, militar e empresarial, nos
termos infra considerados:
“Essa ilimitação,
tipicamente neoliberal, é a fonte remota do que Antonio Quinet chamou
de ignoródio. É o ignoródio que permite a negação da diferença, a
raiva ao saber, o anti-intelectualismo e a ode à ignorância. Com isso, mina-se
o discurso público, a educação crítica (vista como uma inimiga da hegemonia
neoliberal) e a credibilidade das instituições que abrigam e produzem vozes
independentes e pesquisas que não interessam aos detentores do poder econômico.
Essa negação produz efeitos na economia psíquica, potencializando neuroses,
perversões e paranoias. Aliás, a formatação de quadros mentais paranoicos (o
que se poderia chamar de ‘estilo paranoico’) é condição de possibilidade para a
versão ultra-autoritária do neoliberalismo, como ocorre no Brasil
pós-democrático de Jair Bolsonaro, nos Estados Unidos de Donald
Trump ou na Argentina de Javier Milei”.
A paz social só
será efetiva e duradouramente alcançada por meio do regular funcionamento das
instituições e do cumprimento estrito da lei. Ameaçar em inúmeras oportunidades
a ordem democrática é violentar o próprio povo e o exercício de sua
livre soberania. E isso deve ser punido nos estritos termos da legislação.
Ninguém está falando de tribunal de exceção ou de lei posterior aos fatos. A
instância que deverá julgar os denunciados é integrada, inclusive, por dois
membros indicados pelo ex-presidente ora acusado.
Em 1979 já se
tentou calar
a memória histórica do
país e impedir a punição do terrorismo de Estado, praticado pelos militares e
seus leais prepostos. Resultado? Atualmente continuam existindo pessoas que,
por algum tipo de crença
arraigada e/ou de total desinformação, são defensoras do abuso, da tortura e do
golpismo. Se o país tivesse realizado uma imprescindível Justiça
de Transição e
adotado uma política da verdade, os adoradores da ditadura já estariam presos
ou seriam uma minoria insignificante.
Por isso, como
filhos e filhas de Clarice Herzog e Eunice
Paiva é
dever de todos e todas gritar: Brasil, nunca mais! Nunca mais ao abuso
autoritário e a falta de eleições! Nunca mais à censura e à tortura
sistemática! Nunca mais à ditadura desavergonhada e sanguinária! É preciso a
partir do testemunho de Dom Paulo Evaristo Arns reassumir o
compromisso com a verdade histórica, resistir ao medo que acovarda e se
levantar para dizer: Ainda Estamos Aqui, nós os filhos e as filhas da
Democracia. Anistia, jamais!
Fonte: IHU
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