Um ousado passo na luta contra a aids
No primeiro dia de seu mandato, Donald Trump emitiu uma
avalanche de ordens executivas – de pronta
execução – congelando todos os fundos de assistência estrangeira por 90 dias.
Nesse contexto, a resposta ao HIV/AIDS pode sofrer impactos devastadores,
aprofundando desigualdades e fragilizando avanços conquistados a duras penas. A
ordem executiva afetou gravemente o Plano de Emergência da Presidência dos EUA
para o Alívio da AIDS (PEPFAR).
Este programa de assistência contra o HIV, iniciado em
2003, é implementado principalmente pelos Centros de Controle e Prevenção de
Doenças (CDC) e pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional (USAID). O PEPFAR é atualmente o maior financiador da resposta
global ao HIV e foi interrompido bruscamente, incluindo a distribuição de
antirretrovirais. A sua abrupta paralisação afeta por dia 220 mil pessoas, incluindo 7 mil
crianças que ficaram impedidas de acessar tratamento vital.
No Brasil, que possui uma ferramenta como o Sistema
Único de Saúde (SUS), o impacto é incomparavelmente menor do que em muitas
nações na África. Mesmo assim, um importante projeto que atuava em 5 capitais
oferecendo testagem de HIV, diagnóstico e outros serviços era financiado pelo
PEPFAR – e teve seus fundos interrompidos.
Nesse contexto, se optasse por absorver o projeto no
SUS, o país aproveitaria muito bem a oportunidade de dar apoio imediato aos
afetados por sua suspensão e também de demonstrar a força de seu programa de
assistência à HIV/aids, internacionalmente reconhecido. O Brasil reforçaria sua
soberania, é claro, mas muito mais que isso: sinalizaria, com o gesto, seu
compromisso com o direito à saúde e à vida.
·
Lutar
pela vida em todo o mundo
As políticas de extermínio e a violência contra a
diversidade revelam um ataque direto às populações historicamente
marginalizadas. O revolucionário Herbert Daniel, que foi diretor da ABIA, já
nos alertava que a luta contra a AIDS vai além do biológico, refletindo as
fraturas sociais que, ao serem ignoradas, alimentam preconceitos e
marginalização. Para ele, a verdadeira luta é pela democracia, pelo prazer da
diversidade e pela liberdade, que devem garantir a vida antes da morte. Em
seu Vida antes da morte (1997),
disponível no site da ABIA, Herbert escreveu:
“Como toda epidemia, a Aids se
desenvolve nas fraturas e desequilíbrios da sociedade. Não se pode enfrentá-la
tentando obscurecer as contradições e conflitos que expõe. Pelo contrário, é
revelando-os que melhor se entende (e se pode neutralizar) o avanço do vírus e
do vírus ideológico do pânico e dos preconceitos. Portanto, há uma disputa
envolvida nessa epidemia que não se reduz ao confronto biológico. Há uma
construção a ser feita que envolve a democracia e o prazer da diversidade.
Com muito prazer combato nessa luta. No corpo. E naquilo que, além do corpo,
garante seu prazer: a liberdade. Ou, como queiram, a vida antes da morte.”
Afirmar que estamos a salvo, porque temos o SUS e não
dependemos do governo dos EUA e do PEPFAR para a política de HIV/AIDS no Brasil
seria moralmente questionável e nada solidário. Estaríamos olhamos para dentro
e esquecendo o impacto em outros países. Não estamos a salvo quando há um
ataque direto a toda a humanidade. Não estamos a salvo quando sabemos que os
vírus não respeitam fronteiras, sejam eles biológicos ou ideológicos do pânico
e dos preconceitos, como alertou Herbert.
O Brasil não pode ser cúmplice, a brutalidade não pode
ser naturalizada, a crueldade não pode ser institucionalizada. Devemos rechaçar
toda e qualquer forma de ataque à humanidade do outro. O governo brasileiro e
as instituições democráticas do nosso país devem se manifestar.
·
Também
fomos afetados
É verdade que temos o SUS, esse sistema que, como bem colocou Deisy Ventura,
é o nosso grande trunfo democrático: um dos poucos sistemas de justiça
redistributiva do Brasil, que garante democracia material por meio do acesso à
saúde, mesmo com suas limitações. “O SUS funciona como um amortecedor do
capitalismo selvagem brutal que se implantou no Brasil”, afirma Deisy. O SUS
garante a toda a pessoa vivendo com HIV/AIDS acesso ao tratamento e à
prevenção.
Temos o SUS! Mas não produzimos nossos medicamentos.
Corporações farmacêuticas transnacionais o estão extorquindo e colocando em
risco a viabilidade e manutenção do direito aos medicamentos. A dependência das
grandes farmacêuticas e a falta de transparência e controle sobre os preços não
podem continuar ditando o destino de milhares de
pessoas no Brasil.
O acesso aos medicamentos é um direito humano, não podemos permitir o abuso do
sistema de patentes para privilegiar o interesse de lucro ao invés da vida.
Entretanto, mesmo com o SUS, é importante comunicar que
a interrupção do financiamento do PEPFAR também nos afetou, ainda que em menor
proporção. O projeto “A Hora é Agora”, financiado desde
2015 pelo PEPFAR, e que tem como objetivo fortalecer e ampliar o acesso à
testagem e ao tratamento para o HIV, também está em risco.
O projeto A Hora é Agora (AHA) oferece testagem,
diagnóstico, vinculação ao tratamento, disponibilização de PrEP e PEP e
estratégias de adesão ao tratamento antirretroviral (TARV). O programa começou
em Curitiba e se expandiu para Porto Alegre, Florianópolis, Campo Grande e
Fortaleza. Em um país com mais de 45 mil novas infecções anuais por HIV, 1
milhão de pessoas vivendo com HIV/AIDS e 20% delas sem acesso ao tratamento,
iniciativas como essa são fundamentais.
·
Uma
possível resposta
Uma nota conjunta da ANAIDS,
ABIA e GTPI, encaminhada ao Ministério da Saúde em 13 de fevereiro com um
pedido de pronunciamento, alerta para a grave situação gerada pela suspensão do
PEPFAR e pelo seu futuro incerto:
“Com a suspensão do PEPFAR, 21 Centros de Testagem e
Aconselhamento (CTA), 16 serviços especializados e ações de apoio à atenção primária
correm o risco de serem descontinuados, comprometendo metas de eliminação do
HIV/AIDS como problema de saúde pública. Já há reflexos diretos: em Porto
Alegre, os serviços financiados pelo projeto foram suspensos por tempo
indeterminado. Em Fortaleza, a prefeitura tenta absorver os serviços na rede
municipal, mas a situação nas demais capitais ainda é incerta”, diz a nota.
Decisão judicial provisória nos EUA suspendeu o
congelamento de Trump, o projeto está funcionando parcialmente, com testagem e
diagnóstico, mas há incertezas sobre o financiamento do CDC/PEPFAR e a
manutenção da equipe. O silêncio é uma declaração de morte. O estado brasileiro
deve se pronunciar, o SUS pode e deve absorver e ampliar iniciativas como
estas.
A luta é pela vida! A luta por um sistema de saúde
justo e inclusivo deve ser coletiva e intransigente. Não estamos a salvo
enquanto houver violações aos direitos humanos e à dignidade das populações
mais vulneráveis. É preciso reivindicar por melhores condições de vida e
defender a dignidade humana. É urgente resistir à política de morte e lutar por
um modelo que priorize a vida acima dos interesses privados e do lucro. Vida
digna, saúde e acesso a medicamentos são direitos inegociáveis.
Fonte: Por Susana van der Ploeg, Veriano Terto
Jr. e Juan Carlos Raxach, para a coluna Saúde não é mercadoria, em Outra Saúde
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