'Procurei segredo
da felicidade por 30 anos e a resposta não foi a que esperava'
O
jornalista Fergal Keane, em um poderoso relato pessoal, reflete sobre como é
viver com depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
Ele descreve sua busca para viver em equilíbrio. Suas descobertas ao longo do
processo formam um estudo mais profundo sobre a felicidade, que pode ser
aplicado tanto por pessoas com sérias dificuldades de saúde
mental, quanto por
aqueles que precisam apenas de um empurrãozinho.
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Houve um momento,
cerca de dois anos atrás, em que a mudança interior me atingiu com força.
Eu caminhava com um
ente querido no extremo leste da praia de Curragh em Ardmore, no condado
irlandês de Waterford. Para mim, aquele local era um aconchegante refúgio desde
a infância.
Paramos ao lado de
um rio que flui para a baía de Ardmore. Eu ouvia os diferentes sons produzidos
pela água – o rápido fluxo do rio, as ondas quebrando no litoral.
De repente, surgiu
o som de dezenas de asas cortando os ares. Um bando de gansos-de-cara-preta
chegou varrendo os céus sobre o rochedo, aproveitando as correntes de vento
para seguir em direção ao céu. Senti uma leveza interior e uma gratidão tão grande que comecei a
rir alto.
"Então, esta é
a sensação", pensei eu.
Tomando emprestadas
as palavras do romancista Milan Kundera (1929-2023), senti uma maravilhosa
"leveza de ser".
Recordei aquele
momento no mês passado. Eu pensava sobre o fenômeno da segunda-feira azul – a
terceira segunda-feira de janeiro, considerada o dia mais triste do ano.
Qualquer pessoa que
conhece a depressão clínica ou o transtorno de
estresse pós-traumático (TEPT) poderá dizer que não existem dias
específicos do ano para a tristeza. Pode ser o dia mais ensolarado, no local
mais agradável, e você ainda poderá sentir sua mente mergulhada no permafrost.
Mas a segunda-feira
azul me levou, de fato, a refletir sobre a felicidade. Qual a sua
definição? E o que ela significa na minha vida?
<><>
Dias cinzentos e noites escuras
Não muito tempo
antes daquele dia dos belos gansos, eu havia saído de um colapso emocional.
Foi em março de
2023. Eu me sentia como se tivesse lutado por 12 assaltos contra um campeão dos
pesos-pesados. Mas eu havia lutado contra mim mesmo, como vinha fazendo há
décadas.
Passei por diversas
hospitalizações ao longo do tempo, desde o início dos anos 1990. Lutei uma
batalha incessante contra a vergonha, o medo, a raiva, a negação – todos os
sentimentos que são o oposto da felicidade.
Havia dias
cinzentos terríveis. Os galhos das árvores estavam todos sem folhas, mesmo no
pico do verão. Havia também noites em que eu acordava encharcado de suor,
ruminando obsessivamente, com pesadelos invadindo a madrugada.
E, durante minha
recuperação do alcoolismo no final dos
anos 1990, pude pesquisar profundamente as noites escuras da alma.
Quando tive o
colapso emocional em 2023, eu já não tinha mais esperança de ser feliz. Naquela
época, eu já me contentaria apenas com pouco de paz de espírito.
Em 2019, pedi
demissão do cargo de editor de África da BBC, devido às minhas dificuldades com
o TEPT. Dois anos depois, escrevi um livro sobre o assunto e produzi para a BBC
um documentário de televisão.
Mas, mesmo depois
de tudo isso, sofri outro colapso emocional.
<><> A
ciência da felicidade
O professor Bruce
Hood, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, fala sobre a tendência humana
de "exagerar a proporção das coisas... [nos concentrando] nas nossas
falhas e inadequações".
Ele promove cursos
de dez semanas em Bristol sobre a ciência da
felicidade,
abordando nossa necessidade de encontrar equilíbrio. Ele costuma dizer que
"a nossa mente tem a tendência de interpretar tudo de forma muito
negativa".
Certamente me
identifico com isso. Mas faço uma ressalva: a área do professor Hood aborda os
sentimentos de baixo bem-estar em geral. Ele deixa claro que se dedicar à
ciência da felicidade não será necessariamente a cura para pessoas com
condições como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
Tenho um
diagnóstico específico. Em 2008, os médicos me disseram pela primeira vez que
eu tenho TEPT devido a diversos casos de trauma como correspondente de guerra,
mas também pelas circunstâncias da minha infância, vivida em um lar
desestruturado pelo alcoolismo.
A depressão e
a ansiedade faziam parte
importante daquela condição, além da dependência de álcool. Eu também usava
como fuga a energia estimulante, o companheirismo e o senso de propósito da
cobertura de conflitos.
É preciso destacar
que o que funciona para mim, quando tento encontrar a felicidade, certamente
pode não funcionar para todas as pessoas.
Existem condições
mentais especificas que exigem tratamentos também específicos. Para o TEPT, uma
combinação de terapias me ajudou muito, além da companhia de outras pessoas com
experiências similares.
A medicação também
reduziu os sintomas físicos de ansiedade e hipervigilância.
Um prato caindo ou
o escapamento de um carro podia me deixar em pedaços, pálido, tremendo e
suando, em questão de segundos. E os pesadelos podiam fazer com que eu me
debatesse durante o sono.
Mas sou
privilegiado e tive acesso ao melhor tratamento disponível. Muitas pessoas na
nossa sociedade não têm a mesma sorte. A Associação Médica Britânica afirma que
mais de 1 milhão de pessoas aguardam para ter acesso a tratamento no Reino
Unido.
Também é importante
destacar que inúmeros fatores sociais, econômicos e culturais influenciam a
nossa capacidade de sentir felicidade. E existe um estudo em andamento sobre a
predisposição genética à depressão e à dependência.
A organização
Movimento pelo Bem-Estar Mundial (WWM, na sigla em inglês) promove a
consideração do bem-estar das pessoas como fator para a tomada de decisões
pelas empresas e em políticas públicas. Ela afirma que uma em cada oito pessoas
no Reino Unido vive abaixo da chamada Linha da Pobreza da Felicidade.
Esta linha é medida
usando dados fornecidos pelos relatórios anuais do Escritório Nacional de
Estatísticas do Reino Unido. Ela se baseia na pergunta: "Em uma escala de
0 a 10, qual é o seu grau de satisfação com a sua vida em geral,
atualmente?"
O WWM destaca que
uma em cada oito pessoas é um nível "alarmante" e que existem
"questões preocupantes relativas à saúde mental [que] permanecem não
combatidas e subfinanciadas".
Depois de expressar
minhas ressalvas, espero que alguns pontos da minha experiência, como as
ferramentas de recuperação que recebi de forma tão generosa, possam ajudar as
pessoas com dificuldades para enfrentar a solidão causada pela depressão ou os
distúrbios trazidos pelo TEPT – ou simplesmente para lidar com as dores normais
que a vida apresenta de tempos em tempos.
O segredo da
felicidade não é segredo
Na minha
experiência, o segredo para a felicidade é que... não existe um segredo. Ela
está à vista de todos, esperando para ser encontrada. Mas nem sempre está
presente.
A felicidade não é
a condição diária natural da humanidade, da mesma forma que a depressão ou a
raiva também não são.
A psicoterapeuta
americana Whitney Goodman é a autora do livro Toxic Positivity: How to
Embrace Every Emotion in a Happy-Obsessed World ("Positividade
tóxica: como acolher todas as emoções em um mundo obcecado pela
felicidade", em tradução livre).
Ela afirma que
"qualquer pessoa obcecada por fazer você feliz o tempo todo, na minha
opinião, está vendendo poções mágicas inúteis."
"Não faz
sentido. Não funciona... Dizer às pessoas que elas
simplesmente precisam ser felizes, manifestar pensamentos diferentes, acho
que já teria funcionado a esta altura."
Passei anos sentado
em divãs de terapeutas, às vezes olhando pelas janelas das enfermarias
psiquiátricas. Eu esperava pela cura perfeita que consertaria minha cabeça e
eliminaria meu abatimento.
Para mim, a
característica que definia meus problemas de saúde mental era a solidão. Eu me
examinava profundamente e não encontrava nada que merecesse ser amado ou
admirado. Eu fechei a porta para mim mesmo.
A resposta não veio
da noite para o dia.
Se eu pudesse
indicar um ponto que fez a diferença, depois que eu me estabilizei com o
tratamento, foi e sempre será o trabalho. Mas não o trabalho que me levou a um
estado de esgotamento quase constante, enquanto buscava furos jornalísticos e
prêmios, tão vitais para meu ego inseguro.
Um recado para
aqueles que procuram sua valorização no trabalho: o workaholic é o
dependente mais aceito de todos. Na verdade, eles são enaltecidos.
Por que você iria
querer mudar se os seus chefes e a sociedade o aplaudem? O trabalho é a
dependência mais permissiva que existe.
O trabalho de que
estou falando é muito diferente.
Ninguém irá dizer
como você é valente e talentoso por fazer o trabalho que traz felicidade
verdadeira. Mas você irá sentir isso na reação das pessoas que você ama, na
gratidão por acordar sem aquela sensação de medo e na consciência da beleza que
existe à sua volta.
E também em saber
que você irá cumprir seus compromissos e viver como alguém que não apenas fala
em cuidar das pessoas, mas que faz o melhor possível para viver de acordo com
aquilo que fala.
Em uma noite no
hospital em 2023, quando fui internado com TEPT, assisti a um documentário com
o psicoterapeuta americano Phil Stutz.
Ele falava sobre
três verdades fundamentais que as pessoas que enfrentam problemas de saúde
mental devem aceitar: que a vida pode ser repleta de dor, repleta de mudanças e
que viver com isso exige trabalho constante.
Eu estava exausto
de sofrer. Mas também estava disposto a fazer qualquer trabalho que pudesse
para encontrar a paz de espírito. A felicidade veio depois.
<><> O
retorno à simplicidade
O que eu fiz? Em
primeiro lugar, muitas coisas simples.
Escrevi uma lista
de gratidão todas as manhãs. Meu relatório diário do que havia de bom na minha
vida.
Li mais poesia,
pois ela me acalma. Saí para longas caminhadas com o cachorro em Londres, pelo
rio Tâmisa e no parque Richmond.
Comecei até a
meditar – um milagre para alguém que raramente ficava sentado por mais de cinco
minutos.
Fui ao cinema com
mais frequência e fiz tarefas domésticas simples. Não as exibições na cozinha
de antigamente, mas a limpeza diária, lavar, cozinhar, pagar as contas. Que
maravilha, eu conseguia fazer aquilo!
Reservei mais tempo
para as amizades. E para o amor, das pessoas mais importantes para mim.
Eu ouvia, quando
antes teria apenas discursado. Eu me esforcei muito para ficar de boca fechada
quando alguém queria expressar ressentimentos, em vez de deixar que os hábitos
defensivos da infância me dominassem.
Ofereci ajuda aos
demais que enfrentavam dificuldades. As pessoas em recuperação da dependência
conhecem uma das máximas sobre a sobriedade: é preciso dar para receber. O
mesmo vale para a felicidade.
O filósofo Frank
Martela, da Universidade Aalto, na Finlândia, sugere atos de bondade como parte
da solução. A Finlândia ocupa a
primeira posição do
Índice Mundial da Felicidade.
"Conecte-se
com os demais e conecte-se consigo mesmo", recomenda Martela.
"Conecte-se
com os demais pelos relacionamentos sociais... fazendo o bem para outras
pessoas, colaborando com seu trabalho ou com pequenos atos de gentileza."
><> 'Você
é mais forte do que pensa'
Um velho e
maravilhoso amigo meu, o conselheiro sobre dependência Gordon Duncan, foi o
primeiro a me alertar para o fato de que eu tinha muita raiva acumulada dentro
de mim e que isso causava a depressão e o alcoolismo.
Discutimos muito
nas primeiras semanas depois que nos conhecemos, mas nos tornamos melhores
amigos ao longo do tempo.
Quando ele estava à
beira da morte no hospital, eu o visitei um dia e vi que ele havia entrado em
coma. Nenhum de nós era particularmente religioso, mas eu sussurrei no ouvido
dele uma oração valiosa para nós dois:
"Conceda-nos,
Senhor, a serenidade necessária
para aceitar as
coisas que não podemos modificar,
coragem para
modificar aquelas que podemos
e sabedoria para
distinguir umas das outras."
Não sei se ele
conseguiu me ouvir. Suspeito que, provavelmente, não.
Mas me lembrei de
algo que ele costumava me dizer quando eu estava chegando ao fundo do poço.
"Você é mais forte do que pensa, meu filho. Mais forte do que pensa."
Transmito isso a
todos os que estão sofrendo em suas mentes. Sei por experiência própria que
tudo pode mudar rapidamente. Não há garantias de felicidade, nem de nada mais.
Mas aceito isso.
O escritor
americano Raymond Carver (1938-1988) sobreviveu ao alcoolismo e escreveu alguns
dos mais belos poemas sobre o luto e a felicidade.
Ele deixou um
pequeno poema antes de morrer de câncer, com apenas 50
anos de idade. Foi seu epitáfio e acho que resume toda a nossa busca pela
felicidade.
"E, mesmo
assim, você conseguiu o que queria desta vida?
Consegui.
E o que você
queria?
Dizer que eu era
amado, me sentir amado na Terra."
Amanhã, vou acordar
e ficarei feliz por abrir as cortinas. Vou tomar café e pensar nas pessoas que
amo e que estão próximas ou distantes de mim.
Depois, vou voltar
ao trabalho, o trabalho real e profundo que prossegue todos os dias.
Fonte: BBC News
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