A técnica ancestral
que substitui ar-condicionado em casas chinesas
O Brasil entra na terceira onda de calor de 2025 nesta
segunda-feira (17/2), segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
Inicialmente, são
afetados municípios nos Estados do Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais,
Santa Catarina, Paraná, se estendendo, posteriormente, por Goiás e Bahia.
As temperaturas máximas podem superar
em mais de 5°C a média climatológica, segundo o Inmet.
Diante do
cenário, a Defesa Civil de São Paulo emitiu um
alerta com
diversas recomendações, como evitar exposição ao sol entre 10h e 16 e se manter
hidratado.
Nesta segunda, a
cidade de São Paulo já registrou a maior temperatura do ano, com 34,9°C.
Já o Rio de Janeiro
ultrapassou a marca de 40ºC. A cidade atingiu o nível 4 de calor pela primeira
vez desde que o protocolo municipal de temperaturas extremas foi implementado,
em junho do ano passado.
O nível 4 é
caracterizado por índices de calor muito alto (40°C a 44°C) com previsão de
permanência ou aumento por, ao menos, três dias consecutivos.
As temperaturas estão batendo recordes não só no
Brasil, mas em todo o mundo, nos últimos anos.
Na China, uma
técnica ancestral tem ajudado a refrescar o interior de casas antigas.
“A sensação de
frescor natural da minha casa no verão era difícil de encontrar no mundo
moderno”, conta Ru Ling. “Também dava uma vibração zen e tranquilizadora à casa.”
Entre 2014 e 2021,
Ling morou em uma centenária casa de madeira na aldeia de Guanlu (província de
Anhui, no leste da China). Ela se mudou para lá para mudar de vida, depois de
morar e trabalhar por muitos anos em edifícios com ar-condicionado.
Ru afirma que o
pátio interno da casa ajudava a criar este efeito refrescante. E ela não é a
única a enumerar os benefícios dos pátios domésticos no clima quente.
"Eles são
arejados, frescos e oferecem sombra", afirma Ru, que tem 40 anos de idade.
Estudos demonstraram
que as temperaturas no interior dos pátios de algumas casas do sul da China são
significativamente menores do que no lado externo, em até 4,3 °C.
Atualmente, com a
China em rápida urbanização, cada vez menos pessoas moram em construções com
pátios internos. Apartamentos com ar-condicionado em edifícios de diversos
andares e blocos de apartamentos são as principais formas de moradia.
Mas o renascimento
do interesse pela arquitetura tradicional chinesa está fazendo com que alguns
edifícios históricos com pátios internos sejam restaurados para os tempos
atuais.
E, com o incentivo
do governo às inovações de baixo carbono no setor da construção civil, já
existem arquitetos buscando inspiração nos pátios e em outras características
da arquitetura tradicional chinesa para ajudar as resfriar as novas
construções.
·
Poço
para o céu
O pátio interno, ou
tiān jǐng (天井, em mandarim –
literalmente, “poço para o céu”), é uma característica típica das casas
tradicionais do sul e do leste da China. Ele é diferente do pátio aberto comum
no norte do país, ou yuàn zi (院子), que é maior e mais exposto ao ambiente
externo.
Os pátios internos
são comuns em residências construídas nas dinastias Ming (1368-1644) e Qing
(1644-1911), projetadas para abrigar diversas gerações de parentes, segundo um
documento publicado pelo Jornal da Universidade de Nanchang, na China, em 2010.
O tamanho e o
projeto dos pátios internos variam de uma região para outra, mas eles são quase
sempre retangulares e localizados no centro da casa. Eles são rodeados por
cômodos nos quatro lados ou em três lados, mais uma parede. Algumas casas
maiores possuem mais de um pátio.
Os pátios internos
são relativamente comuns nas residências históricas de grande parte do sul e do
leste da China, como nas províncias de Sichuan, Jiangsu, Anhui e Jiangxi.
Alguns dos pátios mais preservados podem ser encontrados na região histórica de
Huizhou (徽州), que se estende
entre as atuais províncias de Anhui e Jiangxi.
Os pátios internos
foram idealizados para resfriar as construções em uma era muito anterior à
invenção do ar-condicionado.
Quando o vento
sopra sobre o pátio de uma casa, ele pode entrar no espaço interno através da
abertura no teto. Como o ar externo, muitas vezes, é mais fresco que o interno,
a brisa desce pelas paredes até os andares mais baixos, criando fluxos de ar
pela substituição do ar interno, mais quente, que se eleva e sai através da
abertura.
Yu Youhong tem 55
anos de idade. Há 30 anos, ele restaura casas com pátios internos no distrito
de Wuyuan, na província de Jiangxi, parte da antiga região de Huizhou.
Reconhecido pelo Ministério da Cultura e do Turismo da China como herdeiro de
patrimônio cultural intangível, ele acumulou grandes conhecimentos sobre os
pátios internos das casas chinesas.
Yu explica que as principais
funções dos pátios internos são permitir a entrada da luz, melhorar a
ventilação e coletar água da chuva.
Em Huizhou, os
pátios internos são pequenos e altos. Ele destaca que os cômodos no seu entorno
podem bloquear a luz solar nos dias quentes, permitindo que a parte inferior do
pátio permaneça fresca. E, enquanto isso, o ar quente do interior da casa pode
subir e escapar através da abertura, que “funciona exatamente como uma
chaminé”.
“O piso térreo das
antigas casas de Huizhou normalmente tem tetos altos e está voltado diretamente
para o pátio interno, o que é bom para a ventilação”, segundo Yu. “Algumas
famílias ricas tinham dois ou até três pátios, o que oferecia ventilação ainda
melhor.”
·
Renascimento
cultural e arquitetônico
As construções com
pátios internos existem na China há centenas de anos. Mas elas perderam espaço
- as gerações mais novas preferem instalações mais modernas.
Até que, nas
últimas duas décadas, com o renascimento da arquitetura tradicional chinesa,
como parte do ressurgimento da cultura tradicional da China como um todo, os
pátios internos voltaram a ficar em evidência.
Uma das casas
restauradas por Yu fica na aldeia de Yan, no distrito de Wuyuan.
A residência foi
construída há 300 anos e estava abandonada até 2015, quando foi adquirida pelo
britânico Edward Gawne, ex-diretor de marketing de uma empresa, e sua esposa
chinesa, Liao Minxin.
Com a ajuda de Yu,
o casal transformou a casa de três andares em um hotel boutique com 14
apartamentos.
Gawne e Liao
instalaram ar-condicionado em todos os apartamentos, mas mantiveram os espaços
comuns em torno dos pátios internos no seu estado original – sem vedação e com
fluxo de ar natural.
Gawne afirma que,
mesmo sem ar-condicionado, os pátios são muito confortáveis no verão. “Todos notam,
quando entram na casa, como é naturalmente fresco”, ele conta.
Yu espera que os
pátios internos, enquanto características arquitetônicas, sejam “cada vez mais
populares” entre as gerações mais jovens, devido à sua função de ventilação e
iluminação, especialmente à medida que a sustentabilidade se tornar um elemento
importante para as novas construções.
Mesmo na ausência
de vento natural, a circulação do ar também ocorre dentro de uma casa com pátio
interno devido ao “efeito chaminé”. A diferença de temperatura entre o topo e o
fundo do pátio faz com que o ar quente dentro do pátio suba, retirando o ar
mais fresco dos quartos para a sua parte inferior.
Casas tradicionais
localizadas mais ao sul, na região histórica de Lingnan (岭南) – que consiste nas atuais províncias
chinesas de Guangxi, Guangdong e Hainan, além do norte e da região central do
Vietnã – possuem pátios internos menores e mais profundos, devido aos verões
mais longos e quentes da região.
Como espaço de
transição entre o ambiente interno e o externo, o pátio age como eficiente
protetor térmico para resguardar os moradores contra o ar quente do exterior.
Mas a maior parte do efeito de resfriamento do pátio interno, na verdade,
ocorre quando há massas de água no recinto.
Ao evaporar, a água
resfria o ar quente. Este processo é conhecido como resfriamento evaporativo e
é claramente observado nos pátios internos de Huizhou.
No passado, as
famílias de Huizhou coletavam a água da chuva nos seus pátios por acreditarem
que isso protegeria e aumentaria sua riqueza. Por isso, os pátios internos têm
canais no seu entorno para drenar a água da chuva que desce do telhado.
Yu explica que
algumas famílias ricas instalaram sistemas de drenagem escavados embaixo dos
pátios para garantir que a água da chuva só saísse da casa depois de circundar
o salão de entrada embaixo do solo.
Os pátios internos
de Huizhou também têm uma grande cuba de pedra no meio para armazenar água para
uso diário e apagar incêndios.
Um estudo das
moradias com pátios internos realizado em 2021 em duas aldeias tradicionais de
Huizhou concluiu que o resfriamento evaporativo provavelmente era o principal
fator para que a temperatura média no interior dos pátios ficasse 2,6 a 4,3 °C
abaixo da temperatura média do lado externo.
·
Tecnologia
verde
Atualmente, normas
governamentais estão começando a desempenhar papel importante para a volta dos
pátios internos às construções modernas. Desde 2013, o governo central da China
vem incentivando construções verdes, que economizem recursos e emitam menos poluição
ao longo da sua vida útil.
Uma instrução
governamental de 2019 exigiu que 70% dos edifícios inaugurados em 2022
atendessem aos seus padrões “verdes”, que incluem uma série de critérios
específicos, como a qualidade do isolamento e as características ecológicas do
material de construção.
Os arquitetos estão
agora examinando os princípios dos pátios internos para projetar novos
edifícios que apresentem menor consumo de energia. Um exemplo é o Centro
Nacional de Pesquisa de Tecnologia de Engenharia de Veículos Pesados, na cidade
de Jinan, no leste da China.
A torre de 18
andares com paredes de vidro foi concluída no ano passado. No centro, ela tem
um imenso “poço para o céu”, que se estende do quinto até o último andar. Todos
os elevadores, banheiros e salas de reunião estão situados em volta desse eixo,
o que ajuda a aumentar a iluminação e a ventilação do edifício, reduzindo o
consumo de energia, segundo os arquitetos do grupo CCDI, com sede em Xangai.
Já no distrito de
Jixi, em Xuancheng (parte da região histórica de Huizhou), o prédio da antiga
prefeitura foi reformado em 2013 e transformado em museu. O complexo presta
homenagem ao estilo arquitetônico de Huizhou, com vários pátios internos que,
segundo os responsáveis, trazem o fluxo de ar para o lado interno e ajudam a
preservar diversas árvores antigas do local.
Paralelamente, uma
aldeia turística popular em Sichuan – província conhecida pelo seu verão quente
e úmido – tem uma série de casas redondas com pátios internos e grandes
beirais.
Alguns arranha-céus
adotaram o princípio de ventilação dos pátios internos para aumentar o fluxo de
ar, sem construir pátios externos por questão de praticidade.
A Torre da TBA na
cidade de Dongguan, na província chinesa de Guangdong, é um exemplo. Ela leva
fluxo de ar natural para todos os seus 68 andares com tubos de ventilação que
funcionam de forma similar aos pátios internos.
O objetivo é manter
a temperatura do edifício em níveis confortáveis na primavera e no outono,
usando apenas a ventilação natural, segundo declarou o gerente-geral da torre a
um jornal da região.
A “sabedoria verde”
dos antigos, que inclui os pátios internos, continua a inspirar a adaptação dos
projetos arquitetônicos ao clima atual e às inovações do setor de refrigeração
passiva, segundo Wang Zhengfeng, pesquisadora em pós-doutorado de ciências
humanas ambientais do Instituto de Estudos de Área da Universidade de Leiden,
na Holanda. Wang trabalhou anteriormente como arquiteta.
A refrigeração
passiva é um método que incorpora o design e a tecnologia para resfriar uma
construção sem o uso de energia.
Mas Wang indica que
existem algumas dificuldades para incluir os pátios internos nos designs de
hoje em dia. Os mecanismos dos pátios que possibilitam a iluminação natural, a
ventilação e a coleta de chuva são bem conhecidos, mas seus princípios devem
ser aplicados de forma específica para cada local.
Da mesma forma que
os pátios internos tradicionais eram construídos em diferentes formatos,
tamanhos e características, dependendo em grande parte do seu ambiente natural
– por exemplo, os níveis de luz solar ou chuva de cada região –, acrescentar
pátios às construções modernas requer que os projetistas sejam sensíveis à
situação e ao contexto do seu projeto, o que dificulta sua aplicação como
solução universal, segundo Wang.
“Ao mesmo tempo, a
iluminação artificial, o ar-condicionado e o abastecimento de água são agora
disponíveis com tanta facilidade que nós os utilizamos sem muitas considerações
sobre seu custo ambiental”, explica ela. “Não será fácil ser sustentável
aprendendo com o passado se não refletirmos sobre os nossos comportamentos
atuais.”
Questionada por que
os pátios internos chamaram mais atenção na China moderna, Wang afirma que os
pátios também são projetados para servirem de espaço de reunião para as
famílias ou comunidades. Eles têm um sentido cerimonial.
Para ela, “talvez
as mudanças de estilo de vida também tenham ativado a nostalgia local entre as
pessoas que moram em florestas de concreto e vidro”.
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