O que os pais
entendem errado sobre os 'marcos' da infância
Uma rápida busca
nas redes sociais pelos perfis especializados na criação de filhos irá mostrar
os cartões que indicam os marcos do
desenvolvimento infantil. São cartões em tons pastéis que indicam com que idade
o bebê tentou engatinhar, sentar ou andar pela primeira vez.
Os marcos da infância passaram a
ser motivo de comemoração – ou de preocupação – e não só na internet.
Uma pesquisa
recente concluiu que cerca de seis em cada 10
pais nos Estados Unidos se preocupam
com os marcos de desenvolvimento dos seus bebês. Mas poucos deles sabem quais
são eles e quando eles devem acontecer.
Outros pais podem
tomar o caminho oposto e prestar pouca atenção na idade em que seus bebês
adquirem novas habilidades. Eles confiam que a criança irá se desenvolver no
seu próprio ritmo.
Tudo isso levanta
várias questões. A primeira: qual é a importância dos marcos do desenvolvimento
infantil –
e que uso os pais devem fazer deles?
Os marcos da
infância são uma ferramenta fundamental que pode nos ajudar a identificar mais
cedo quando algo está errado? Ou são apenas mais uma forma de competição entre
os pais?
As respostas
dependem, em parte, do que entendemos exatamente como marcos do desenvolvimento
infantil.
Em primeiro lugar,
os motivos que levam os profissionais de saúde a considerar importantes os
marcos de infância podem ser diferentes das visões dos pais.
"Muito
concretamente falando, o marco é a definição de um comportamento que os pais
afirmam que a criança pode fazer ou não", segundo o professor de pesquisa
Chris Sheldrick, da Universidade de Boston, nos Estados Unidos. Ele estuda os
protocolos de análise pediátrica.
Sheldrick destaca a
própria origem do termo e recorre ao atletismo.
Se você disputar
uma corrida de 10 mil metros, por exemplo, pode haver um marcador na altura dos
5 mil. Por definição, no início da corrida, ninguém havia passado por ali. Mas,
no final da disputa, todos terão ultrapassado aquele marco.
Comparar o
progresso de um bebê específico ao longo desses marcos pode ajudar os
profissionais de saúde a avaliar seu desenvolvimento. Mas, como os pais
conhecem melhor seus filhos, os especialistas
afirmam que talvez seja uma boa ideia fazer com que eles próprios tenham uma
ideia aproximada de quando os bebês costumam fazer as coisas pela primeira vez.
Neste ponto, é
preciso destacar que existem sérias ressalvas quanto à
noção de desenvolvimento "normal", como veremos mais adiante.
·
Personalidade
ou sinal de patologia?
Alguns pais mantêm
uma visão muito despreocupada sobre os marcos de desenvolvimento infantil. Eles
consideram, por exemplo, que seu filho ainda não tentou engatinhar ou andar
simplesmente porque sua personalidade é mais tranquila.
Mas os
profissionais de saúde defendem que estes pais podem estar deixando passar
outros motivos.
Os marcos da
infância podem servir para identificar problemas e oferecer o apoio certo de
forma precoce.
"É claro que
existem crianças com personalidades que influenciam o que elas estão dispostas
a fazer. Por isso, elas podem apresentar tendência a este desenvolvimento mais
atrasado", explica a terapeuta física pediátrica Kaitlin Rickerd, de Nova
York, nos Estados Unidos.
"Mas, quando
começa a sair das faixas esperadas, normalmente existe alguma coisa que precisa
ser verificada. Existe um motivo, não importa se o atraso for grande ou
pequeno."
Atrasos de
desenvolvimento são comuns e uma em cada seis crianças passa por eles nos
Estados Unidos.
E um atraso isolado
não caracteriza uma condição médica. Um estudo que envolveu 404 crianças com 18
meses de idade que não andavam de forma independente, por exemplo, concluiu que
dois terços delas não apresentavam patologia subjacente.
Mas, quando existe
um problema, é fundamental intervir o mais cedo possível. Atrasos da fala, por
exemplo, podem sinalizar autismo. E andar mais
tarde pode ser um sintoma de paralisia cerebral.
Identificar
precocemente essas diferenças pode ajudar os pais a compreender e auxiliar no
desenvolvimento particular dos seus filhos.
"Sabemos que,
nos primeiros três anos de vida, o volume do crescimento do cérebro, a quantidade de
aprendizado e de marcos do desenvolvimento atingidos por uma criança é enorme –
o que também significa que este é o melhor período para intervir e fazer a
diferença", explica Rickerd.
Mas os marcos da
infância são mais do que um instrumento para identificar questões subjacentes,
segundo ela. Depois de trabalhar em pediatria com crianças maiores, ela
observou que deixar de dominar uma técnica pode causar um efeito cascata.
A eventual
dificuldade para segurar o lápis e escrever, por exemplo, pode estar
relacionada à fraqueza dos arcos das mãos. Ela pode ter se desenvolvido porque
a criança não segurou peso quando bebê, seja engatinhando ou brincando de
barriga para baixo, explica ela.
·
Definindo
padrões
Esta visão
profissional dos marcos do desenvolvimento infantil, principalmente como
instrumento de avaliação, é diferente da forma como alguns pais tratam desses
marcos no dia a dia: como um indicador que prevê, às vezes de forma
competitiva, a capacidade ou o talento das crianças.
De fato, existem
evidências que demonstram que atingir certos marcos da infância mais cedo pode
indicar inteligência superior ou que a criança irá atingir maior grau de educação no futuro.
Mas Sheldrick explica que isso é válido entre populações inteiras, não para
crianças específicas.
Se existir uma
chance em um milhão para que uma criança com desenvolvimento normal se torne
jogador de futebol profissional, por exemplo, um bebê que ande mais cedo talvez
tivesse uma chance em 900 mil, segundo ele.
Forçar as crianças
a adiantar seus marcos de desenvolvimento também pode ser contraproducente.
Existem evidências, por exemplo, de que o uso frequente de andadores e
saltadores pode prejudicar o desenvolvimento motor dos bebês.
Sheldrick destaca
que a própria metáfora da corrida com marcadores não se encaixa exatamente na
complexa realidade do desenvolvimento humano.
Quando você assiste
a uma corrida, você sabe quais corredores estão a exatamente 1 km da marca de 5
km. Você pode estimar quando eles irão chegar lá.
Quando eles
chegarem, você sabe exatamente o momento em que isso aconteceu. E todos os
corredores que terminarem a corrida irão atingir aquela marca em algum momento.
Mas as marcas de
desenvolvimento infantil não oferecem esta clareza, nem são um conceito
universal. Sua definição e interpretação podem sofrer variações consideráveis
entre as diferentes culturas – e até entre
uma família e outra.
"Um bom
exemplo é 'seu filho pode andar?'", explica Sheldrick. "O que você
quer dizer com 'andar'? Seu filho consegue andar 1 km? Ele pode andar até o
poço e voltar? Ele deu alguns passos?"
Esta confusão
explica por que novas ferramentas de avaliação tentam usar expressões mais
específicas, como os marcos atualizados, definidos recentemente pelos Centros
de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês)
e pela Academia Americana de Pediatras (AAP).
O que deixa tudo
ainda mais complicado é o fato de que o desenvolvimento das crianças é muito
rápido.
Uma criança que não
anda aos 18 meses pode começar a correr aos 19. Mas, se a criança só for
examinada aos 18 meses, ela pode ser identificada como não estar seguindo os
"padrões".
E existe a questão
da avaliação. Como decidir quando algo "deve" acontecer? Com base em
quais dados?
A recente mudança
dos marcos de desenvolvimento dos CDC e da AAP destacou muitas destas questões.
Como fizeram muitas
outras listas oficiais de marcos da infância, os dois organismos se basearam,
por quase 20 anos, no percentil 50 – ou seja, se 50% das crianças pudessem
fazer algo com uma certa idade, aquela era a idade para aquele marco de
desenvolvimento.
Com isso, os outros
50% dos cuidadores poderiam ficar preocupados sem necessidade. E também era um
incentivo para que os pediatras "aguardassem para ver" o que
aconteceria com as crianças que não atingissem um certo marco da infância – o
que, às vezes, era prejudicial.
"Os pais de
crianças com deficiências relatavam atrasos na sua identificação porque eram
orientados a esperar, pois as crianças se desenvolvem de forma diferente e
algumas levam mais tempo do que outras", escreveram os pesquisadores que
participaram das alterações.
Por tudo isso, no
começo de 2022, os CDCs alteraram seus marcos de desenvolvimento para o
percentil 75. Mas, agora, o risco é o contrário: com as idades postergadas, as
famílias podem demorar mais para observar o atraso das crianças.
Surge, então, a
questão sobre a origem dessas expectativas.
·
Diferenças
culturais
Historicamente,
existem relativamente poucos dados sobre grandes populações de crianças e seus
marcos de desenvolvimento.
No século 20, o
psicólogo americano Arnold Gesell (1880-1961) foi o primeiro a quantificar os
marcos motores da infância. Ele observou bebês de famílias brancas de classe
média de New Haven, no Estado americano de Connecticut, e descreveu seu
comportamento, movimentos e expressões ao longo do tempo.
Desde então, grande
parte das evidências sobre os marcos da infância se baseou na população
ocidental. Mas o desenvolvimento inicial pode ter aparência muito diferente em
outras culturas.
No Tajiquistão, por
exemplo, é comum enfaixar os bebês até os dois anos de idade e deixá-los no
berço, mesmo estando acordados. As crianças do país, de fato, desenvolvem
habilidades motoras mais tarde que no Ocidente, mas aparentemente não
demonstram efeitos prejudiciais de longo prazo.
Já na tribo Efe, na
República Democrática do Congo, bebês de 11 meses já usam facões para cortar
frutas. É desnecessário dizer que este marco não está na lista dos CDC e que
ninguém se preocupa em saber se os bebês americanos conseguem a mesma façanha.
Tudo isso, sem
falar que as expectativas dos pais também variam. Um estudo mais antigo, de
1997, por exemplo, concluiu que os pais europeus e americanos acreditavam que
as crianças deveriam se alimentar sozinhas com 13,7 meses, mas os pais de Porto
Rico só esperavam este comportamento com 19 meses.
Funcionários do
Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) vivenciaram recentemente estas
complexidades culturais em primeira mão.
Um dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas define que todas as crianças
devem estar em dia com seu desenvolvimento. Para isso, o Unicef precisou
desenvolver um instrumento que todos os países pudessem adotar.
A questão, segundo
a consultora sênior do Unicef, Claudia Cappa, foi: "Podemos criar algo que
seja equivalente aos padrões de crescimento? Podemos chegar a uma criança
'normal'?"
O trabalho levou
cinco anos e reuniu 200 escritórios nacionais de estatísticas, pediatras e
especialistas no desenvolvimento infantil. E um dos maiores desafios foi como
tornar estas questões universais.
Na zona rural do
México, por exemplo, a equipe do Unicef descobriu que as pessoas poderiam não
entender se eles perguntassem se uma criança consegue empilhar blocos. Eles
tinham mais sorte perguntando se a criança podia empilhar lenha.
Em um estudo
destacando a necessidade de uma perspectiva multicultural para a questão, os
pesquisadores criticaram a visão convencional dos marcos de desenvolvimento.
"Os marcos
motores da infância são um entrave para a criação de uma abordagem integral do
desenvolvimento infantil", escreveram eles. "Os marcos motores são
apenas uma percepção do que é uma habilidade importante; são convenções
culturais, não conceitos universais."
Atualmente, muitos
especialistas no desenvolvimento infantil estão conscientes destas limitações e
tentam corrigi-las. A lista atualizada dos CDCs, por exemplo, utiliza fontes
como um estudo com cerca de 5 mil crianças da Argentina, Índia, África do Sul e
Turquia.
Mas a questão
permanece: quantos dados e quantas culturas precisam estar representadas para
que uma lista de marcos do desenvolvimento seja realmente
"universal"?
E, mais do que
isso, seria até mesmo possível chegar a esta conclusão?
Para os pais,
talvez valha a pena relembrar que os marcos da infância devem ser úteis, não
motivos de ansiedade.
Para Sheldrick,
"os marcos de desenvolvimento são importantes. Vale a pena prestar atenção
neles."
"Se você notar
alguma coisa preocupante, você deve verificar. Mas não se desespere."
Afinal, a vida é
"longa e complicada". E é improvável que ela seja definida pelo fato
de você andar aos 18 ou aos 20 meses de idade.
Fonte: BBC Future
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