Fernando Sarti: “O
Brasil tem que ser muito hábil e manter sua soberania”
Ainda sem certeza
qual a intensidade e a velocidade da política
protecionista americana de Trump, que voltou à presidência no dia 20 de
janeiro, o Brasil pode ter uma oportunidade nesta disputa de mercado para
melhorar e ampliar suas relações externas. “É possível que a reação
chinesa abra
espaço para alguns setores brasileiros, a partir do momento em que haja alguma
retaliação às exportações americanas”, aponta o professor Fernando
Sarti.
Sarti afirma
que a indústria brasileira pode abocanhar novos investimentos diante de uma
política externa refratária dos EUA, tanto dos chineses como dos europeus. Além
do protecionismo americano, há uma outra questão importante que pode ser
positiva para o Brasil
e a América Latina.
“O reposicionamento das grandes corporações dentro das cadeias globais de valor
desde a pandemia, por ter havido um excesso de concentração e dependência da
produção na Ásia e na China. Muitas grandes corporações estão se
reposicionando, buscando novos parceiros além dessas regiões”, explica o
pesquisador.
Sarti afirma
que a indústria brasileira pode abocanhar novos investimentos diante de uma
política externa refratária dos EUA, tanto dos chineses como dos europeus. Além
do protecionismo americano, há uma outra questão importante que pode ser
positiva para o Brasil
e a América Latina.
“O reposicionamento das grandes corporações dentro das cadeias globais de valor
desde a pandemia, por ter havido um excesso de concentração e dependência da
produção na Ásia e na China. Muitas grandes corporações estão se
reposicionando, buscando novos parceiros além dessas regiões”, explica o
pesquisador.
A respeito do acordo
Mercosul e União Europeia, fechado por Lula em dezembro de 2024,
avalia haver mais pontos positivos do que negativos para o Brasil, embora saliente
preocupação com a paralização da indústria brasileira. “Vai em direção
contrária ao protecionismo colocada pelo atual governo dos EUA. Então não
vejo com tantos problemas. Houve avanços importante, se
o Brasil souber aproveitar seu potencial interno, com relação à
margem que foi dada na negociação no UE, inclusive, pode trazer investimentos
relevantes para cá”.
Nesta entrevista
concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele critica
os rentistas que só querem viver de juros. “Basicamente,
diria que o capital encontra, na ideia de baixo crescimento econômico, sua
continuidade na acumulação de riquezas sem produzir nada. Claramente eles (os
agentes financeiros, mercados) querem um processo concentrador de renda por
meio de juros altos, sob baixa taxa de crescimento. Para eles é o ideal”,
lamenta.
Sarti destaca
ainda ser difícil governar e desenvolver um país diante de um Congresso que tem
mais gana por emendas
parlamentares do
que pelos interesses nacionais. “Próprio Congresso é muito
conversador, e tem uma parcela bastante hostil ao governo. Já o grupo
do Centrão impõe sua agenda e pressiona o governo, transformando
o presidencialismo
de coalizão num
presidencialismo de coerção”, afirma.
<><> Confira
a entrevista.
·
Como
avalia a economia brasileira e o desenvolvimento do país à luz da terceira
gestão do governo Lula?
Fernando
Sarti - Vamos lembrar que este governo teve que enfrentar dificuldades de
todas as ordens, das políticas econômicas, tanto internas quanto externas. Do
ponto de vista externo, houve um período de inflação global importante, além de
todo estresse sobre as cadeias globais de valor, somado às guerras. Tudo mexeu muito
nos preços de energia globalmente, por exemplo. Então, houve realmente um
impacto aí da inflação que o governo teve que tratar.
Já do ponto de
vista interno, acho que as maiores dificuldades têm a ver, em primeiro lugar,
com a situação absolutamente excepcional: a tentativa
de golpe e
o desmanche do país. Não foi uma coisa trivial, representou um risco muito
sério à democracia, além de um desgaste político grande. Ao mesmo tempo, o
próprio Congresso é muito conversador, e tem uma parcela bastante
hostil ao governo. Já o grupo do Centrão impõe sua
agenda e pressiona o governo, transformando o presidencialismo de
coalizão num presidencialismo de coerção.
Aí se pode observar
claramente, não é só de agora, mas há algum tempo, que o poder executivo vem
perdendo poder em relação ao legislativo, sobretudo, por causa das emendas
parlamentares. Tudo isso atrapalha o desenvolvimento do país e a execução da
política econômica, da política pública, de uma forma geral.
Por outro lado,
apesar de todas essas dificuldades, seja no plano político, no plano econômico,
interno ou externo, é um governo que, em dois anos, entregou bastante coisa.
Nós tivemos um crescimento acima da média dos últimos anos de 3% do PIB, o que não é
pouco. Estamos num nível mais baixo de desemprego das últimas décadas,
obviamente um aumento da transferência de renda e da redução
de pobreza.
Então, nesse ponto de vista, é o atendimento de uma agenda social que estava
colocada, era uma promessa do programa de governo, que foi entregue. Ainda do
ponto de vista econômico, as contas externas em uma situação bastante
tranquila, com geração de superávits comerciais.
·
Alguns
especialistas avaliam que o governo está refém dos rentistas. Concorda? Quais
os impactos disso na política industrial e no desenvolvimento do país como um
todo?
Fernando
Sarti - Sim, é refém do mercado financeiro, mas isso não é novidade, algo
que já vinha acontecendo com governos anteriores. Temos que contextualizar um
pouco isso dentro do que vem ocorrendo também globalmente. Isso é próprio sistema
capitalista, um processo de acumulação
do capital sob
a dominância financeira. Isso é generalizado, talvez com algumas poucas exceções,
como é o caso da China, realmente colocando um aumento no poder financeiro
e dos donos do capital na política. Portanto, os capitalistas e seus gestores,
impõem condição bastante assimétrica. Um exemplo, para ver, é a recente
especulação cambial. É o sistema financeiro que avalia risco a partir das suas
expectativas, o que é o melhor para eles. Dessa forma, o sistema financeiro
avalia o risco e o precifica.
Quando se vê uma
desvalorização cambial como ocorreu, essa puxada da taxa de juros, são os preços
precificados pelo próprio mercado a partir das suas avaliações com relação ao
risco, conforme seus interesses. Isso faz com que, evidentemente, esse poder
concedido ao sistema financeiro subordine, tanto a política
monetária quanto a fiscal, respaldando as suas demandas e interesses.
Basicamente, eu diria que o capital encontra, na ideia de baixo crescimento
econômico, sua continuidade na acumulação de riquezas sem produzir nada. A
experiência que o mercado teve nos demais governos progressistas de crescimento
produtivo, levou a um conflito distributivo. E isso não interessa o mercado
financeiro.
Claramente eles
querem um processo concentrador de renda por meio de juros altos, sob
baixa taxa de crescimento. Para eles até é o ideal. E aí, obviamente, com a
geração e extração de valor, seja da forma fictícia, seja durante a economia.
Mas, evidentemente, para eles o processo de acumulação é cada vez mais
independe do crescimento. Essa é uma questão importante que tem que ser
considerada.
·
O
senhor está entre os economistas que costumavam chamar a atenção para o
processo de desindustrialização do Brasil nas últimas décadas. Como está esse
processo? Há focos de industrialização com desindustrialização?
Fernando
Sarti - É óbvio que o Brasil passa para um processo
de desindustrialização. Claro, não é um processo generalizado no mundo,
porque quando se olha para os indicadores que mensuram a desindustrialização,
nem todos os países embarcaram nessa tendência, alguns sim. Porque há realmente
algumas economias emergentes, mais dinâmicas, que têm participação do valor
agregado, manufatureiro ou industrial, ainda se mantendo no crescente em
relação ao PIB. No caso do Brasil, não, isso realmente é declinante.
Isso se dá por dois
fatores, vetores. O primeiro que, obviamente, tem a ver com o que ocorre hoje.
Que a gente chamaria de “chinalização”, nessa crescente participação da fábrica
asiática, em particular a fábrica chinesa, como grande motor de produção
industrial global, em volumes, em escalas absolutamente excepcionais, provocado
vários efeitos. Esse grau de concentração da indústria nessa região, só para
ter uma ideia, quando se pega o valor agregado, o manufatureiro chinês,
sozinho, é maior do que somar o segundo (americano), o terceiro (alemão), o
quarto (japonês), e o quinto (coreano). Algo inédito, que mostra como houve uma
concentração importante da produção.
Com essas escalas,
você impressiona o próprio preço dos produtos. Investimentos industriais. Essa
é uma condição que está colocada e é uma dificuldade para você rentabilizar o
ativo industrial, ter retorno com os investimentos industriais. Para um país
como o Brasil, que precisa de um processo de reindustrialização,
claramente essa é uma dificuldade importante que tem que ser considerada.
Um outro aspecto
importante, além da escala, é a questão do que a gente tem observado nas
mudanças tecnológicas, em particular as tecnologias digitais. Estamos falando
de inteligência
artificial,
internet das coisas e todas as demais tecnologias, que claramente propiciada
uma mudança importante, um dinamismo importante na fronteira tecnológica. E,
neste vetor, o Brasil também está aquém.
Então temos duas
pressões importantes, diria dois tsunamis: de um lado essa concentração
industrial, escala industrial que é provocada pela concentração da produção na
Ásia, na China; e, do outro lado, essa mudança na fronteira tecnológica.
Os dois fenômenos são desafios importantes para a indústria brasileira e, se
não houver uma reação importante do ponto de vista da política, promover o
desenvolvimento produtivo e tecnológico, isso só tende a acentuar
a desindustrialização no Brasil.
·
O
acordo entre Mercosul e União Europeia tem sido criticado por alguns
especialistas que o veem como uma possibilidade de acentuar a condição
agroexportadora brasileira. Como avalia a proposta de acordo?
Fernando
Sarti - Vejo o acordo de forma mais positiva do que negativa. Primeiro,
a Europa cedeu em diversos pontos na negociação com o governo
Lula,
muito mais favoráveis ao Brasil do que se tive no governo
Bolsonaro.
As condições que se tinham lá atrás, realimente feriam a soberania nacional.
Seja o fato de abrir não dos critérios de compras governamentais, seja de
renunciar às questões ambientais. Claro, a União Europeia também está
fragilizada internamente, então houve realmente uma cedência em favor do Brasil
nesse acordo.
Assim, não vejo,
honestamente, esse acordo, da forma que foi desenhado, positivo. Claro, há
pontos que podem reforçar inserção do agro, mas também indústria, entre elas a
automobilística. Penso que o acordo fosse prejudicial à indústria, a Fiesp não
teria o apoiado.
Além do mais, vai
em direção contrária ao protecionismo colocada pelo atual governo dos EUA.
Então não vejo com tantos problemas. Houve avanços importante, se o Brasil
souber aproveitar seu potencial interno, com relação à margem que foi dada na negociação,
inclusive, pode trazer investimentos novos para cá dos europeus e chineses.
·
O
que a inserção de empresas chinesas no Brasil significa e representa para a
economia e a indústria brasileira?
Fernando
Sarti - Crescente protagonismo pelo mercado chinês no cenário global,
rivalizando, questionando a hegemonia norte-americana, está cada vez mais
explicitado. Teremos que ver agora o jogo em relação ao mercado americano,
diante do protecionismo anunciado por Trump. E, mais do que isso, qual vai
ser o papel cada vez mais esvaziado das instituições internacionais, como Banco
Mundial e
a Organização Mundial do Comércio. Elas parecem muito desgastadas e não
dão conta mais de serem os instrumentos entre essas duas economias hegemônicas.
A resposta
da China ao protecionismo americano para nós ainda é uma incógnita,
certamente outros mercados vão ganhar importância dentro da estratégia chinesa.
O Brasil é certamente um deles, fundamental, como vai ser para toda
a América Latina, com a ideia da China de expandir seus investimentos em
infraestrutura, trazer seus investimentos industriais, que já tem ocorrido
aqui.
Logo, acho que tudo
isso vai implicar necessariamente uma nova relação
Brasil-China,
que temos que aproveitar, mais cuidar também, porque isso vai representar um
ponto de vista da dinâmica industrial, das relações internas também com a
China.
Há riscos e
oportunidades. De um lado, é importante para o Brasil esses investimentos, mas
tem que manter a sua soberania, além de promover desenvolvimento tecnológico em
áreas estratégicas, o que não é uma tarefa fácil diante das relações com
a China. Mas, certamente, o Brasil passa a ser, também agora, dentro das
estratégias chinesas, um mercado mais importante diante do posicionamento
americano bastante protecionista.
·
A
China está remodelando a geopolítica internacional com sua estratégia de
desenvolvimento sustentável?
Fernando Sarti -
Essa é uma incógnita. Obviamente que há uma preocupação, não apenas chinesa,
mas global, de um processo de transição
para energias limpas.
Já no caso americano, diante da posição
negacionista do Trump,
isso vai ser um retrocesso. Não sei como a China vai usar isso como uma moeda
importante de troca, ou mesmo de dar visibilidade à sua política externa. Não
podemos esquecer, entretanto, a China também tem uma matriz, apesar
de todos os avanços, energética bastante suja.
O que é certo, como
já comentei anteriormente, é esse aumento do protagonismo chinês na agenda
internacional e com uma posição cada vez mais forte do ponto de vista da
geopolítica. Repito, acho que a Brasil e a América
Latina vão ganhar ainda mais importância.
·
Elon
Musk é um empresário com relações políticas e empresariais em vários países e
em várias empresas. O que essa atuação e influência significam do ponto de
vista da geopolítica e das relações comerciais entre os países, especialmente
agora que ele integra a equipe do governo Trump?
Fernando
Sarti - Musk e Zuckerberg, a Meta e todas as
demais plataformas, têm um poder realmente impressionante. Isso preocupa, não
apenas pelo grau de concentração, mas seus interesses, essa aproximação dos
seus proprietários e empresas às estratégias da extrema-direita. Além disso, têm
uma visão distorcida do que é liberdade de expressão, posicionando-se
absolutamente contra qualquer nível de regulamentação nas redes. Então,
o Brasil tem que realmente fazer esforço junto, sobretudo, aos países
europeus para que haja um contraponto nisso, para que a gente não veja esse
grau de concentração e esse uso
por parte da extrema-direita das plataformas digitais, na política, no
dia a dia das economias dos demais países.
·
Como
o Brasil deve se posicionar neste cenário?
Fernando
Sarti - Precisamos saber com qual intensidade vai chegar a nova política
americana. Protecionismo certamente vai minar as relações, não apenas
comerciais, mas também políticas, seja com o Canadá, México,
ou Brasil. Por outro lado, nós temos a China com interesse de crescer na
região. Então o Brasil vai ter que aproveitar esse contencioso, certamente o
próprio protecionismo americano em relação aos chineses. É possível que a
reação chinesa abra espaço para alguns setores brasileiros, talvez o agro seja
um desses beneficiados, a partir do momento que haja alguma retaliação às
exportações americanas.
Por outro lado, há
uma outra questão importante que vem antes do governo Trump: o
reposicionamento das grandes corporações dentro das cadeias globais de valor
desde a pandemia, por ter havido um excesso de concentração e dependência da
produção na Ásia e na China. Muitas grandes corporações estão se
reposicionando, buscando novos parceiros além dessas regiões.
O Brasil tem
que ser muito hábil nessa hora para se mostrar um mercado importante, também
para esses investimentos, mantendo, evidentemente, toda a sua soberania.
Contudo, buscar aspectos positivos dessas relações comerciais e produtivas.
Esse é o grande desafio da diplomacia brasileira que tem se mostrado muito
competente nesse atual governo.
Fonte: IHU
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