segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

José Luís Fiori: A América do Sul à beira do futuro

Às vezes de forma mais lenta, às vezes mais acelerada, algumas mudanças vêm acontecendo no panorama geopolítico e geoeconômico da América do Sul. Em alguns casos, reforçando velhos caminhos e “vocações” do continente; em outros, abrindo novas perspectivas e oportunidades que poderão ou não ser aproveitadas pelos 12 países que convivem lado a lado dentro desse território recortado por tantas barreiras geográficas, e tão próximo dos Estados Unidos. Destacamos em seguida quatro mudanças que deverão pesar decisivamente sobre o futuro continental:

<><> I) O aumento da assimetria sul-americana

Em 1950, os dois países mais ricos da América do Sul – Brasil e Argentina – tinham mais ou menos o mesmo PIB, apesar de que os argentinos tivessem uma renda per capita, homogeneidade social, nível educacional e qualidade de vida extraordinariamente superiores em relação aos brasileiros. Hoje, setenta anos depois, a situação mudou radicalmente: se o PIB dos dois países girava em torno de US$ 80 bilhões em 1950, 70 anos depois, o PIB brasileiro multiplicou 23 vezes e é hoje de cerca de US$ 2,17 trilhões, enquanto o argentino multiplicou-se apenas oito vezes no mesmo período, sendo hoje de 640 bilhões de dólares. Uma assimetria entre os dois países que tende a aumentar exponencialmente nos próximos anos, e muito mais ainda entre o Brasil e os demais países sul-americanos. Hoje, o Brasil já possui metade da população e do produto sul-americano, e é o único país da região que tem alguma presença no tabuleiro geopolítico internacional.

Depois do Golpe de Estado de 2016, entretanto, e até 2022, dois sucessivos governos de direita alteraram radicalmente a política externa, afastando o Brasil de todas as iniciativas integracionistas na América do Sul, ao mesmo tempo que se alinhava aos Estados Unidos e à OTAN, frente aos conflitos internacionais fora do continente. Em 2023, entretanto, o país retomou o rumo anterior de sua política externa e vem assumindo posições cada vez mais ativas no campo internacional, no grupo do BRICS, na presidência rotativa do G20 e na liderança mundial da luta pela sustentabilidade e controle das mudanças climáticas. No seu próprio continente, entretanto, o Brasil vem encontrando grandes resistências, que muito têm a ver com o aumento da assimetria regional, em que o Brasil aparece hoje como uma espécie de “elefante no meio da sala”.

<><> ii) A expansão da presença chinesa

A segunda grande transformação da América do Sul, nas primeiras décadas do século XXI, foram o surgimento e a expansão acelerada do papel da China no desenvolvimento econômico do continente. Em apenas três décadas, o fluxo comercial entre América do Sul e China cresceu de US$ 15 bilhões em 2001, para cerca de US$ 300 bilhões em 2019. E o fluxo dos investimentos diretos chineses na região cresceu e se manteve em torno de US$ 10 bilhões anuais, em média, entre 2011 e 2018. Brasil, Peru e Argentina receberam a maior parcela desses investimentos até 2022, ficando o Brasil com 22% deste total, incluindo a fabricação de veículos elétricos, aquisição de ativos de lítio, expansão da Huawei e de outras empresas chinesas de data centers, computação em nuvem e tecnologia 5G, e em grande quantidade de infraestrutura elétrica.

Nas duas primeiras décadas do século XXI, a China também dobrou sua participação nas importações realizadas pelos países sul-americanos, cujo valor bruto cresceu mais de 700%, enquanto as exportações brasileiras para a América do Sul, por exemplo, no mesmo período, cresceram menos de 40% do crescimento chinês. Mesmo durante a crise econômica de 2008, a participação brasileira no mercado argentino recuou de 42% para 31,5%, enquanto a participação chinesa subiu de 21,5% para 30,5%. E o mesmo aconteceu na Venezuela, onde a participação chinesa subiu de 4,4% em 2008, para 11,5% nos quatro primeiros meses de 2009.

Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, do Chile e do Peru na América do Sul, e está entre os três maiores parceiros comerciais de todos os países do continente. Só no caso brasileiro, 30,6% de suas exportações em 2023 foram para a China, que foi ao mesmo tempo o maior fornecedor de bens importados pelo Brasil. E oito países sul-americanos já fazem parte da iniciativa da Belt and Road chinesa: Argentina, Peru, Bolívia, Chile, Guiana, Suriname, Uruguai e Venezuela.

Na linguagem estruturalista clássica, pode-se afirmar que nesse período a China se transformou no novo “centro cíclico principal” da economia sul-americana. E hoje, como no passado, o principal interesse dos chineses na América do Sul segue sendo seus recursos naturais e minerais, apesar de também estarem participando das grandes licitações governamentais da região. E o cenário para os próximos anos promete uma oferta excedente de produtos e capitais chineses, que deve derrubar barreiras e constituir um imenso desafio competitivo para os capitais norte-americanos e brasileiros.

<><> iii) A nova estratégia norte-americana de “polarização mundial”

A terceira grande mudança aconteceu no campo das relações da América do Sul com os Estados Unidos, que nunca abandonaram sua Doutrina Monroe, formulada em 1823 com o objetivo de combater e expulsar a influência europeia do continente sul-americano. A diferença é que, no século XIX, esse discurso era contrário aos interesses das potências coloniais europeias, e favorável à independência de suas colônias sul-americanas. Na primeira metade do século XX, entretanto, a mesma doutrina legitimou a intervenção norte-americana na América Central e Caribe, para mudar governos e regimes que eles consideravam contrários aos seus interesses. E na segunda metade do século, ela voltou a ser utilizada para “proteger” os países da América do Sul, só que agora contra a “ameaça comunista”, que justificou o apoio norte-americano a uma sucessão de golpes e regimes militares que liquidaram a democracia no continente, destruindo ao mesmo tempo sua soberania e seus projetos autônomos de futuro.

No início do século XXI, durante a sua “guerra global ao terrorismo”, os Estados Unidos reduziram seu grau de envolvimento político com os assuntos sul-americanos. Um “déficit de atenção” que durou até o “desembarque” econômico dos chineses na América do Sul na segunda década do século, e até o início do conflito entre os Estados Unidos e a Rússia, na Ucrânia, após o golpe de Estado de 2014.

Desde então, os Estados Unidos vêm se propondo “repolarizar o mundo” no estilo da Guerra Fria do século XX, de maneira que os demais países do sistema internacional, e também da América do Sul, teriam que se posicionar de um lado ou de outro da “linha vermelha” estabelecida por eles e seus aliado europeus.

<><> iv) O declínio do projeto de integração sul-americano

A maioria dos países sul-americanos superou o impacto da crise de 2008 mais rapidamente do que no resto do mundo, graças à grande demanda de seus produtos de exportação por parte das economias asiáticas, da China em particular, que sustentaram as quantidades e os preços das commodities sul-americanas num nível extremamente elevado. Mas este sucesso de curto prazo provocou um efeito inesperado em toda a América do Sul, ao aprofundar, de forma paradoxal, as velhas dificuldades enfrentadas desde sempre pelo projeto de integração econômica da América do Sul. Basta dizer que, na América do Norte, o comércio intrarregional é da ordem de 40% do seu comércio global; na Ásia, de 58%; e na Europa, de 68%; enquanto na América do Sul, mal chega aos 18%.

·        Os caminhos do futuro

Dividida em blocos, e com a maior parte dos países separados ou distantes do Brasil, por conta do contencioso venezuelano, a América do Sul deverá se manter na sua condição tradicional de periferia econômica do sistema internacional, mesmo diversificando e ampliando seus mercados na direção da Ásia. Para não ser assim, o Brasil terá que assumir a “liderança material” do continente, construindo uma estrutura produtiva que combine indústrias de alto valor agregado e tecnologias de ponta, com a produção de alimentos e commodities de alta produtividade, mantendo sua condição de grande produtor de energia tradicional e “energia limpa”. Neste caso, o Brasil poderá mudar o rumo da região, transformando-se na sua “locomotiva econômica”, por cima das divergências políticas e ideológicas que hoje dividem e imobilizam um continente que – sem o Brasil – não tem a menor relevância geopolítica dentro do Sistema Mundial.

Neste ponto, entretanto, não há como enganar-se: o Brasil enfrentará nos próximos anos uma concorrência acirrada e um boicote explicito do governo de Donald Trump que considera que a única relevância da América do Sul é pertencer ao “quintal dos Estados Unidos”.

 

¨      Dentro e fora dos portões de Davos. Por Sergio Ferrari

O Fórum Econômico de Davos foi aberto na segunda-feira, 20 de janeiro, quase paralelamente à posse, em Washington, de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Os 6.700 quilômetros que separam a capital dos Estados Unidos dessa cidade suíça também marcaram distâncias conceituais fundamentais entre o projeto protecionista do novo presidente dos Estados Unidos –exposto em seu discurso inaugural na Casa Branca– e o compromisso ainda atual do Fórum de Davos com o livre mercado e a globalização.

Apesar da distância quilométrica e das nuances que diferenciam as duas visões –nuances de um modelo hegemônico que compartilham– Trump foi uma das referências dessa edição do Fórum. Na quinta-feira, 23, ele se tornou a grande estrela do conclave com um discurso digital no qual reiterou as linhas gerais de seu pensamento hegemônico de “América primeiro” já antecipado em sua campanha eleitoral e na cerimônia de posse.

·        Davos 2025

Essa 55ª edição do Fórum Econômico (conhecido como WEF, por sua sigla em inglês), realizado entre os dias 20 e 24 de janeiro, reuniu mais de 2.500 representantes dos setores econômico, político, científico e cultural de 130 países, além de cerca de sessenta chefes de Estado e de Governo.

presença política da América Latina foi relativamente escassa. Em diversos debates ou com discursos públicos em nível presidencial estavam presentes o argentino Javier Milei; sua colega Dina Boluarte, do Peru, e José Raúl Mulino, do Panamá. Também Ilan Goldfajn, chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento, além de ministros de outros países, entre outros: Maisa Rojas Corradi e Alberto van Klaveren, do Chile; Alicia Bárcena e Marcelo Ebrard, do México, e Víctor Bisonó Haza, da República Dominicana.

Da Europa, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia; o chanceler alemão Olaf Scholz e seu homólogo espanhol, Pedro Sánchez; Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu e os primeiros-ministros da Bélgica, da Irlanda, dos Países Baixos e da Suécia, juntamente com os presidentes da Polônia, da Sérvia e da Ucrânia.

·        Inteligência artificial

“Colaboração para a era inteligente” foi o tema central de Davos. De acordo com Klaus Schwab, diretor do evento, “as tecnologias convergentes estão transformando rapidamente o mundo, empurrando-nos para um ponto de inflexão” e marcando “uma era que vai muito além da tecnologia…. é uma revolução social, que tem o poder de elevar a humanidade, ou mesmo fraturá-la”.

Daí as grandes questões que surgiram nesse evento: como garantir a colaboração em uma era de tecnologias convergentes e hiperinteligência? Como evitar a fragmentação e construir um futuro mais inteligente? Como a inovação pode lidar com certas crises, como as mudanças climáticas e o uso indevido da tecnologia? A ação coletiva e a liderança responsável promoverão a igualdade, a sustentabilidade e a colaboração, ou aprofundarão as divisões existentes?

Nesse contexto, as conferências, painéis e debates se concentraram em cinco áreas temáticas: Reimaginar o crescimento com a perspectiva de construir economias mais fortes e resilientes; As indústrias na era inteligente, ou seja, como os líderes empresariais capitalistas podem encontrar um equilíbrio entre metas de curto prazo e os imperativos de longo prazo na transformação de suas indústrias; Investir nas pessoas, o que significa levar em consideração as mudanças geoeconômicas, a transição ecológica e os avanços tecnológicos. Fatores que afetam tudo, desde o emprego até a distribuição da riqueza, incluindo saúde, educação e serviços públicos. E isso levanta uma questão adicional: como os setores público e privado podem investir no desenvolvimento do capital humano e em empregos de qualidade que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade moderna e resiliente? Os outros dois blocos temáticos foram: Salvaguardar o Planeta e Reconstruir a Confiança. Tudo isso, segundo Davos, “em um mundo cada vez mais complexo e em mudança, [onde] as divisões sociais se aprofundaram, a geopolítica é multipolar e as políticas estão se voltando para o protecionismo, o que dificulta tanto o comércio quanto o investimento”.

·        Protestos, apesar da militarização

Como acontece todos os anos nessa data, a cidade alpina de Davos, a 1.560 metros acima do nível do mar e, portanto, a mais alta da Europa, foi transformada em uma verdadeira fortaleza murada. Seus organizadores alocaram cerca de US$ 10 milhões para segurança, uma quantia que não inclui o custo adicional da grande mobilização de mais de 4.000 soldados do exército para reforçar o esquema defensivo, incluindo o controle especial do espaço aéreo ao longo da semana. Despesas formidáveis pagas diretamente do orçamento militar anual da Confederação, como nos anos anteriores (cerca de US$ 26 milhões em 2023 e quase US$ 30 milhões em 2024), com cifras semelhantes para o Fórum de 2025.

Esse esquema de segurança ostensivo, no entanto, não conseguiu impedir protestos de cidadãos em várias partes da Suíça desde o fim de semana anterior ao início do Fórum. No sábado, 18 de janeiro, uma manifestação de várias centenas, a maioria jovens, marchou pelas ruas da capital, Berna, para protestar contra a reunião de Davos. Usando o conceito esportivo Smash WEF (Leilão Contra o Fórum) como slogan, eles defenderam que se deve “Acabar com o jogo dos poderosos e alcançar uma vida digna para todos”. Os manifestantes argumentaram que esse conclave “é um símbolo do capitalismo e da crise climática, das guerras, das crises econômicas, da discriminação e da opressão” e que, paradoxalmente, em Davos “os participantes [do Fórum] discutem as crises que eles mesmos causaram”.

Um dia depois, cerca de 300 manifestantes chegaram aos portões desse famoso destino turístico nos Alpes para exigir o fim do Fórum Econômico Mundial. As consignas dos cartazes contra os protagonistas do evento eram contundentes: “Cale a boca e pague impostos!”, “Ataquem, ataquem, o Fórum é uma m….!” e “Taxem os ricos!”, entre muitos outros da mesma natureza.

No contexto do protesto “anti-Davos”, na quarta-feira, dia 22, foi anunciada a constituição de uma nova Aliança de Organizações da Sociedade Civil sob o nome de #TaxTheSuperRich for people and planet (Taxem os superricos para ajudar as pessoas e o planeta). Em uma declaração conjunta, as ONGs Greenpeace, Oxfam, Confederação Sindical Mundial e outras organizações igualmente ativas na proteção ambiental e nos direitos humanos exigiram que tanto os indivíduos quanto as empresas mais ricas do planeta paguem impostos para impor limites à riqueza extrema e fortalecer a cooperação internacional em vista de uma tributação mais justa.

Momentos antes de anunciar essa nova aliança cidadã, ativistas ambientais do Greenpeace confiscaram simbolicamente vários jatos particulares no aeroporto de Engadine, em Samedan, a menos de 70 quilômetros de Davos, onde muitos dos magnatas e personalidades que participaram do Fórum chegaram. Dias antes, ativistas ocuparam o heliporto de Davos para exigir “um imposto justo sobre os mais ricos, a fim de financiar a proteção ambiental e investir em um futuro justo e sustentável para a humanidade”. E na segunda-feira de abertura do Fórum, outros ativistas pintaram de verde o pavilhão da Amazon na rua principal da cidade-sede.

Todos esses protestos tinham argumentos estatísticos, como foi evidenciado por uma reportagem divulgada no mesmo dia da abertura do Fórum. Somente em 2024, a riqueza dos bilionários aumentou US$ 2 trilhões, o equivalente a cerca de US$ 5,7 bilhões por dia, e a uma taxa três vezes mais rápida do que no ano anterior. Dito de outra forma, uma média de quase quatro novos bilionários surgia a cada semana. Enquanto isso, o número de pessoas que vivem na pobreza quase não mudou desde 1990. De acordo com Takers, Not Makers (Fruto do saqueio, não do esforço), o relatório recém-publicado pela Oxfam International na terceira semana de janeiro, o número de bilionários no mundo passou de 2.565, em 2023, para 2.769, em 2024. Sua riqueza aumentou no mesmo período de US$ 13 trilhões para US$ 15 trilhões. De acordo com a Oxfam, “o segundo maior aumento anual na riqueza bilionária desde o início dos registros”. Enquanto isso, a riqueza dos dez indivíduos mais ricos do mundo cresceu em média quase 100 milhões de dólares por dia.

O paradoxo reina, a surpresa é ilimitada: mesmo que esses bilionários perdessem 99% de sua riqueza da noite para o dia, eles ainda seriam bilionários. Quando o ilógico se torna sistêmico, até mesmo os Alpes pacíficos chamam ao protesto.

 

Fonte: Outras Palavras

 

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