José Luís Fiori: A América do Sul à
beira do futuro
Às vezes de forma mais lenta, às vezes mais acelerada,
algumas mudanças vêm acontecendo no panorama geopolítico e geoeconômico da
América do Sul. Em alguns casos, reforçando velhos caminhos e “vocações” do
continente; em outros, abrindo novas perspectivas e oportunidades que poderão
ou não ser aproveitadas pelos 12 países que convivem lado a lado dentro desse
território recortado por tantas barreiras geográficas, e tão próximo dos
Estados Unidos. Destacamos em seguida quatro mudanças que deverão pesar
decisivamente sobre o futuro continental:
<><> I) O aumento da assimetria
sul-americana
Em 1950, os dois países mais ricos da América do Sul –
Brasil e Argentina – tinham mais ou menos o mesmo PIB, apesar de que os
argentinos tivessem uma renda per
capita, homogeneidade social, nível educacional e qualidade de vida
extraordinariamente superiores em relação aos brasileiros. Hoje, setenta anos
depois, a situação mudou radicalmente: se o PIB dos dois países girava em torno
de US$ 80 bilhões em 1950, 70 anos depois, o PIB brasileiro multiplicou 23
vezes e é hoje de cerca de US$ 2,17 trilhões, enquanto o argentino
multiplicou-se apenas oito vezes no mesmo período, sendo hoje de 640 bilhões de
dólares. Uma assimetria entre os dois países que tende a aumentar
exponencialmente nos próximos anos, e muito mais ainda entre o Brasil e os
demais países sul-americanos. Hoje, o Brasil já possui metade da população e do
produto sul-americano, e é o único país da região que tem alguma presença no
tabuleiro geopolítico internacional.
Depois do Golpe de Estado de 2016, entretanto, e até
2022, dois sucessivos governos de direita alteraram radicalmente a política
externa, afastando o Brasil de todas as iniciativas integracionistas na América
do Sul, ao mesmo tempo que se alinhava aos Estados Unidos e à OTAN, frente aos
conflitos internacionais fora do continente. Em 2023, entretanto, o país
retomou o rumo anterior de sua política externa e vem assumindo posições cada
vez mais ativas no campo internacional, no grupo do BRICS, na presidência
rotativa do G20 e na liderança mundial da luta pela sustentabilidade e controle
das mudanças climáticas. No seu próprio continente, entretanto, o Brasil vem
encontrando grandes resistências, que muito têm a ver com o aumento da
assimetria regional, em que o Brasil aparece hoje como uma espécie de “elefante
no meio da sala”.
<><> ii) A expansão da
presença chinesa
A segunda grande transformação da América do Sul, nas
primeiras décadas do século XXI, foram o surgimento e a expansão acelerada do
papel da China no desenvolvimento econômico do continente. Em apenas três
décadas, o fluxo comercial entre América do Sul e China cresceu de US$ 15
bilhões em 2001, para cerca de US$ 300 bilhões em 2019. E o fluxo dos
investimentos diretos chineses na região cresceu e se manteve em torno de US$
10 bilhões anuais, em média, entre 2011 e 2018. Brasil, Peru e Argentina
receberam a maior parcela desses investimentos até 2022, ficando o Brasil com
22% deste total, incluindo a fabricação de veículos elétricos, aquisição de
ativos de lítio, expansão da Huawei e de outras empresas chinesas de data centers, computação em nuvem e
tecnologia 5G, e em grande quantidade de infraestrutura elétrica.
Nas duas primeiras décadas do século XXI, a China
também dobrou sua participação nas importações realizadas pelos países
sul-americanos, cujo valor bruto cresceu mais de 700%, enquanto as exportações
brasileiras para a América do Sul, por exemplo, no mesmo período, cresceram
menos de 40% do crescimento chinês. Mesmo durante a crise econômica de 2008, a
participação brasileira no mercado argentino recuou de 42% para 31,5%, enquanto
a participação chinesa subiu de 21,5% para 30,5%. E o mesmo aconteceu na
Venezuela, onde a participação chinesa subiu de 4,4% em 2008, para 11,5% nos
quatro primeiros meses de 2009.
Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil,
do Chile e do Peru na América do Sul, e está entre os três maiores parceiros
comerciais de todos os países do continente. Só no caso brasileiro, 30,6% de
suas exportações em 2023 foram para a China, que foi ao mesmo tempo o maior
fornecedor de bens importados pelo Brasil. E oito países sul-americanos já
fazem parte da iniciativa da Belt and
Road chinesa: Argentina, Peru, Bolívia, Chile, Guiana,
Suriname, Uruguai e Venezuela.
Na linguagem estruturalista clássica, pode-se afirmar
que nesse período a China se transformou no novo “centro cíclico principal” da
economia sul-americana. E hoje, como no passado, o principal interesse dos
chineses na América do Sul segue sendo seus recursos naturais e minerais,
apesar de também estarem participando das grandes licitações governamentais da
região. E o cenário para os próximos anos promete uma oferta excedente de
produtos e capitais chineses, que deve derrubar barreiras e constituir um
imenso desafio competitivo para os capitais norte-americanos e brasileiros.
<><> iii) A nova
estratégia norte-americana de “polarização mundial”
A terceira grande mudança aconteceu no campo das
relações da América do Sul com os Estados Unidos, que nunca abandonaram sua
Doutrina Monroe, formulada em 1823 com o objetivo de combater e expulsar a
influência europeia do continente sul-americano. A diferença é que, no século XIX,
esse discurso era contrário aos interesses das potências coloniais europeias, e
favorável à independência de suas colônias sul-americanas. Na primeira metade
do século XX, entretanto, a mesma doutrina legitimou a intervenção
norte-americana na América Central e Caribe, para mudar governos e regimes que
eles consideravam contrários aos seus interesses. E na segunda metade do
século, ela voltou a ser utilizada para “proteger” os países da América do Sul,
só que agora contra a “ameaça comunista”, que justificou o apoio
norte-americano a uma sucessão de golpes e regimes militares que liquidaram a
democracia no continente, destruindo ao mesmo tempo sua soberania e seus
projetos autônomos de futuro.
No início do século XXI, durante a sua “guerra global
ao terrorismo”, os Estados Unidos reduziram seu grau de envolvimento político
com os assuntos sul-americanos. Um “déficit de atenção” que durou até o
“desembarque” econômico dos chineses na América do Sul na segunda década do
século, e até o início do conflito entre os Estados Unidos e a Rússia, na
Ucrânia, após o golpe de Estado de 2014.
Desde então, os Estados Unidos vêm se propondo
“repolarizar o mundo” no estilo da Guerra Fria do século XX, de maneira que os
demais países do sistema internacional, e também da América do Sul, teriam que
se posicionar de um lado ou de outro da “linha vermelha” estabelecida por eles
e seus aliado europeus.
<><> iv) O declínio do
projeto de integração sul-americano
A maioria dos países sul-americanos superou o impacto
da crise de 2008 mais rapidamente do que no resto do mundo, graças à grande
demanda de seus produtos de exportação por parte das economias asiáticas, da
China em particular, que sustentaram as quantidades e os preços das commodities sul-americanas num nível
extremamente elevado. Mas este sucesso de curto prazo provocou um efeito
inesperado em toda a América do Sul, ao aprofundar, de forma paradoxal, as
velhas dificuldades enfrentadas desde sempre pelo projeto de integração
econômica da América do Sul. Basta dizer que, na América do Norte, o comércio
intrarregional é da ordem de 40% do seu comércio global; na Ásia, de 58%; e na
Europa, de 68%; enquanto na América do Sul, mal chega aos 18%.
·
Os caminhos do futuro
Dividida em blocos, e com a maior parte dos países
separados ou distantes do Brasil, por conta do contencioso venezuelano, a
América do Sul deverá se manter na sua condição tradicional de periferia
econômica do sistema internacional, mesmo diversificando e ampliando seus
mercados na direção da Ásia. Para não ser assim, o Brasil terá que assumir a
“liderança material” do continente, construindo uma estrutura produtiva que
combine indústrias de alto valor agregado e tecnologias de ponta, com a
produção de alimentos e commodities de
alta produtividade, mantendo sua condição de grande produtor de energia
tradicional e “energia limpa”. Neste caso, o Brasil poderá mudar o rumo da
região, transformando-se na sua “locomotiva econômica”, por cima das
divergências políticas e ideológicas que hoje dividem e imobilizam um continente
que – sem o Brasil – não tem a menor relevância geopolítica dentro do Sistema
Mundial.
Neste ponto, entretanto, não há como enganar-se: o
Brasil enfrentará nos próximos anos uma concorrência acirrada e um boicote
explicito do governo de Donald Trump que considera que a única relevância da
América do Sul é pertencer ao “quintal dos Estados Unidos”.
¨ Dentro e fora dos portões de Davos.
Por Sergio Ferrari
O Fórum Econômico de Davos foi aberto na segunda-feira,
20 de janeiro, quase paralelamente à posse, em Washington, de Donald Trump como
presidente dos Estados Unidos. Os 6.700 quilômetros que separam a capital dos
Estados Unidos dessa cidade suíça também marcaram distâncias conceituais
fundamentais entre o projeto protecionista do novo presidente dos Estados
Unidos –exposto em seu discurso inaugural na Casa Branca– e o compromisso ainda
atual do Fórum de Davos com o livre mercado e a globalização.
Apesar da distância quilométrica e das nuances que
diferenciam as duas visões –nuances de um modelo hegemônico que compartilham–
Trump foi uma das referências dessa edição do Fórum. Na quinta-feira, 23, ele
se tornou a grande estrela do conclave com um discurso digital no qual reiterou
as linhas gerais de seu pensamento hegemônico de “América primeiro” já antecipado
em sua campanha eleitoral e na cerimônia de posse.
·
Davos 2025
Essa 55ª edição do Fórum Econômico (conhecido
como WEF, por sua sigla em inglês), realizado entre os dias 20 e 24 de janeiro,
reuniu mais de 2.500 representantes dos setores econômico, político, científico
e cultural de 130 países, além de cerca de sessenta chefes de Estado e de
Governo.
A presença política da América
Latina foi
relativamente escassa. Em diversos debates ou com discursos públicos em nível
presidencial estavam presentes o argentino Javier Milei; sua colega Dina
Boluarte, do Peru, e José Raúl Mulino, do Panamá. Também Ilan Goldfajn, chefe
do Banco Interamericano de Desenvolvimento, além de ministros de outros países,
entre outros: Maisa Rojas Corradi e Alberto van Klaveren, do Chile; Alicia
Bárcena e Marcelo Ebrard, do México, e Víctor Bisonó Haza, da República
Dominicana.
Da Europa, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão
Europeia; o chanceler alemão Olaf Scholz e seu homólogo espanhol, Pedro
Sánchez; Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu e os
primeiros-ministros da Bélgica, da Irlanda, dos Países Baixos e da Suécia,
juntamente com os presidentes da Polônia, da Sérvia e da Ucrânia.
·
Inteligência artificial
“Colaboração para a era inteligente” foi o tema central
de Davos. De acordo com Klaus Schwab, diretor do evento, “as tecnologias
convergentes estão transformando rapidamente o mundo, empurrando-nos para um
ponto de inflexão” e marcando “uma era que vai muito além da tecnologia…. é uma
revolução social, que tem o poder de elevar a humanidade, ou mesmo fraturá-la”.
Daí as grandes questões que surgiram nesse evento: como
garantir a colaboração em uma era de tecnologias convergentes e hiperinteligência? Como evitar a
fragmentação e construir um futuro mais inteligente? Como a inovação pode lidar
com certas crises, como as mudanças climáticas e o uso indevido da tecnologia?
A ação coletiva e a liderança responsável promoverão a igualdade, a
sustentabilidade e a colaboração, ou aprofundarão as divisões existentes?
Nesse contexto, as conferências, painéis e debates se
concentraram em cinco áreas temáticas: Reimaginar o crescimento com a
perspectiva de construir economias mais fortes e resilientes; As
indústrias na era inteligente, ou seja, como os líderes empresariais capitalistas
podem encontrar um equilíbrio entre metas de curto prazo e os imperativos de
longo prazo na transformação de suas indústrias; Investir nas pessoas, o
que significa levar em consideração as mudanças geoeconômicas, a transição
ecológica e os avanços tecnológicos. Fatores que afetam tudo, desde o emprego
até a distribuição da riqueza, incluindo saúde, educação e serviços públicos. E
isso levanta uma questão adicional: como os setores público e privado podem
investir no desenvolvimento do capital humano e em empregos de qualidade que
contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade moderna e resiliente? Os
outros dois blocos temáticos foram: Salvaguardar o Planeta e Reconstruir a
Confiança. Tudo isso, segundo Davos, “em um mundo cada
vez mais complexo e em mudança, [onde] as divisões sociais se aprofundaram, a
geopolítica é multipolar e as políticas estão se voltando para o protecionismo,
o que dificulta tanto o comércio quanto o investimento”.
·
Protestos, apesar da
militarização
Como acontece todos os anos nessa data, a cidade alpina
de Davos, a 1.560 metros acima do nível do mar e, portanto, a mais alta da
Europa, foi transformada em uma verdadeira fortaleza murada. Seus organizadores
alocaram cerca de US$ 10 milhões para segurança, uma quantia que não inclui o
custo adicional da grande mobilização de mais de 4.000 soldados do exército
para reforçar o esquema defensivo, incluindo o controle especial do espaço
aéreo ao longo da semana. Despesas formidáveis pagas diretamente do orçamento
militar anual da Confederação, como nos anos anteriores (cerca de US$ 26
milhões em 2023 e quase US$ 30 milhões em 2024), com cifras semelhantes para o
Fórum de 2025.
Esse esquema de segurança ostensivo, no entanto, não
conseguiu impedir protestos de cidadãos em várias partes da Suíça desde o fim
de semana anterior ao início do Fórum. No sábado, 18 de janeiro, uma
manifestação de várias centenas, a maioria jovens, marchou pelas ruas da
capital, Berna, para protestar contra a reunião de Davos. Usando o conceito
esportivo Smash WEF (Leilão
Contra o Fórum) como slogan, eles defenderam que se deve “Acabar com o jogo dos
poderosos e alcançar uma vida digna para todos”. Os manifestantes argumentaram
que esse conclave “é um símbolo do capitalismo e da crise climática, das
guerras, das crises econômicas, da discriminação e da opressão” e que,
paradoxalmente, em Davos “os participantes [do Fórum] discutem as crises que
eles mesmos causaram”.
Um dia depois, cerca de 300 manifestantes chegaram aos
portões desse famoso destino turístico nos Alpes para exigir o fim do Fórum
Econômico Mundial. As consignas dos cartazes contra os protagonistas do evento
eram contundentes: “Cale a boca e pague impostos!”, “Ataquem, ataquem, o Fórum
é uma m….!” e “Taxem os ricos!”, entre muitos outros da mesma natureza.
No contexto do protesto “anti-Davos”, na quarta-feira,
dia 22, foi anunciada a constituição de uma nova Aliança de Organizações da
Sociedade Civil sob o nome de #TaxTheSuperRich for people and planet (Taxem
os superricos para ajudar as pessoas e o planeta). Em uma declaração
conjunta, as ONGs Greenpeace, Oxfam, Confederação Sindical Mundial e outras
organizações igualmente ativas na proteção ambiental e nos direitos humanos
exigiram que tanto os indivíduos quanto as empresas mais ricas do planeta
paguem impostos para impor limites à riqueza extrema e fortalecer a cooperação
internacional em vista de uma tributação mais justa.
Momentos antes de anunciar essa nova aliança cidadã,
ativistas ambientais do Greenpeace confiscaram simbolicamente vários jatos
particulares no aeroporto de Engadine, em Samedan, a menos de 70 quilômetros de
Davos, onde muitos dos magnatas e personalidades que participaram do Fórum
chegaram. Dias antes, ativistas ocuparam o heliporto de Davos para exigir “um
imposto justo sobre os mais ricos, a fim de financiar a proteção ambiental e
investir em um futuro justo e sustentável para a humanidade”. E na segunda-feira
de abertura do Fórum, outros ativistas pintaram de verde o pavilhão da Amazon
na rua principal da cidade-sede.
Todos esses protestos tinham argumentos estatísticos,
como foi evidenciado por uma reportagem divulgada no mesmo dia da abertura do Fórum.
Somente em 2024, a riqueza dos bilionários aumentou US$ 2 trilhões, o
equivalente a cerca de US$ 5,7 bilhões por dia, e a uma taxa três vezes mais
rápida do que no ano anterior. Dito de outra forma, uma média de quase quatro
novos bilionários surgia a cada semana. Enquanto isso, o número de pessoas que
vivem na pobreza quase não mudou desde 1990. De acordo com Takers, Not Makers (Fruto do saqueio, não do esforço),
o relatório recém-publicado pela Oxfam International na terceira semana de
janeiro, o número de bilionários no mundo passou de 2.565, em 2023, para 2.769,
em 2024. Sua riqueza aumentou no mesmo período de US$ 13 trilhões para US$ 15
trilhões. De acordo com a Oxfam, “o segundo maior aumento anual na riqueza
bilionária desde o início dos registros”. Enquanto isso, a riqueza dos dez
indivíduos mais ricos do mundo cresceu em média quase 100 milhões de dólares
por dia.
O paradoxo reina, a surpresa é ilimitada: mesmo que
esses bilionários perdessem 99% de sua riqueza da noite para o dia, eles ainda seriam
bilionários. Quando o ilógico se torna sistêmico, até mesmo os Alpes pacíficos
chamam ao protesto.
Fonte: Outras Palavras
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