A ilusão de que ser
homem bastaria
O encontro com a
verdade, quando temos coragem de tirar o véu que nos protegia, é de uma dor
indescritível, quase insuportável, e um caminho sem retorno. Essa foi uma fala
de Evandro Fioti se referindo ao racismo, mas que me tocou profundamente quando
ouvi, pois expressa exatamente o que venho experimentando nos últimos anos
quanto ao machismo. E olha que minha posição nunca foi completamente alienada
em relação ao assunto. Além dos privilégios de classe e da branquitude (sim,
sou fruto da política de branqueamento que esteve em vigor em nosso país – mas
esse é assunto para outro texto), fui criada por uma mãe desquitada,
independente, leitora de Beauvoir que, entretanto, reproduziu em vários
aspectos da minha educação valores conservadores, supostamente para me
proteger. Essa biografia, entretanto, bem como relações com homens
aparentemente pouco convencionais, me faziam crer – de modo ingênuo e soberbo –
que eu estaria a salvo. Sim, eu também era uma mulher cooptada pelo machismo e
vivia a ilusão de que ser homem bastaria. Será possível deixar de sê-lo? Não
sei. Mas, hoje, pelo menos, o véu caiu e por mais difícil que seja, concordo
com Fioti: quando encontramos uma verdade, é melhor encará-la de frente.
As coisas começaram
a mudar quando minha filha se tornou adolescente e eu, para protegê-la (lembra
da minha mãe?) entrei no famoso dilema no shortinho… Brincadeiras à parte,
Luiza me trazia as questões que vinha discutindo no coletivo feminista no
Colégio Equipe – uma escola pouco convencional da Zona Oeste de São Paulo –, e
elas me desconcertavam. Esses debates e até embates foram cruciais, inclusive,
para uma mudança radical na relação mãe-filha, da qual muito me orgulho. Deixo
aqui meu agradecimento público aos ensinamentos da então menina de 14 anos, que
com certeza mudaram o rumo da minha vida. Eu tinha que reconhecer: mesmo sendo
também eu uma mulher independente, informada, estudiosa da feminilidade, e
ainda por cima analisada, o machismo me atravessava de forma atroz em todas as
esferas da minha vida, e eu não enxergava, ou não queria enxergar. Porque dói.
E exige posições e decisões que cobram um preço muito alto.
Uma das partes mais
difíceis desse processo – e isso é também uma constatação clínica – é poder se
reconhecer como vítima, coisa bem diferente de se vitimizar. Embora o machismo
seja estrutural, ele se materializa concretamente em sujeitos encarnados, em
corpos que amamos e em homens com quem nos relacionamos: nossos colegas,
amigos, parentes, companheiros e amantes. Essa concentração de amor, amizade,
desejo, mágoa, medo e desconfiança, em um mesmo objeto é uma das consequências
mais nefastas do machismo na subjetividade de mulheres heterossexuais. Quantas
vezes as mulheres não tentam “salvar” para elas mesmas seus “abusadores
involuntários” de estimação, apoiadas em um narcisismo que as impede de
reconhecer que vinham sendo (às vezes por anos) manipuladas, enganadas,
desrespeitadas etc.? E quantas mulheres se submetem a essas situações para não
renunciarem a seus casamentos “estáveis” e “confortáveis” ou a seus cargos,
empregos e status?
O assunto é
urgente, e tem retornado e insistido, seja em meu consultório ou na minha vida
privada e pública. Mesmo mulheres privilegiadas, de classe média,
progressistas, feministas e que em geral se relacionam com homens
escolarizados, ditos de esquerda, com amplo acesso à cultura e informação não
estão imunes ao machismo, à misoginia e suas manifestações, principalmente, a
violência trivializada e até normalizada por muitos: a brotheragem e
seus dispositivos já mencionados: as conversas de bar sobre mulheres, quase
sempre quando já estão embriagados (o que, em geral, é usado como álibi), os
grupos de whatsapp, os vestiários etc. Evidentemente o problema não está nos
lugares ou meios em si mesmos, mas na finalidade desviada de trocas que
poderiam sim servir para comunicação, solidariedade, apoio, acolhimento ou pura
distração e diversão
Aliás, não apenas a
escolaridade, ou posição política, mas tampouco a profissão dos homens
garante outro posicionamento: são médicos, engenheiros, técnicos, artistas,
escritores, arquitetos, empresários, estudantes, publicitários, professores,
advogados, psicanalistas… E há, também, a tenebrosa constatação da cooptação de
algumas mulheres, presas e manipuladas pelo discurso hegemônico, que assim como
os “pobres de direita”, se tornam reprodutoras de práticas, falas e atos
machistas para serem aceitas e bem quistas por homens, seja no amor, no
trabalho, na imagem ou nas relações de poder. Soube, por exemplo, de mulheres
que difamaram uma colega de trabalho em pleno 2024, por supostamente se relacionar
com um homem mais jovem.
Em maio de 2024,
entrevistei em meu programa Ouvindo Vozes a professora da UNB e pesquisadora
Valeska Zanello, que tem se dedicado à articulação entre saúde mental e gênero.
Chamamos o episódio de “A crise da masculinidade” e, nele, Valeska falou sobre
sua pesquisa com grupos masculinos de whatsapp. Vale a pena escutar o episódio
no Spotify ou no Youtube da TVGGN, mas adianto aqui
a ênfase no pacto que protege os homens e se transforma em um dos mais eficazes
dispositivos de perpetuação das micro violências cotidianas que confirmam os
dois únicos lugares aceitos para as mulheres no Patriarcado capitalista: mãe ou
objeto sexual – nunca um sujeito com desejos, aspirações ou fantasias próprias.
O que foi chamado por Marilyn Frye de laço homoafetivo seria muito bem-vindo,
como o é, aliás, qualquer outro laço verdadeiro de amor ou amizade. Usar esse
termo para definir a argamassa da “brotheragem”, entretanto, me parece injusto
com homens que realmente amam outros homens. Pois, especificamente entre homens
heterossexuais, caberia interrogar se o que sustenta essas relações é realmente
o afeto amoroso e a solidariedade – que podem eventualmente estarem presentes
–, ou se são muito mais relações de submissão, domínio, poder e controle mútuo,
que afetam diretamente as mulheres, mas também os homens que, ainda hoje, têm
dificuldade em quebrar esse pacto de supostos “irmãos”.
Em novembro de
2024, também no Ouvindo Vozes, entrevistei a psicanalista, socióloga e
documentarista Ingrid Gerolimich, que falou
longamente sobre esse modo peculiar de união masculina, que faz com que querer
agradar, não contrariar e não decepcionar outros homens seja mais importante do
que manter a coerência com princípios éticos e políticos e mesmo a lealdade,
amizade e amor pelas mulheres com quem eles se relacionam. Enquanto isso, as
mulheres são ensinadas a competirem entre si para agradarem os homens e serem
escolhidas na “prateleira do amor” (a expressão é de Zanello). Daí, inclusive,
a ênfase que Ingrid atribui à amizade entre mulheres como uma contra tecnologia
de gênero. Valeska aposta também no letramento de gênero para homens, sobretudo
os mais jovens, e é com muita esperança na possibilidade de mudança que me somo
a essas e tantas mulheres – e alguns homens, felizmente – que vêm tentando
mudar esse estado lamentável das coisas.
Esses dias têm sido
particularmente difíceis para quem decidiu olhar de frente para essas questões:
passei o final de semana às voltas com tristeza, nojo, raiva e indignação e
tendo que lidar bem de perto com o mal-estar provocado pelos efeitos nocivos e
desgastantes da brotheragem doentia. Por uma enorme coincidência – ou
talvez porque episódios como esse sejam mais comuns do que gostaríamos de
acreditar, ou talvez porque finalmente o assusto esteja sendo tratado com a
devida importância –, recebo na segunda-feira, de minha filha, o link para
escutar o episódio “A anatomia de uma mentira”, por Vanessa Barbara, do Podcast
“CPF na nota?” da Radio Novelo. Vanessa revela uma lista de transmissão de
e-mails – da qual participavam jornalistas, editores e escritores, incluindo
seu então marido –, descoberta durante sua separação, há 14 anos. Nessa lista,
esses homens progressistas e atualmente renomados expunham seus casos,
companheiras, esposas e amantes de modo misógino e machista. O caso vem
repercutindo no meio literário e nas redes sociais durante toda a semana, se
desdobrando em debates que já deveriam estar na mesa há muito tempo. Alguns dos
homens identificados e envolvidos já vieram a público atestar a veracidade das
declarações de Vanessa e se desculparam.
Elaborando os
acontecimentos do fim de semana, e escutando a dor de Vanessa da segunda,
voltei ao episódio 4, “Amigo secreto”, do Podcast de Fernanda Lima, Zen
Vergonha, o qual recomendo fortemente. Neste episódio vários homens relatam
seus testemunhos a respeito de como se sentem em relação a esses grupos de
“brothers” e como conseguiram se posicionar de modo a romperem com o ciclo de
misoginia, violência, submissão e aprisionamento a algo que não mais os
representa e com o que não se identificam. São homens nossos aliados, que têm
percebido o quanto essa mudança de posição em relação às mulheres e a eles
próprios é boa para todos nós, e para a sociedade mais justa e menos desigual
que desejamos construir. Minha mensagem no Instagram, no final de 2024, foi
especialmente dedicada a alguns homens que tiveram um papel crucial na minha
vida durante o ano e reforço aqui meu agradecimento a cada um. Homens, homens
verdadeiramente amigos, companheiros, parceiros, que com respeito e afeto
demonstram diariamente que vale a pena – como diria Gil – mudar o curso da
história por causa da mulher!
Fonte: Por Ana
Laura Prates, no Jornal GGN
Nenhum comentário:
Postar um comentário