sábado, 25 de janeiro de 2025

Tsunami do descarte humano: 300 mil brasileiros vivem em situação de rua

Com políticas públicas esgotadas, panorama sombrio tomou conta do país e aumentou em 1000%, na última década, o número de pessoas que moram nas ruas. Uma população invisibilizada, que reflete o colapso do atual sistema socioeconômico. “A vida nas ruas e os indivíduos que vivem nestas condições não estão fora do sistema capitalista, pelo contrário, são produtos desta sociedade, fabricados, embalados e entregues por um sistema econômico agressivo, destruidor e colapsado”, assinala Igor Rodrigues, autor da pesquisa Trocas Sinistras: a vida na rua sob novo prisma, junto com Dimitri C. Fernandes.

Com o intuito de compreender a vida nas ruas, nos últimos dez anos, os pesquisadores se debruçaram a estudar as pessoas que moram nas ruas, o conceito de cidadania e as políticas públicas. Por isso, Rodrigues é catedrático ao afirmar que “sem uma abordagem criativa e humanitária, os governos se limitam às políticas esgotadas, albergacionistas, quando não traçam alguma escalada pela barbárie e pela eliminação”. Para o sociólogo, o problema também é acadêmico, pois “pesquisadores e cientistas do assunto continuam calados sem explicar esse fracasso – o debate, precário, recorre ao mero instrumento descricionista-etnográfico ou aos censos para apontar quantos aumentaram”, explica.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o sociólogo expõe as causas que levam as pessoas às ruas. Muito pelo contrário do que o senso comum tem como mito, “a droga não pode ser tomada como uma explicação simplista e reducionista da vida nas ruas, até porque uma gama de indivíduos está na rua e não utiliza nenhuma substância ou começou a utilizar após ir para as ruas”, pontua. Os motivos, segundo coloca, estão associados “às rupturas nos ciclos de troca social e o processo de descarte humano crescente nas últimas décadas, não a suposta ‘comodidade’ que a vida na rua teria”, destaca.

“Estamos falando da produção crescente do descarte humano”, assevera o pesquisador. Para Rodrigues, as pessoas em situação de rua são “descartadas por este modelo econômico, enquanto tal, vivenciam uma total violação de direitos humanos. A sociedade cria espaços de controle e confinamento ‘a céu aberto’, relegando essas pessoas a um estado de marginalização que tolera e permite o massacre destes indivíduos descartados. Estamos presenciando uma série histórica de banimento de na ordem dos direitos”, complementa.

O relatório da pesquisa foi publicado no formato de livro e está disponível aqui.

Igor de Souza Rodrigues é doutor e mestre em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre, graduado em Direito pelo Instituto Vianna Júnior e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora e especialista na área de sociologia. Atuou como pesquisador Sênior do projeto A Gênese Social do Usuário do Crack – Ministério da Justiça do Brasil – UFJF/SENAD (2014-2017) e membro do Centro de Estudos Sobre Cidadãos em Situação de Rua.

<><> Confira a entrevista.

·        A primeira pergunta não é um recorte de sua pesquisa, mas imagino que exista uma estimativa que o senhor possa trazer para contextualizar o tema. Qual o número de pessoas em situação de rua no Brasil? Por que isso acontece, apesar de haver investimentos em políticas públicas?

Igor Rodrigues – O Brasil tem hoje aproximadamente 300 mil pessoas vivendo nas ruas de todo o país. A questão que eu e o sociólogo Dmitri Fernandes dedicamos anos de pesquisa foi entender o motivo do número ter crescido 1000% na última década apesar do aumento dos investimentos e da diversificação dos serviços na área social, ou seja, é preciso entender qual o ponto chave e o motivo pelo qual as cidades não têm conseguido resolver ou, pelo menos, frear este problema social apesar da atenção que o problema vem recebendo nos últimos anos.

Após décadas de políticas fracassadas neste segmento, a pergunta “onde se tem errado?” se tornou essencial para uma virada eficaz no modo de compreensão sobre a vida nas ruas. Há quatro anos, em entrevista ao IHU, relatei que as políticas eram apenas castelos de areia e não lograriam êxito. O Brasil coleciona um retumbante fracasso em relação às políticas para a situação de rua e precisa com urgência rever este panorama.

O pior é que os pesquisadores e cientistas do assunto continuam calados sem explicar esse fracasso – o debate, precário, recorre ao mero instrumento descricionista-etnográfico ou aos censos para apontar quantos aumentaram. Sem uma abordagem criativa e humanitária, os governos se limitam às políticas esgotadas, albergacionistas, quando não traçam alguma escalada pela barbárie e pela eliminação. Enfrentamos, então, o que estamos chamando de um panorama sombrio: a falta de alternativas ao debate público sobre a situação de rua, não apenas no Brasil, mas no mundo. A falta de articulação entre as políticas públicas, as estruturas sociais e as experiências individuais perpetuam o problema, transformando a situação de rua em um reflexo do colapso do sistema socioeconômico.

·        Quais são os principais mitos em torno das razões pelas quais as pessoas passam a viver em situação de rua? Qual a importância de desconstruí-los?

Igor Rodrigues – Vou destacar três mitos. De um modo geral, a população acredita que a situação de rua é causada pela droga, especialmente pelo crack. Por vezes, o crack pode, de fato, ser encontrado na dinâmica de quem vive nas ruas, mas nem sempre. A droga não pode ser tomada como uma explicação simplista e reducionista da vida nas ruas, até porque uma gama de indivíduos está na rua e não utiliza nenhuma substância ou começou a utilizar após ir para as ruas; por outro, há vários que utilizam substâncias psicoativas em larga escala, cocaína, ecstasy, metanfetamina e até crack e não estão vivendo nas ruas.

Outro mito é que são simplesmente pessoas vagabundas, que não fazem absolutamente nada. As pessoas em situação de rua precisam se virar, catam latas, vendem balas, fazem carga e descarga de materiais, atuam em setores da agricultura como a colheita do café e da cana, porém, não há reconhecimento de seu trabalho, a troca não atinge recompensas materiais e apenas explora os fundos de vida. A história de Janaína, que começa às 7 horas da manhã e para as 22 horas para catar lixo, resume um pouco o cotidiano da vida nas ruas. Janaína consegue cerca de R$ 15 por dia, a sua jornada pouco consegue transformar em renda ou recompensas materiais, praticamente trabalha para comer, “o meu rolê é o lixo”, disse ela em uma das conversas que tivemos.

Temos também o mito da infestação, replicado, por exemplo, no livro a Máfia dos Mendigos: como a caridade aumenta a miséria. O senso comum tem acreditado que a situação de rua aumenta porque as pessoas estão sendo bem tratadas com políticas sociais, que é cômodo viver nas ruas. Há muito sofrimento na vida nas ruas, as pessoas nos relataram dramas profundos, mutilação da subjetividade, mas percebemos que querem sair desta condição. Além disso, a causa do fenômeno são as rupturas nos ciclos de troca social e o processo de descarte humano crescente nas últimas décadas, não a suposta “comodidade” que a vida na rua teria, até porque esse pensamento é, em si, uma crítica às políticas de transferência de renda, que as pessoas ali teriam direito estando na rua ou não.

·        Até que ponto a “teoria da multicausalidade” explica o crescimento da população de rua e a partir de que ponto ela é insuficiente?

Igor Rodrigues – Os pesquisadores e cientistas que estudam a vida nas ruas estão rendidos ao fácil e cômodo jargão “a situação de rua é multicausal”, ou seja, explicada por inúmeros fatores: políticos, econômicos, culturais – praticamente toda a literatura escapa de uma explicação fenomenológica em razão do generalismo e a superficialidade desta teoria. Dizer que é multicausal sem, de fato, aprofundar na explicação detalhada do problema criou uma superficialidade enorme nos estudos da situação de rua. Ora, todo problema social é complexo e multicausal, a questão passa a ser, então, entender o que estas aparentes “causas” têm em comum? Estudando a vida dessas pessoas, descobrimos que, por detrás das brigas familiares, depressão, consumo de drogas, alcoolismo, está a humilhação, a fragmentação e a frouxidão das relações sociais. Estes elementos comunicam todos os outros, portanto, estão na raiz do problema social.

IHU – As pessoas em situação de rua são pessoas excluídas da sociedade ou elas fazem parte do “sistema”? Por quê?

Igor Rodrigues – A vida nas ruas e os indivíduos que vivem nestas condições não estão fora do sistema capitalista, pelo contrário, são produtos desta sociedade, fabricados, embalados e entregues por um sistema econômico agressivo, destruidor e   colapsado. FrançaEstados UnidosAlemanhaÍndiaArgentinaPortugalChinaÁfrica do Sul e diversos outros territórios também registraram um acréscimo estrondoso dessa população, que não se restringe a locais mais ou menos ricos. Este modelo de sociedade tem produzido não apenas resíduos plásticos, mas pessoas, subjetividades descartadas na lógica do sistema e não mais aproveitadas. Embora esses indivíduos sejam tratados como “resíduos indesejáveis” – os sujos, feios e malvados -, eles representam uma manifestação extrema das contradições de nossa sociedade. A rua é a feiura do capital, um reflexo sombrio da precarização econômica e social.

Os indivíduos em situação de rua são a base de sustentação de uma pirâmide de exploração no mercado da reciclagem, de venda no comércio ambulante, em atividades no período de safras, entre outras. Além disso, participam como peças-chave no controle social, cuja existência reforça a culpa pela violência urbana, por exemplo. Tratá-los a partir da exclusão total seria ignorar todas estas facetas, incluindo os aspectos sinistros da relação.

·        A Constituição de 1988 ganhou o apelido de “Constituição Cidadã”. A razão é porque ela tinha, no seu núcleo, um paradigma orientado à solidariedade. Porém isso parece ter se degradado progressivamente nos últimos 36 anos. O que explica o enfraquecimento da reciprocidade social que nos leva ao cenário atual?

Igor Rodrigues – A Constituição Federal de 1988 nunca chegou de fato às pessoas que vivem nas ruas. São inúmeras violações históricas, massacres, indignidade, fome, frio, episódios grotescos, desrespeito a qualquer tipo de humanidade de quem vive nestas condições. A Constituição Brasileira seguiu um modelo de estado de bem-estar social, típico de um período do capitalismo, contudo, ao longo dos anos, esse próprio sistema econômico tem perdido a capacidade de absorção dos indivíduos via cidadania, criando pessoas dispensáveis e refugo descartável.

democratização de direitos, de cidadania, depende, em boa medida, dos vínculos que uma sociedade desenvolve. Tem-se caminhado pelo individualismo, por trocas sinistras, ou seja, contato, proximidade física, mas formas obscuras de se relacionar. O conceito de cidadania se tornou esvaziado para parcelas significativas da população, incluindo os que vivem nas ruas. É um conceito ainda bastante fixado ao modo de vida das classes mais estabelecidas, como a classe média.

·        De que maneira o mundo do trabalho, com os processos de precarização de direitos de trabalhistas (chamada uberização) e de eliminação de postos de trabalho (automação de atividades) impacta no aumento da população em situação de vulnerabilidade social extrema?

Igor Rodrigues – Temos que entender os processos sociais como um todo. Na Revolução Industrialna Inglaterra no século XVIII, a população miserável era uma parcela reserva aos empregos nas fábricas. Esse processo mudou especialmente com a automação, alcançando níveis jamais vistos desde a introdução da microeletrônica, a partir de 1980 até os dias atuais. O capitalismo tem, cada vez mais, eliminado postos de trabalho, como o de atendente, caixa de supermercado, cobrador de ônibus, são algumas das profissões em extinção. Algumas atividades surgiram neste mercado, porém, o saldo é negativo e as novas profissões não envolvem os trabalhos cujas camadas miseráveis têm oportunidades.  A combinação entre precarização e automação não apenas empurra indivíduos para a pobreza, mas também amplia desigualdades estruturais.

O resultado é que, nos últimos anos, milhões de brasileiros foram para a informalidade, como vendedores ambulantes, catadores, entregadores de comida, ubers, entre outros. O aumento da situação de rua é consequência direta deste processo na medida em que há um tensionamento dos postos de trabalho, alguns são empurrados para as atividades com baixíssimas recompensas materiais como a catação de lixo – trabalhos exaustivos com exploração dos fundos de vida.

·        O que são as “trocas sinistras”, expressão conceitual que resulta do seu trabalho de pesquisa e de sua equipe, e o que o debate traz de novo para a discussão deste problema tão sério?

Igor Rodrigues – Durante quase dez anos de pesquisa, pudemos perceber que uma das questões centrais do fenômeno está na base das relações sociais: a sociedade não tem conseguido completar ciclos de reciprocidade com as pessoas em situação de rua e vice-versa – enormes trincas nas subjetividades, destruição da autoestima, falta de confiança, expectativas e profecias negativas geram o que temos chamado de trocas sinistras.

Uma relação efetiva que promove a inclusão depende de um ciclo entre dar-receber-retribuir, porém a sociedade tem visto as pessoas em situação de rua apenas sob o fardo da assistência, sem capacidade de retribuição nas trocas sociais. Nasce assim uma forma de se relacionar sem reciprocidade: trocas sinistras são relações ambíguas, muitas vezes camufladas, que trazem um componente de eliminação, violação e perversidade. São trocas assimétricas, predatórias e frequentemente violentas, por exemplo, quando alguém para se livrar de um pedinte na mesa do bar dá uma esmola, ou seja, há proximidade física, existe contato, mas a relação se baseia na fragmentação da troca e na humilhação.

O conceito de trocas sinistras oferece uma visão alternativa para compreender a vida nas ruas, desloca o foco do indivíduo para as relações sociais e levanta a falta de confiança e a humilhação nas trocas para explicar o enguiço das políticas públicas e o aumento da situação de rua. Explica, por exemplo, e a baixa adesão às políticas, o motivo pelo qual muitas pessoas em situação de rua não aceitam, desconfiam e têm medo do Estado – questões até então pouco compreendidas pelos cientistas.

·        Em que sentido diversos centros de acolhimento dessas populações, ao mesmo tempo que oferecem condições sanitárias e de alimentação essenciais, por outro lado produzem rotinas humilhantes à população de rua? Como isso afeta a subjetividade dessas pessoas?

Igor Rodrigues – Poucos centros de acolhimento verdadeiramente acolhem, as rotinas humilhantes destes lugares revelam uma tensão profunda entre a oferta de cuidados essenciais e a reprodução de estruturas opressoras. O acolhimento no Brasil precisa ser reconstruído a partir de outras lógicas. Em muitos casos, essas instituições impõem regras e práticas que desconsideram a individualidade e a dignidade dos indivíduos. O controle desmedido do cotidiano, como restrições à circulação, horários fixos e imposição de comportamentos, acaba por transformar a assistência em uma troca sinistra. Por fim, as pessoas acabam por não aderir aquilo que foi, em tese, proposto para evitar a situação de desabrigo.

Pudemos ver através das pesquisas o impacto na saúde mental e emocional das pessoas em situação de rua, reforçando ciclos de vulnerabilidade e exclusão. Esses indivíduos muitas vezes internalizam os estigmas sociais, o que pode levar à perda de autoestima e de esperança. A experiência repetida de humilhação e despersonalização minam a autoestima e reforçam sentimentos de inutilidade e rejeição. Como mencionamos na pesquisa, esse esfacelamento moral é o reflexo de um sistema que reduz os indivíduos ao descarte.

·        Giorgio Agamben tem um conceito bastante popular chamado “homo saccer”, que se refere às pessoas que são “sacrificáveis”, que estão à margem dos direitos constitucionais. Como isso aparece na questão da população em situação de rua? Até que ponto a Constituição e o Estado os protege e ampara?

Igor Rodrigues – A população de rua é a ponta da corda, o final do processo de circulação e troca desta sociedade. Estamos diante de um fenômeno mais profundo do que parece ser. Os pesquisadores não estão entendendo a complexidade e o que a vida na rua significa do ponto geral do sistema social. Estamos falando da produção crescente do descarte humano, a sociedade acelerou em larga escala o processo de eliminação da cidadania.

São pessoas descartadas por este modelo econômico, enquanto tal, vivenciam uma total violação de direitos humanos. A sociedade cria espaços de controle e confinamento “a céu aberto”, relegando essas pessoas a um estado de marginalização que tolera e permite o massacre destes indivíduos descartados. Estamos presenciando uma série histórica de banimento na ordem dos direitos.

O Estado é uma grande incógnita para quem vive nas ruas: às vezes um ponto de assistência, de auxílio e de apoio; por outras, fonte da própria humilhação e violação, isto é, o Estado não deixa de ser um agitador das trocas sinistras. Uma parte dos que vivem nas ruas já criou uma resistência ao Estado, tem medo, não quer proximidade ou relação – esse é um outro desafio a ser rápido e urgentemente considerado.

·        Diante dessas encruzilhadas, como construir políticas públicas capazes de dar conta de um problema humanitário tão grave, que é a população em situação de rua?

Igor Rodrigues – Essa é uma boa definição para o momento das políticas para a situação de rua: o Brasil está na encruzilhada, precisa, em primeiro lugar, entender onde estão os equívocos, ou seja, por quais motivos as políticas, os investimentos e os serviços aumentaram e, ao mesmo tempo, o problema cresceu 1000%.  Existe uma necessidade de revisão da forma como as políticas foram desenhadas, muitas foram criadas objetivando direitos para quem vive nas ruas, mas não alcançam de fato esta população – inclusive pelo tipo de troca que permeia as relações, em suas formas sinistras, como propomos neste estudo. Entender a falta de eficácia, a não aderência, a falta de efeitos transformadores são alguns dos passos para que as políticas possam realmente apresentar resultados positivos frente ao tsunami do descarte humano.

 

Fonte: Entrevista com Igor Rodrigues, para IHU OnLine

 

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