Tsunami do descarte humano: 300 mil brasileiros vivem em
situação de rua
Com políticas públicas esgotadas, panorama sombrio
tomou conta do país e aumentou em 1000%, na última década, o número de pessoas
que moram nas ruas. Uma população invisibilizada, que reflete o colapso do
atual sistema socioeconômico. “A vida nas ruas e os indivíduos que vivem nestas
condições não estão fora do sistema capitalista, pelo contrário, são produtos
desta sociedade, fabricados, embalados e entregues por um sistema econômico
agressivo, destruidor e colapsado”, assinala Igor Rodrigues, autor da
pesquisa Trocas Sinistras: a
vida na rua sob novo prisma, junto com Dimitri C. Fernandes.
Com o intuito de compreender a vida nas ruas, nos
últimos dez anos, os pesquisadores se debruçaram a estudar as pessoas que moram
nas ruas, o conceito de cidadania e as políticas públicas. Por
isso, Rodrigues é catedrático ao afirmar que “sem uma abordagem
criativa e humanitária, os governos se limitam às políticas esgotadas,
albergacionistas, quando não traçam alguma escalada pela barbárie e pela
eliminação”. Para o sociólogo, o problema também é acadêmico, pois
“pesquisadores e cientistas do assunto continuam calados sem explicar esse
fracasso – o debate, precário, recorre ao mero instrumento
descricionista-etnográfico ou aos censos para apontar quantos aumentaram”,
explica.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail
ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o sociólogo expõe as causas que
levam as pessoas às ruas. Muito pelo contrário do que o senso comum tem como
mito, “a droga não pode ser tomada como uma explicação simplista e reducionista
da vida nas ruas, até porque uma gama de indivíduos está na rua e não utiliza
nenhuma substância ou começou a utilizar após ir para as ruas”, pontua. Os
motivos, segundo coloca, estão associados “às rupturas nos ciclos de troca
social e o processo de descarte humano crescente nas últimas décadas, não a
suposta ‘comodidade’ que a vida na rua teria”, destaca.
“Estamos falando da produção crescente do descarte
humano”, assevera o pesquisador. Para Rodrigues, as pessoas em situação de rua
são “descartadas por este modelo econômico, enquanto tal, vivenciam uma total
violação de direitos humanos. A sociedade cria espaços de controle e
confinamento ‘a céu aberto’, relegando essas pessoas a um estado de
marginalização que tolera e permite o massacre destes indivíduos descartados.
Estamos presenciando uma série histórica de banimento de na ordem dos
direitos”, complementa.
O relatório da pesquisa foi publicado no formato de
livro e está disponível aqui.
Igor de Souza Rodrigues é doutor e mestre em
Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre, graduado em
Direito pelo Instituto Vianna Júnior e em Ciências Sociais pela Universidade
Federal de Juiz de Fora e especialista na área de sociologia. Atuou como
pesquisador Sênior do projeto A Gênese Social do Usuário do Crack –
Ministério da Justiça do Brasil – UFJF/SENAD (2014-2017) e membro
do Centro de Estudos Sobre Cidadãos em Situação de Rua.
<><> Confira a entrevista.
·
A primeira pergunta não é um recorte de sua
pesquisa, mas imagino que exista uma estimativa que o senhor possa trazer para
contextualizar o tema. Qual o número de pessoas em situação de rua no Brasil?
Por que isso acontece, apesar de haver investimentos em políticas públicas?
Igor Rodrigues – O Brasil tem hoje
aproximadamente 300 mil pessoas vivendo nas ruas de todo o país. A
questão que eu e o sociólogo Dmitri Fernandes dedicamos anos de
pesquisa foi entender o motivo do número ter crescido 1000% na última década
apesar do aumento dos investimentos e da diversificação dos serviços na área
social, ou seja, é preciso entender qual o ponto chave e o motivo pelo qual as
cidades não têm conseguido resolver ou, pelo menos, frear este problema social
apesar da atenção que o problema vem recebendo nos últimos anos.
Após décadas de políticas fracassadas neste segmento, a
pergunta “onde se tem errado?” se
tornou essencial para uma virada eficaz no modo de compreensão sobre a vida nas
ruas. Há quatro anos, em entrevista
ao IHU, relatei que as
políticas eram apenas castelos de areia e não lograriam êxito. O Brasil
coleciona um retumbante fracasso em relação às políticas para a situação de rua
e precisa com urgência rever este panorama.
O pior é que os pesquisadores e cientistas do assunto
continuam calados sem explicar esse fracasso – o debate, precário, recorre ao
mero instrumento descricionista-etnográfico ou aos censos para apontar quantos
aumentaram. Sem uma abordagem criativa e humanitária, os governos se limitam às
políticas esgotadas, albergacionistas, quando não traçam alguma escalada pela
barbárie e pela eliminação. Enfrentamos, então, o que estamos chamando de
um panorama sombrio: a
falta de alternativas ao debate público sobre a situação de rua, não apenas no
Brasil, mas no mundo. A falta de articulação entre as políticas públicas, as
estruturas sociais e as experiências individuais perpetuam o problema,
transformando a situação de rua em um reflexo do colapso do sistema
socioeconômico.
·
Quais são os principais mitos em torno das
razões pelas quais as pessoas passam a viver em situação de rua? Qual a
importância de desconstruí-los?
Igor Rodrigues – Vou destacar
três mitos. De um modo geral, a população acredita que a situação de rua é
causada pela droga, especialmente pelo crack. Por vezes, o crack pode, de fato,
ser encontrado na dinâmica de quem vive nas ruas, mas nem sempre. A droga não
pode ser tomada como uma explicação simplista e reducionista da vida nas ruas,
até porque uma gama de indivíduos está na rua e não utiliza nenhuma substância
ou começou a utilizar após ir para as ruas; por outro, há vários que utilizam
substâncias psicoativas em larga escala, cocaína, ecstasy, metanfetamina e até
crack e não estão vivendo nas ruas.
Outro mito é que
são simplesmente pessoas vagabundas, que não fazem absolutamente nada. As
pessoas em situação de rua precisam se virar, catam latas, vendem balas, fazem
carga e descarga de materiais, atuam em setores da agricultura como a colheita
do café e da cana, porém, não há reconhecimento de seu trabalho, a troca não
atinge recompensas materiais e apenas explora os fundos de vida. A história
de Janaína, que começa às 7 horas da manhã e para as 22 horas para catar
lixo, resume um pouco o cotidiano da vida nas ruas. Janaína consegue
cerca de R$ 15 por dia, a sua jornada pouco consegue transformar em renda ou
recompensas materiais, praticamente trabalha para comer, “o meu rolê é o lixo”,
disse ela em uma das conversas que tivemos.
Temos também o mito
da infestação, replicado, por exemplo, no livro a Máfia dos Mendigos: como
a caridade aumenta a miséria. O senso comum tem acreditado que a situação de
rua aumenta porque as pessoas estão sendo bem tratadas com políticas sociais,
que é cômodo viver nas ruas. Há muito sofrimento na vida nas ruas, as pessoas
nos relataram dramas profundos, mutilação da subjetividade, mas percebemos que
querem sair desta condição. Além disso, a causa do fenômeno são as rupturas nos
ciclos de troca social e o processo de descarte humano crescente nas últimas
décadas, não a suposta “comodidade” que a vida na rua teria, até porque esse
pensamento é, em si, uma crítica às políticas de transferência de renda, que as
pessoas ali teriam direito estando na rua ou não.
·
Até que ponto a “teoria da multicausalidade”
explica o crescimento da população de rua e a partir de que ponto ela é
insuficiente?
Igor Rodrigues – Os
pesquisadores e cientistas que estudam a vida nas ruas estão rendidos ao fácil
e cômodo jargão “a situação de rua é
multicausal”, ou seja, explicada por inúmeros fatores: políticos,
econômicos, culturais – praticamente toda a literatura escapa de uma explicação
fenomenológica em razão do generalismo e a superficialidade desta teoria. Dizer
que é multicausal sem, de fato, aprofundar na explicação detalhada do problema
criou uma superficialidade enorme nos estudos da situação de rua. Ora, todo
problema social é complexo e multicausal, a questão passa a ser, então,
entender o que estas aparentes “causas”
têm em comum? Estudando a vida dessas pessoas, descobrimos
que, por detrás das brigas familiares, depressão, consumo de drogas,
alcoolismo, está a humilhação, a fragmentação e a frouxidão das relações
sociais. Estes elementos comunicam todos os outros, portanto, estão na raiz do
problema social.
IHU – As pessoas em situação de rua são
pessoas excluídas da sociedade ou elas fazem parte do “sistema”? Por quê?
Igor Rodrigues – A vida nas
ruas e os indivíduos que vivem nestas condições não estão fora do sistema
capitalista, pelo contrário, são produtos desta sociedade, fabricados,
embalados e entregues por um sistema econômico agressivo, destruidor e colapsado. França, Estados Unidos, Alemanha, Índia, Argentina, Portugal, China, África do Sul e diversos outros territórios também
registraram um acréscimo estrondoso dessa população, que não se restringe a
locais mais ou menos ricos. Este modelo de sociedade tem produzido não
apenas resíduos plásticos, mas pessoas, subjetividades descartadas na
lógica do sistema e não mais aproveitadas. Embora esses indivíduos sejam
tratados como “resíduos indesejáveis” – os sujos, feios e malvados -, eles
representam uma manifestação extrema das contradições de nossa sociedade. A rua
é a feiura do capital, um reflexo sombrio da precarização econômica e social.
Os indivíduos em situação de rua são a base de
sustentação de uma pirâmide de exploração no mercado da reciclagem, de venda no
comércio ambulante, em atividades no período de safras, entre outras. Além
disso, participam como peças-chave no controle social, cuja existência reforça
a culpa pela violência urbana, por exemplo. Tratá-los a partir da exclusão
total seria ignorar todas estas facetas, incluindo os aspectos sinistros da
relação.
·
A Constituição de 1988 ganhou o apelido de
“Constituição Cidadã”. A razão é porque ela tinha, no seu núcleo, um paradigma
orientado à solidariedade. Porém isso parece ter se degradado progressivamente
nos últimos 36 anos. O que explica o enfraquecimento da reciprocidade social
que nos leva ao cenário atual?
Igor Rodrigues – A Constituição
Federal de 1988 nunca chegou de fato às pessoas que vivem nas ruas. São
inúmeras violações históricas, massacres, indignidade, fome, frio, episódios
grotescos, desrespeito a qualquer tipo de humanidade de quem vive nestas
condições. A Constituição Brasileira seguiu um modelo de estado de bem-estar
social, típico de um período do capitalismo, contudo, ao longo dos anos, esse
próprio sistema econômico tem perdido a capacidade de absorção dos indivíduos
via cidadania, criando pessoas dispensáveis e refugo descartável.
A democratização de direitos,
de cidadania, depende, em boa medida, dos vínculos que uma sociedade
desenvolve. Tem-se caminhado pelo individualismo, por trocas sinistras, ou
seja, contato, proximidade física, mas formas obscuras de se relacionar. O
conceito de cidadania se tornou esvaziado para parcelas significativas da
população, incluindo os que vivem nas ruas. É um conceito ainda bastante fixado
ao modo de vida das classes mais estabelecidas, como a classe média.
·
De que maneira o mundo do trabalho, com os
processos de precarização de direitos de trabalhistas (chamada uberização)
e de eliminação de postos de trabalho (automação de atividades) impacta no
aumento da população em situação de vulnerabilidade social extrema?
Igor Rodrigues – Temos que entender
os processos sociais como um todo. Na Revolução Industrialna Inglaterra no século XVIII, a população miserável
era uma parcela reserva aos empregos nas fábricas. Esse processo mudou
especialmente com a automação, alcançando níveis jamais vistos desde a
introdução da microeletrônica, a partir de 1980 até os dias atuais. O capitalismo tem, cada vez mais, eliminado postos de
trabalho, como o de atendente, caixa de supermercado, cobrador de ônibus, são
algumas das profissões em extinção. Algumas atividades surgiram neste mercado,
porém, o saldo é negativo e as novas profissões não envolvem os trabalhos cujas
camadas miseráveis têm oportunidades. A combinação entre precarização e
automação não apenas empurra indivíduos para a pobreza, mas também amplia
desigualdades estruturais.
O resultado é que, nos últimos anos, milhões de
brasileiros foram para a informalidade, como vendedores ambulantes, catadores,
entregadores de comida, ubers, entre outros. O aumento da situação de rua é
consequência direta deste processo na medida em que há um tensionamento dos
postos de trabalho, alguns são empurrados para as atividades com baixíssimas
recompensas materiais como a catação de lixo – trabalhos exaustivos com
exploração dos fundos de vida.
·
O que são as “trocas sinistras”, expressão
conceitual que resulta do seu trabalho de pesquisa e de sua equipe, e o que o
debate traz de novo para a discussão deste problema tão sério?
Igor Rodrigues – Durante quase
dez anos de pesquisa, pudemos perceber que uma das questões centrais do
fenômeno está na base das relações sociais: a sociedade não tem conseguido
completar ciclos de reciprocidade com as pessoas em situação de rua e
vice-versa – enormes trincas nas subjetividades, destruição da autoestima,
falta de confiança, expectativas e profecias negativas geram o que temos
chamado de trocas sinistras.
Uma relação efetiva que promove a inclusão depende de
um ciclo entre dar-receber-retribuir, porém a sociedade tem visto as pessoas em situação de rua apenas sob o fardo da
assistência, sem capacidade de retribuição nas trocas sociais. Nasce assim uma
forma de se relacionar sem reciprocidade: trocas sinistras são relações
ambíguas, muitas vezes camufladas, que trazem um componente de eliminação,
violação e perversidade. São trocas assimétricas, predatórias e frequentemente
violentas, por exemplo, quando alguém para se livrar de um pedinte na mesa do
bar dá uma esmola, ou seja, há proximidade física, existe contato, mas a
relação se baseia na fragmentação da troca e na humilhação.
O conceito de trocas sinistras oferece uma visão
alternativa para compreender a vida nas ruas, desloca o foco do indivíduo para
as relações sociais e levanta a falta de confiança e a humilhação nas trocas
para explicar o enguiço das políticas públicas e o aumento da situação de rua.
Explica, por exemplo, e a baixa adesão às políticas, o motivo pelo qual muitas
pessoas em situação de rua não aceitam, desconfiam e têm medo do Estado –
questões até então pouco compreendidas pelos cientistas.
·
Em que sentido diversos centros de
acolhimento dessas populações, ao mesmo tempo que oferecem condições sanitárias
e de alimentação essenciais, por outro lado produzem rotinas humilhantes à
população de rua? Como isso afeta a subjetividade dessas pessoas?
Igor Rodrigues – Poucos
centros de acolhimento verdadeiramente acolhem, as rotinas humilhantes destes
lugares revelam uma tensão profunda entre a oferta de cuidados essenciais e a
reprodução de estruturas opressoras. O acolhimento no Brasil precisa ser
reconstruído a partir de outras lógicas. Em muitos casos, essas instituições
impõem regras e práticas que desconsideram a individualidade e a dignidade dos
indivíduos. O controle desmedido do cotidiano, como restrições à circulação,
horários fixos e imposição de comportamentos, acaba por transformar a
assistência em uma troca sinistra. Por fim, as pessoas acabam por não aderir
aquilo que foi, em tese, proposto para evitar a situação de desabrigo.
Pudemos ver através das pesquisas o impacto na saúde
mental e emocional das pessoas em situação de rua, reforçando ciclos de
vulnerabilidade e exclusão. Esses indivíduos muitas vezes internalizam os
estigmas sociais, o que pode levar à perda de autoestima e de esperança. A
experiência repetida de humilhação e despersonalização minam a autoestima e
reforçam sentimentos de inutilidade e rejeição. Como mencionamos na pesquisa,
esse esfacelamento moral é o reflexo de um sistema que reduz os indivíduos ao
descarte.
·
Giorgio Agamben tem um conceito
bastante popular chamado “homo saccer”, que se refere às
pessoas que são “sacrificáveis”, que estão à margem dos direitos
constitucionais. Como isso aparece na questão da população em situação de rua?
Até que ponto a Constituição e o Estado os protege e ampara?
Igor Rodrigues – A população
de rua é a ponta da corda, o final do processo de circulação e troca desta
sociedade. Estamos diante de um
fenômeno mais profundo do que parece ser. Os pesquisadores não
estão entendendo a complexidade e o que a vida na rua significa do ponto geral
do sistema social. Estamos falando da produção crescente do descarte humano, a
sociedade acelerou em larga escala o processo de eliminação da cidadania.
São pessoas descartadas por este modelo econômico,
enquanto tal, vivenciam uma total violação de direitos humanos. A sociedade
cria espaços de controle e confinamento “a céu aberto”, relegando essas pessoas
a um estado de marginalização que tolera e permite o massacre destes indivíduos
descartados. Estamos presenciando uma série histórica de banimento na ordem dos
direitos.
O Estado é uma grande incógnita para quem vive nas
ruas: às vezes um ponto de assistência, de auxílio e de apoio; por outras,
fonte da própria humilhação e violação, isto é, o Estado não deixa de ser um
agitador das trocas sinistras. Uma parte dos que vivem nas ruas já criou uma
resistência ao Estado, tem medo, não quer proximidade ou relação – esse é um
outro desafio a ser rápido e urgentemente considerado.
·
Diante dessas encruzilhadas, como construir
políticas públicas capazes de dar conta de um problema humanitário tão grave,
que é a população em situação de rua?
Igor Rodrigues – Essa é uma
boa definição para o momento das políticas para a situação de rua: o Brasil
está na encruzilhada, precisa, em primeiro lugar, entender onde estão os
equívocos, ou seja, por quais motivos as políticas, os investimentos e os
serviços aumentaram e, ao mesmo tempo, o problema cresceu 1000%. Existe
uma necessidade de revisão da forma como as políticas foram desenhadas, muitas
foram criadas objetivando direitos para quem vive nas ruas, mas não alcançam de
fato esta população – inclusive pelo tipo de troca que permeia as relações, em
suas formas sinistras, como propomos neste estudo. Entender a falta de
eficácia, a não aderência, a falta de efeitos transformadores são alguns dos passos
para que as políticas possam realmente apresentar resultados positivos frente
ao tsunami do descarte humano.
Fonte: Entrevista com Igor Rodrigues, para IHU OnLine
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