O colonialismo
espacial do Vale do Silício: entre o escapismo de Musk e o extrativismo
extraterrestre de Bezos
Nas páginas
iniciais de A Parábola do Semeador (1993), Octavia E.
Butler descreve um sonho onde a memória terrena e a imaginação cósmica se
entrelaçam como luzes distantes compostas de estrelas e corpos celestes. O
romance reflete os restos, compostos de recordações e símbolos, de um futuro
possível mais esperançoso.
Lauren Olamina, a
jovem protagonista que sofre de hiperempatia, encontra no firmamento uma
centelha de esperança, quando a mudança
climática global e
as crises econômicas levam ao caos social na Califórnia, no início dos
anos 2020. As estrelas, como espaços comuns e distantes, convertem-se em
“refúgios imaginários” contra uma vida de abundância fora da Terra, que
foi colonizada. No caos, a visão de Lauren transforma a vastidão
cósmica em um lugar íntimo, em um respiro tangível onde o remoto e o possível
se abraçam para criar uma nova fé, sobreviver e encontrar um novo destino
humano.
Estamos em 2025.
Os incêndios
florestais na Califórnia arrasaram mais de 400.000 hectares, especialmente
em áreas como Los Angeles e Camarillo, forçando milhares de
pessoas a sair e destruindo comunidades inteiras. Até o momento, o número de
mortos é de 25.
Paralelamente,
na Flórida, Jeff
Bezos lançou
com sucesso o foguete New Glenn, conseguindo colocar um satélite em
órbita, embora a tentativa de recuperar o propulsor principal tenha falhado.
Este lançamento representa um marco na concorrência espacial comercial, na qual
a Blue Origin busca se posicionar frente a empresas como a SpaceX,
a companhia de Elon
Musk que
já domina o mercado com mais de 60 lançamentos bem-sucedidos no ano passado.
Isto acontece apenas um dia após o foguete do magnata explodir sobre
o Caribe, forçando as companhias aéreas a desviar seus aviões.
A corrida
espacial contemporânea representa uma transformação em relação à
concorrência entre países da Guerra Fria. Se no passado a exploração
espacial estava articulada em torno do prestígio nacional e da segurança
geopolítica, hoje, por um lado, configura-se como um vetor de acumulação
capitalista e, por outro, como uma estratégia de enfraquecimento do Estado.
As infraestruturas
privadas são fundamentais na expansão da batalha geopolítica para o espaço.
Como destacou o caso das comunicações por satélite, cujo marco foi o sucesso
da União Soviética em colocar em órbita o primeiro satélite,
o Sputnik 1, em outubro de 1957, estas tecnologias nasceram no contexto de
uma “Guerra Fria total” que subordinava amplos setores da sociedade aos
imperativos da segurança nacional e do prestígio global.
Atualmente, os
donos das infraestruturas monopolizam as vias de comunicação, favorecendo as
lógicas da segurança nacional dos Estados Unidos, facilitando o novo
colonialismo espacial e
permitindo as lógicas da acumulação por desapropriação. O melhor exemplo
de como esse “poder infraestrutural” opera é que Musk controla a
empresa de fabricação espacial SpaceX, amplamente ligada ao Exército
estadunidense, e ao mesmo tempo lançou a Starlink, uma contratada do Pentágono para
criar a maior rede de vigilância do mundo, aliada da Ucrânia no
conflito com a Rússia.
Bezos também
não é apenas o dono do ramo de comutação na nuvem Amazon Web Services, que
concentra um terço do tráfego da internet e dá suporte para a maioria das
empresas do IBEX-35, mas também lançou uma empresa de transporte
aeroespacial, a Blue Origin, que almeja oferecer voos suborbitais e
orbitais, tanto para missões oficiais dos Estados Unidos quanto para
voos privados.
<><> SpaceX,
especulando com o futuro
No entanto, as visões
que os dois magnatas têm sobre a corrida espacial estão longe de ser
semelhantes, embora possam ser complementares. Em primeiro lugar, personagens
como Elon Musk buscam avançar na agenda libertária de destruição do
Estado por meio de qualquer veículo possível. Para isso, desde 2016, defende
que a humanidade deveria estabelecer colônias autossuficientes e politicamente
independentes em Marte para garantir
a sobrevivência da espécie humana quando a Terra for destruída.
A literatura
acadêmica destacou que essa forma de mobilizar os imaginários coletivos, muitas
vezes provenientes da ficção, faz parte de uma especulação sobre o futuro que
pode ser entendida como “regimes de antecipação”, quando uma possibilidade
imaginada e desejada é legitimada por meio de narrativas históricas
deterministas, de progresso tecnológico e científico contínuo,
construídas sobre uma nostalgia por épocas passadas de invenção e exploração.
Mas, o que buscam? No caso da SpaceX, isto implica assumir a
inevitabilidade da ruína terrestre, enquanto mobiliza um poderoso discurso
sobre os grandes homens que se dedicam à inovação científica em detrimento do
Estado.
Embora os grandes
homens da história e as empresas privadas ágeis e disruptivas sejam
apresentados como os protagonistas heroicos e gloriosos, no fundo, encontramos
uma ideologia “pós-neoliberal” típica de figuras neorreacionárias.
Assentada sobre a base de que é possível existir um complexo mosaico de
pequenos e competitivos projetos para a criação de Estados de propriedade
privada (“Gov-Corps”), comunidades autônomas fechadas, cidades-estado e,
inclusive, comunidades “extraterrestres”, como propõe Musk, nas palavras
da pesquisadora Alina Ulatra, almeja-se abandonar os estados territoriais
existentes por meio da criação de comunidades soberanas em novos espaços. Entre
os exemplos mais notáveis destacam-se a colonização do espaço, mas também
a construção de plataformas flutuantes no oceano e os estados digitais na
internet, conforme propôs Peter
Thiel.
Até o momento,
graças às mudanças introduzidas pelo governo Obama para favorecer
empresas privadas como a Boeing, a SpaceX conseguiu se
posicionar como uma destacada concorrente e impor sua visão de mundo às
empresas aeroespaciais tradicionais no âmbito dos lançamentos orbitais de
tripulação e carga nos Estados Unidos. A explicação pode ser encontrada em
um elemento central da economia capitalista: custos mais baixos, lucros
maiores e a acumulação de poder político. Os custos de lançamento da empresa
de Musk são mais baixos que os dos rivais. Além disso, possui um
orçamento bilionário para ações judiciais quando perde contratos públicos e
exercícios de pressão política no Congresso dos Estados Unidos.
Até aqui, tentou
influenciar nas negociações comerciais entre os Estados Unidos e
a União Europeia, criticando o apoio que a Agência Espacial
Europeia (ESA) e o governo francês oferecem à Arianespace, cuja série
de foguetes Ariane compete diretamente com o Falcon
9 da SpaceX. Segundo pesquisas, antes, a Arianespace e
a Roscosmos dominavam aproximadamente 80% dos lançamentos comerciais.
Agora, a SpaceX fica com cerca de 50 a 66% dos novos contratos neste
setor. Sua capacidade de oferecer serviços de lançamento eficientes e sua
constelação de satélites Starlink também levaram vários países a
depender de suas tecnologias. Por exemplo, a União Europeia recorreu
à SpaceX para lançar satélites Galileo, marcando a primeira
colaboração deste tipo e refletindo a crescente influência da empresa
na Europa. Em resumo, não só está redefinindo a exploração espacial, mas
também remodelando as dinâmicas de poder entre nações e corporações no século
XXI.
<><> A
economia extraterrestre da Blue Origin
Em relação
a Jeff Bezos, o magnata imagina a criação de uma infraestrutura imperial
por meio da construção de habitats artificiais que orbitariam
a Terra e poderiam abrigar bilhões de pessoas, evitando a estagnação
civilizacional e expandindo o capitalismo para as estrelas. Nas
palavras do magnata, com a Blue Origin, buscaria “construir um caminho
para o espaço” e desencadear uma “nova indústria espacial” que possibilite aos
empreendedores “criar uma empresa de seu dormitório”. Concretamente, a
estratégia é criar operadores de satélite e suporte para
o Pentágono que sejam mais baratos que os da SpaceX, graças à
chamada “economia extraterrestre”, onde a fabricação e a mineração são feitas
no espaço.
Como se fosse a
premonição da protagonista do romance de Octavia E. Butler, alguns
trabalhos acadêmicos críticos, como o da já citada Alina Ulatra, colocaram
sobre a mesa que a ideia de Bezos de conquistar o espaço, a chamada
“fronteira vazia”, assenta-se na mesma lógica de territorialização que
justificou o colonialismo terrestre e a espoliação indígena. “A colonização
espacial é apresentada como uma solução tecnológica para a crise
climática,
uma que não requer mudar os modelos subjacentes de crescimento extrativista
do capitalismo colonial.” Dessa forma, o dono da Amazon acredita
que sua infraestrutura permitirá que o capitalismo se expanda para o
espaço, ao mesmo tempo em que preserva os ecossistemas terrestres.
Assim como acontece
com os projetos imperiais na Terra, os observadores críticos alertam que
existe o perigo de que, com a colonização do espaço, repitam-se os erros
da colonização
territorial da Ásia, Oceania, África e Américas.
De fato, a historiadora Mary-Jane Rubenstein situa esse esforço em
conquistar o espaço no marco de uma promessa de salvação quase religiosa:
diante de um apocalipse iminente, alguns messias extremamente ricos oferecem
uma fuga para outro mundo reservado a poucos eleitos. Afinal,
os capitalistas tecnológicos não só impõem imaginários sociais e
determinam o futuro através do fluxo de mercadorias. São as infraestruturas que
sustentam essa utopia estúpida na qual o mercado é o único mecanismo para a
nossa realização.
Até o momento, a
única posição a esse respeito tem sido retificar a chegada de tecnomaquinaria
incrivelmente cara em termos de consumo de energia e rezar para que as empresas
do Vale
do Silício se
instalem em seus territórios. O problema é o seguinte: renunciar à autonomia
política para escolher a direção do desenvolvimento tecnológico, seja na terra
ou na lua, implica também abandonar outra série de questões fundamentais, como
a capacidade de decidir sobre os ecossistemas naturais e combater os riscos
provenientes da crise climática.
<><> Os
centros de dados como subterfúgio
Um dos espaços mais
interessantes para observar são os Centros de Processamento de Dados.
Graças a eles, a fibra óptica transcontinental e transoceânica se conecta aos
milhares de roteadores e servidores, cada um deles ligado a centenas de outros
cabos elétricos que representam outros quatrilhões, “uma quantidade insondável
de informação”, como definia o primeiro jornalista do mundo a pesquisar as
origens da infraestrutura física da internet global.
No território
espanhol, a Amazon construiu um campus de três centros de dados, em
Aragón, por meio da sua filial Amazon Web
Services. Google e Microsoft abrirão novas regiões de
nuvens em Madrid através da Telefónica. A IBM também
construirá mais três centros de dados na capital, seu maior investimento
na Espanha. Por sua vez, a Orange destinará investimentos no
valor de 24 milhões para seus novos centros de dados na “Espanha periférica”,
buscando tirar vantagem do baixo preço da terra. Recentemente,
o Facebook (agora chamado Meta) anunciou a criação de quase
2.000 empregos para impulsionar o laboratório do metaverso
em Madrid e um novo centro de dados em Castela-Mancha.
Em 2023, a entrada
de novos atores no mercado de centros de dados na Espanha aumentou a
faixa de potência de 200 para 500 MW. Tal capacidade é necessária para
converter cada experiência da vida de uma pessoa em um cálculo matemático,
quase sempre graças a modelos de inteligência artificial, orientados ao
consumo de produtos financeiros e a aumentar consideravelmente as necessidades
de extração de recursos naturais. Efetivamente, como mostram artigos
acadêmicos, a maioria dos centros de dados requer um grande e contínuo
fornecimento de água para gerenciar seus sistemas de resfriamento, o que
levantou graves problemas políticos em lugares como os Estados Unidos,
onde anos de seca assolaram as comunidades locais.
Em especial, como
denunciam relatórios e investigações do Greenpeace, os centros de dados
da Virgínia experimentaram um crescimento “espetacular” no uso de
energia, atingindo cerca de 4,5 gigawatts, ou seja, a mesma potência de nove
grandes centrais elétricas a carvão (cerca de 500 megawatts). O maior culpado,
a Amazon Web Services (AWS), gasta 1,7 gigawatts em seus 55 centros
de dados (em funcionamento ou construção), o que significou um aumento de 60%
nos últimos dois anos. Devido aos avanços na computação em nuvem e ao
crescimento do uso de serviços de internet, os centros de dados têm o maior
crescimento na pegada de carbono de todo o setor das tecnologias
digitais. De fato, segundo o Financial Times, em apenas três anos,
a Microsoft viu um aumento de 30% nas emissões de carbono.
Dado que o gasto de
energia geral dos centros de dados chegará a um terço dos 20% do consumo
mundial de energia gerado pelas tecnologias da informação, a Comissão
Europeia assinou um acordo com a empresa Thales Alenia
Space para estudar a viabilidade de colocar centros de dados em órbita
espacial. Marte e a Lua serão os
lugares que o programa ASCEND, dentro do programa de pesquisa Horizon
Europe, inspecionará como espaços para colocar os centros de computação com o
objetivo de reduzir a pegada de carbono. “Centros de dados são
transferidos para o espaço para mitigar o consumo de energia e a poluição”,
dizia uma manchete do El País, em 2022.
Em 2019, inclusive
a Amazon patenteou uma rede de centros de dados distribuída
geograficamente em um ambiente extraterritorial. Também um centro de dados
lunar como parte de seu ramo de computação em nuvem, Amazon Web Services,
que ficará localizado em Mare Tranquillitatis, uma bacia na Lua. Após
explorar até o último espaço possível da Terra, e diante da nula
disposição para mudar o modelo de crescimento econômico, uma missão de grandes
corporações especializadas em infraestruturas espaciais buscará otimizar a
arquitetura necessária para explorar os planetas vizinhos a um custo aceitável.
Essa colonização
do espaço por meio de infraestruturas digitais define como funcionam os
modelos extrativos das grandes empresas de tecnologia. Após tomar nossos vales,
nossas montanhas e nossos oceanos, as empresas que gerem os centros de dados
avançam em todos os tipos de futuros coloniais. Algumas estão mais focadas na
computação espacial, como a empresa estadunidense OrbitsEdge. Outras, como
a empresa japonesa Nippon Telegraph and Telephone, planejam lançar um
centro de dados no espaço em 2025. Neste caso, o objetivo é processar
localmente os dados dos satélites para transmitir apenas informações úteis
selecionadas para a Terra, o que reduziria o tempo e o custo da
transferência de grandes quantidades de dados.
Conforme a
pesquisadora Yung Au, do Oxford Internet Institute, apontava em um
trabalho acadêmico, o pensamento ocidental está estendendo seus imaginários
coloniais em direção a esquemas sociais coletivos para projetar utopias de
acordo com os planos macabros das grandes corporações tecnológicas.
Estamos diante de “um futuro em que o universo é reivindicável, um futuro de
céus geridos pela geoengenharia e um futuro em que os bens comuns globais,
como a Lua, são repartidos de forma privada”. Estamos a tempo de propor
alternativas, mas precisarão ser tão radicais quanto as propostas dos
bilionários.
Precisamos de
infraestruturas públicas para a comunicação, erradicar as lógicas de vigilância
de seu funcionamento, acabar com as guerras e empreender uma corrida entre os
países para desmercantilizar as tecnologias digitais. A esse respeito,
talvez nos sirva contarmos outros tipos de histórias, como aquela em que
as Nações Unidas tentaram aproveitar a promessa de paz para aumentar
a cooperação científica e afastar o potencial bélico da Era
Espacial por meio da adoção do Tratado do Espaço Exterior,
o Acordo sobre o Resgate e o Retorno, a Convenção sobre
Responsabilidade, a Convenção de Registro e o Acordo da Lua.
Fonte: Por Ekaitz
Cancela,
em El Diário
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