Tomás Rotta:
Cadeias globais de valor
A economia global passou por uma
significativa reestruturação entre 2000 e 2014, impulsionada principalmente
pela rápida ascensão industrial da China e sua integração à Organização Mundial
do Comércio em 2001. Esse período marcou uma mudança crítica nas cadeias
globais de valor, com a realocação da manufatura de países
desenvolvidos para a Ásia. As consequências econômicas foram profundas,
transformando salários, empregos e a distribuição de renda entre as nações.
O meu
recente estudo empírico, publicado em janeiro de 2025 na revista Environment and Planning A: Economy and Space, estima a
produção, realização e captura de valor econômico nas
cadeias globais de valor em 56 setores e 43 países entre 2000 e 2014. Baseado
na teoria marxiana do valor, o trabalho destaca como o valor é produzido pelo
trabalho e, em seguida, transferido ou capturado entre indústrias e países.
Além disso, analisa as causas por trás da captura de valor, elucidando as
disparidades econômicas globais.
·
Estrutura conceitual
A análise é fundamentada na teoria marxiana
do valor, que permite um exame detalhado da criação e distribuição do valor
econômico. Em especial, o estudo generaliza para a escala mundial a abordagem
da Nova Interpretação (New Interpretation)
da teoria marxiana do valor, desenvolvendo uma nova metodologia empírica que
permite a estimação da produção, realização e captura de valor na economia
global.
Os principais conceitos incluem: (i)
Produção de valor: O total de trabalho (direto e indireto) incorporado nas mercadorias,
incluindo o trabalho utilizado para produzir insumos, como máquinas e
matérias-primas. (ii) Realização de valor: A alocação do valor global por meio
das transações de mercado, que são realizadas a preços correntes. (iii) Captura
de valor: A diferença entre o valor realizado e o produzido, representando a
transferência de valor entre setores de diferentes países.
Neste aspecto, é importante ressaltar que a
teoria marxiana distingue atividades produtivas de atividades improdutivas.
Atividades produtivas geram novas mercadorias, enquanto atividades improdutivas
não criam novo valor, mas sim recirculam e consomem o valor produzido em outros
setores. Exemplos de atividades improdutivas incluem as finanças, o mercado
imobiliário (excluindo o setor de construção), os comércios varejista e
atacadista, a administração pública, e os serviços de defesa nacional e de
segurança pública. Essa distinção entre atividades produtivas e improdutivas
desafia a suposição convencional de que todas as atividades econômicas são
produtivas.
·
Transferências globais de valor
A análise empírica do meu estudo revela que
o valor flui predominantemente de setores intensivos em trabalho para setores
intensivos em capital, e de atividades produtivas para atividades improdutivas.
Setores intensivos em trabalho, como saúde,
educação, construção, agricultura e serviços, foram os maiores doadores de
valor. Esses setores transferem grandes quantidades de valor para indústrias
intensivas em capital, como manufatura, mineração e extração de petróleo. Esse
padrão de transferência de valor destaca os custos econômicos suportados por
atividades intensivas em trabalho, especialmente em economias em
desenvolvimento.
Neste contexto, entre 2000 e 2014, a China
emergiu como o maior doador de valor na economia mundial, enquanto os Estados
Unidos foram o maior capturador de valor. Esse padrão nos fluxos de valor
reflete a substancial realocação da manufatura para a China e a predominância
das atividades improdutivas nos EUA, entre elas as finanças, o comércio, o
mercado imobiliário e o exército.
As atividades improdutivas desempenham
assim um papel central na captura de valor. Apesar de não gerarem novo valor,
setores como finanças, comércio, mercado imobiliário e exército extraem uma
parcela substancial do valor global. Por exemplo, instituições financeiras
lucram com juros e taxas, enquanto agentes no mercado imobiliário capturam
valor através dos aluguéis e das taxas de administração. Essas atividades ampliam a
troca desigual de valor entre países e setores, beneficiando
desproporcionalmente as economias desenvolvidas com infraestrutura financeira e
comercial mais avançada.
Neste sentido, destaca-se em especial a predominância
do dólar americano e dos bancos americanos na criação de crédito, o que lhes permite
capturar uma parte significativa dos fluxos globais de valor. Em outro estudo,
publicado em 2024 na revista Structural
Change and Economic Dynamics, estimei que os Estados Unidos são de longe
o país que mais captura valor no mundo através do mercado financeiro.
Os dados indicam que as atividades
produtivas se deslocaram com forte rapidez dos EUA e da Europa em direção à
Ásia. Este deslocamento das atividades produtivas levou os países ricos a se
concentrarem em atividades improdutivas e os países em desenvolvimento a se
concentrarem em atividades produtivas, com especial destaque para o substancial
crescimento da manufatura na China.
·
As dimensões da exploração na
economia global
Usando a definição de exploração como troca
desigual de trabalho, o meu recente estudo de 2025 destaca duas dimensões da
exploração no nível mundial: (a) Exploração de classe: Dentro das empresas, os
capitalistas extraem mais trabalho dos funcionários do que o trabalho que estes
mesmos capitalistas contribuem à produção, resultando em trabalho não
remunerado por parte dos funcionários das empresas. (b) Exploração no comércio:
No nível global, indústrias e países com maior intensidade de capital, ou mesmo
com uma concentração maior de atividades improdutivas, tendem a capturar o
valor gerado por indústrias e países mais intensivos em trabalho humano.
Os resultados empíricos mostram que essas
duas dimensões da exploração estão interligadas no nível global. Atividades
intensivas em trabalho, as quais apresentam taxas mais altas de exploração, são
concomitantemente as maiores doadoras de valor. Por outro lado, indústrias
intensivas em capital capturam valor e desfrutam de taxas mais baixas de
exploração. Dessa forma, tal dinâmica pode explicar as disparidades globais de
renda e de desenvolvimento industrial.
Pelo fato do valor realizado se diferenciar
do valor produzido, existem na verdade duas taxas de exploração em cada
atividade econômica, em cada país e em cada setor. A “taxa de exploração
produzida” refere-se ao trabalho não pago tomando-se como base o valor
produzido por cada atividade, setor ou país. A “taxa de exploração realizada”, ao
contrário, refere-se ao trabalho não pago tomando-se como base o valor
realizado, o qual pode ser maior ou menor do que o valor de fato produzido.
Os dados mostram que a tendência é para as
atividades intensivas em capital terem taxas de exploração “produzida” mais
baixas, mas taxas de exploração “realizada” mais altas. As atividades
intensivas em trabalho humano, ao contrário, têm taxas de exploração
“produzida” mais elevadas, mas taxas de exploração “realizada” mais baixas.
Isso ocorre porque a tendência dentro do sistema econômico é a transferência de
valor das atividades intensivas em trabalho para as atividades improdutivas e
atividades intensivas em capital. Há, portanto, um vazamento de exploração das
atividades produtivas intensivas em trabalho, correspondente ao vazamento de
valor destas mesmas atividades.
Sobre este último aspecto, a minha análise
identifica três mecanismos principais que impulsionam essa captura de valor no
nível mundial: (1) Atividades improdutivas: Uma parcela significativa do valor
produzido em setores produtivos é consumida por atividades improdutivas, que
não criam novo valor, mas são essenciais para a realização do valor. Sem o
crédito do sistema financeiro, por exemplo, não haveria crescimento produtivo.
(2) Intensidade de capital: Indústrias intensivas em capital tendem a capturar
mais valor do que atividades intensivas em trabalho sob condições competitivas.
(3) Poder de mercado e concentração: Empresas maiores e economias mais
desenvolvidas utilizam seu poder de mercado para capturar valor de empresas
menores e de países em desenvolvimento. Este mecanismo é facilitado pela
centralização do capital e pela hierarquia dos sistemas de crédito
internacionais.
·
A hierarquia das nações
A ascensão da China como centro global da
manufatura fez dela a maior doadora de valor, enquanto os EUA continuam sendo o
maior capturador de valor, devido principalmente à sua predominância em setores
improdutivos.
As atividades intensivas em trabalho, como
agricultura, educação, saúde e construção, são as maiores doadoras de trabalho
humano. Serviços intensivos em trabalho, como saúde e educação, transferem
valor devido à sua baixa intensidade de capital. Afinal de contas, em mercados
competitivos, os lucros tendem a ser proporcionais ao valor do capital
investido, o que beneficia as atividades com maior quantidade de capital do que
de trabalho.
Os dados revelam não somente uma hierarquia
entre economias ricas e pobres, mas também uma hierarquia entre as próprias
economias ricas. Por um lado, observamos as transferências de valor de países
pobres (intensivos em trabalho) para países ricos (intensivos em capital). Por
outro lado, pode-se também observar que países ricos como Alemanha, Japão e
França (intensivos em capital) transferem valor para os EUA (intensivo em
capital, mas onde predominam as atividades improdutivas), refletindo a
dominância global de empresas americanas nas finanças, no comércio e no mercado
imobiliário.
·
Implicações para o
desenvolvimento econômico
Os resultados destacam o papel crítico da
industrialização e da intensidade de capital no desenvolvimento econômico.
Nações em desenvolvimento que dependem de atividades intensivas em trabalho
enfrentam desvantagens estruturais, pois transferem valor para indústrias
intensivas em capital nos países desenvolvidos. Isso enfatiza a necessidade de
políticas que promovam a modernização industrial e a inovação tecnológica nas
economias emergentes.
Além disso, a predominância de atividades
improdutivas nas nações desenvolvidas levanta preocupações sobre a
sustentabilidade dos mecanismos de captura de valor. Embora essas atividades
sejam essenciais para facilitar o comércio e o investimento, sua parcela
desproporcional do valor produzido poderia, potencialmente, prejudicar o
crescimento econômico a longo prazo dos próprios países ricos.
·
Repensando a teoria da troca
desigual
No plano teórico, o objetivo do meu estudo
é desenvolver a teoria marxiana do valor para a economia global, oferecendo
novas perspectivas sobre a produção, realização e captura de valor.
No plano empírico, os resultados enfatizam
as desigualdades estruturais inerentes às cadeias globais de valor, onde
atividades intensivas em trabalho e países em desenvolvimento tendem a
transferir valor para indústrias intensivas em capital e para as nações
desenvolvidas.
Entretanto, as estimativas que resultam do
meu estudo empírico desafiam as abordagens convencionais sobre a troca
desigual, afinal as abordagens convencionais assumem que todas as atividades
são produtivas. Ao incorporar a classificação das atividades entre produtivas e
improdutivas, o meu estudo oferece uma representação mais precisa das
transferências globais de valor. A minha abordagem revela, por exemplo, que os
EUA capturam valor não apenas de nações em desenvolvimento, mas também de
outras economias desenvolvidas, principalmente por meio de atividades
improdutivas.
A rápida industrialização da China e sua
demanda por produtos agrícolas e minerais de países em desenvolvimento também
reconfiguraram as cadeias globais de valor. Países como Brasil, Índia e
Indonésia emergiram como capturadores de valor devido às suas exportações para
a China, demonstrando a complexidade das transferências de valor na economia
contemporânea.
De maneira mais fundamental, as minhas
estimativas demonstram que a teoria da troca desigual é incompatível com a
suposição de que todas as atividades econômicas produzem valor. Os resultados
mostram que a teoria da troca desigual pode sim explicar a dinâmica da economia
mundial, mas somente sob a classificação marxiana das atividades produtivas e
improdutivas.
A teoria da troca desigual afirma que
países ricos exploram os países pobres, tomando por base a definição de
exploração como troca desigual de trabalho direta e indiretamente incorporado
em bens e serviços. Sob a suposição de que todas as atividades são produtivas,
os dados do meu estudo mostram que a China explora os Estados Unidos. Sob a
suposição de que as atividades improdutivas não geram valor, os dados mostram,
ao contrário, que os Estados Unidos exploram não somente a China e outro países
pobres, mas que exploram também outros países ricos.
Esta importante qualificação decorre
diretamente do rápido deslocamento das atividades produtivas para a Ásia, do
rápido crescimento das atividades improdutivas dentro de países ricos como
Estados Unidos e as economias da Europa, e da hegemonia do dólar no mercado
financeiro internacional.
Ao contrário do que muitos afirmam, a
teoria marxiana do valor não está ultrapassada e nem se tornou inútil. Esta
teoria pode explicar uma parte importante da economia mundial, principalmente
em relação à produção e captura de valor em escala global.
Fonte: A Terra é
Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário