Lipedema: a 'nova'
doença na lista da OMS que talvez você tenha sem saber
Mas diferente da
obesidade, a gordura característica do lipedema, marcada por fibrose, pelo
aspecto de "casca de laranja" ou "grãos de arroz" e pelo
acúmulo significativo de nódulos que se assemelham às celulites, não responde
a dieta e exercícios físicos.
"Vemos
mulheres que têm a cintura fina [não possuem alta concentração de gordura na
barriga], se alimentam de forma equilibrada, praticam exercícios físicos, e
acabam frustradas porque continuam com deformidade nos membros", diz Fábio
Kamamoto, cirurgião plástico e idealizador do Instituto Lipedema, localizado em
São Paulo.
Em 2019, a Organização Mundial
da Saúde (OMS)
reconheceu o lipedema como uma doença distinta. Em 2022, o quadro foi incluído
na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), um manual amplamente
utilizado como referência global para identificação e registro de condições
de sáude.
Essa inclusão
facilita o diagnóstico padronizado, o registro de casos e o planejamento de
políticas de saúde, contribuindo para avanços no cuidado de uma condição ainda
pouco conhecida.
No Brasil,
entretanto, a adoção da CID-11, prevista inicialmente para 2025, foi adiada
para 2027 pelo Ministério da Saúde, que justificou a decisão com a necessidade
de treinar profissionais e atualizar os sistemas.
O quadro clínico é
caracterizado por cinco estágios distintos, que variam em intensidade. À medida
que a condição avança, seus efeitos se tornam mais pronunciados, impactando não
apenas a saúde física, mas também a mobilidade e a aparência do corpo.
O lipedema
apresenta sintomas característicos que incluem alterações como nódulos na coxa
que se assemelham a celulite, apagamento do contorno natural dos joelhos devido
ao acúmulo de gordura, e o formato de "perna ampulheta" (com gordura
acumulada abaixo do joelho e afinamento
acima dos tornozelos).
Outros sintomas
comuns incluem dor, sensação de pernas pesadas, hematomas frequentes e marcas
na pele causadas pela má circulação, evidenciando a progressão do quadro e o
impacto na saúde e mobilidade.
Separadamente, no
entanto, esses sintomas podem indicar outras condições — às vezes, apenas
circunstanciais, como o uso de roupas muito apertadas — e o diagnóstico
correto, do qual falaremos mais a seguir, depende da avaliação de um
profissional de saúde com experiência no quadro.
·
Uma
doença ainda 'em descoberta'
O lipedema é
considerado 'novo' não só pela falta de familiaridade de profissionais de saúde
com o quadro — que ainda persiste mesmo após 85 anos da primeira descrição —
mas também porque faltam respostas importantes sobre o mecanismo da doença.
O cirurgião
vascular Mauro de Andrade explica que, por muito tempo, a gordura foi vista
apenas como um isolante térmico e depósito de energia. Apesar dos avanços no
entendimento de seu papel no controle metabólico do corpo, a gordura
característica do lipedema apresenta diferenças significativas, sendo distinta
tanto da gordura superficial de outras regiões quanto da gordura visceral, que envolve os
órgãos internos.
"Ainda falta
entender o mecanismo do acúmulo diferenciado da gordura do lipedema e suas vias
metabólicas, ou seja, os processos bioquímicos responsáveis pela produção,
armazenamento e mobilização dessa gordura no organismo", diz ele, que faz
parte da Comissão de Doenças Linfáticas da Sociedade Brasileira de Angiologia e
de Cirurgia Vascular - Regional SP (SBACV-SP).
Kamamoto acrescenta
que a principal pergunta em aberto é por que o lipedema acontece.
"Entender o
mecanismo celular exato possibilitaria desenvolver medicamentos eficazes.
Sabemos que a doença tem fatores genéticos e está relacionada a uma resposta
alterada ao estrogênio, e por isso tende a piorar em fases de mudanças
hormonais, como a puberdade e gravidez."
A doença parece
reagir de forma negativa a processos inflamatórios, como demonstrado em estudos
científicos e na prática clínica. Fatores como alimentação rica em açúcar,
gorduras e ultraprocessados, sedentarismo e consumo excessivo de álcool pioram
o quadro, porque esses hábitos estimulam a produção de substâncias
inflamatórias no corpo.
Além disso, algumas
pacientes optam por excluir glúten e lactose da dieta,
embora não haja evidências científicas que comprovem benefícios dessa exclusão
em pessoas sem intolerância, tornando essa prática uma escolha pessoal, e não
uma recomendação clínica.
O cirurgião Fábio
Kamamoto, que embora hoje dedique sua prática médica majoritariamente à doença,
conheceu o lipedema há apenas 10 anos.
"Uma amiga
fisioterapeuta tinha acabado de voltar de um congresso nos Estados Unidos e me
disse: 'Fábio, preciso que você atenda uma paciente minha que tem lipedema'. Eu
nem conhecia essa palavra na época."
"Essa paciente
apresentava muitos sintomas que hoje são característicos para mim, mas que, na
época, não eram amplamente discutidos: cintura fina, pernas grossas, piora após
o uso de anticoncepcional, dificuldade de
perder peso na parte inferior do corpo e nódulos dolorosos."
Os sintomas ainda
são desconhecidos para muitos, embora estime-se que 10% de todas as mulheres do
mundo sofram da condição — no Brasil, isso significa cerca de 10 milhões de
pessoas. Esse padrão se repete em países como Alemanha, Espanha, Austrália
e Estados Unidos.
Apesar do número
alto, foi só nos últimos anos que o quadro passou a ser mais conhecido, com
inúmeras publicações alertando sobre os sinais comuns nas redes sociais e
algumas celebridades, como a modelo Yasmin Brunet, falando abertamente sobre
seu diagnóstico.
Pelo fator da
"novidade", alguns profissionais da saúde ainda contestam o lipedema
como uma "doença".
"Por ser ainda
pouco compreendida, mesmo já estando no CID-11, alguns médicos não aceitam sua
existência. Isso acontece por preconceito, como chamar essas mulheres de
preguiçosas ou acusá-las de usarem o lipedema como desculpa para serem
gordas", opina Kamamoto.
Anos atrás, diz o
médico, a obesidade também era vista como preguiça, mas hoje sabemos que é uma
doença com fatores genéticos e hormonais.
"O mesmo
precisa acontecer com o lipedema. Tratar como invenção ou 'doença da moda' é um
olhar antigo e equivocado. É uma condição séria, com dores, deformidades,
problemas psicológicos e complicações físicas significativas. Há impactos na
saúde mental, como casos de anorexia e bulimia em mulheres que sofrem com a
doença"
·
Como
o lipedema pode afetar a saúde
A gordura do
lipedema, embora ainda seja um mistério para a ciência em muitos
aspectos, tem impactos bem concretos no corpo das mulheres.
"O sistema
linfático é uma das partes mais afetadas", explica Kamamoto.
"Ele funciona
como um encanamento que drena o líquido dos tecidos para o coração. Quando esse
sistema é sobrecarregado, podem surgir complicações como o linfedema. De forma
simplificada, o sistema linfático recolhe o líquido dos tecidos, leva-o para
dentro do sistema e o bombeia de volta para o coração."
Esse processo é
essencial para reciclar o líquido do corpo. No entanto, o excesso de gordura
pode comprimir o sistema linfático, causando um efeito semelhante a alguém
pisando em uma mangueira: o fluxo de líquido diminui.
"Às vezes, o
sistema linfático não está danificado ou rompido, mas funciona de forma lenta,
como se enfrentasse um congestionamento devido à pressão externa", detalha
o especialista.
As articulações
também sofrem as consequências. O peso excessivo nas pernas pode levar ao
desgaste da cartilagem, frouxidão ligamentar, alterações na pisada e até
deformidades nos joelhos.
"Se o lipedema
não for tratado preventivamente, acabamos lidando apenas com as consequências,
como a necessidade de substituir um joelho desgastado, sem abordar a saúde
integral da paciente", alerta o cirurgião plástico.
Além disso, estudos
mostram que pacientes com lipedema frequentemente enfrentam desafios
relacionados à saúde mental, incluindo baixa autoestima, depressão e ansiedade.
"Muitas
sofreram bullying e sentem que, mesmo com dieta, exercícios e cuidados, o
quadro só piora. Isso gera desespero e, em alguns casos, pode levar a dietas
restritivas extremas, desencadeando compulsão alimentar e, eventualmente,
transtornos como anorexia e bulimia", conclui.
·
Como
é feito o diagnóstico
O cirurgião
vascular Mauro de Andrade explica os principais aspectos analisados durante o
diagnóstico clínico de uma pessoa com suspeita de lipedema, além dos sintomas
já conhecidos.
"Avaliamos o
tempo da queixa de desproporção na distribuição da gordura corporal e a
dificuldade em reduzir essa gordura, mesmo após uma perda de peso
significativa. Também verificamos a relação desse quadro com mudanças
hormonais, como a primeira menstruação e gravidez, ou com ganho de
peso. Outro ponto importante é o histórico familiar, já que casos semelhantes
na família são observados na maioria das pacientes."
De acordo com o
médico, exames normalmente não são indispensáveis para o diagnóstico de
lipedema, mas podem ser úteis para identificar problemas associados e
acompanhar o tratamento.
"Podemos
solicitar um ultrassom venoso com doppler para verificar a presença de doenças
venosas, como varizes, que são muito comuns em pacientes com lipedema e podem
agravar os sintomas. Além disso, a densitometria corporal pode ser usada para
avaliar a composição do corpo, diferenciando massa magra, gordura e densidade
óssea."
·
Como
tratar o lipedema?
Ainda não há uma
cura definitiva para o lipedema. A principal linha de tratamento foca em em
comida 'de verdade' — alimentos menos processados — e atividade física,
buscando reduzir a inflamação. Drenagens linfáticas e uso de meias de
compressão podem ajudar a reduzir o inchaço e a sensação de peso nas pernas.
Os resultados, no
entanto, são limitados e ajudam apenas a controlar os sintomas.
Em alguns casos, os
profissionais de saúde podem recomendar a lipoaspiração, uma cirurgia plástica
que retira as células de gordura — no caso das pacientes com lipedema, as
células afetadas pela doença.
"Quando as
células são removidas cirurgicamente, elas não são repostas.Embora nunca seja
possível retirar todas células doentes, as que restam não se multiplicam para
formar novo tecido. Por isso, resultados de longo prazo mostram melhorias
significativas", aponta Kamamoto.
O procedimento, no
entanto, tem um custo alto — na capital paulista, os valores giram em torno de
R$ 40 mil, sem incluir exames pré-operatórios, drenagens pós-cirúrgicas e
objetos necessários para a recuperação, como meias e gazes cirúrgicas.
Pela falta de
acessibilidade, há ONGs que lutam pelo acesso das mulheres com o quadro aos
procedimentos cirúrgicos pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
É o caso do
'Movimento Lipedema', braço social do Instituto liderado por Kamamoto.
"Queremos
levar um projeto para Brasília ainda esse ano. Se conseguirmos alcançar uma
massa crítica de pessoas demandando tratamento, teremos mais chances de chamar
a atenção do Congresso e de outras instituições."
Há também uma série
de tratamentos alternativos, não comprovados ou não indicados pelos riscos de
efeitos colaterais.
Entre eles,
medicamentos para emagrecimento, como Ozempic e Wegovy, que não melhoram
especificamente o lipedema, mas podem diminuir medidas como um todo.
E como o estrógeno
parece piorar o quadro — recomenda-se, inclusive, que mulheres com essa
condição evitem pílulas anticoncepcionais à base de estrogênio — algumas pacientes
ainda buscam um tratamento hormonal que diminua a quantidade desse hormônio
feminino no corpo. Isso, no entanto, acarreta em riscos importantes para a
saúde.
"Tumores
alimentados por hormônios podem ocorrer em casos específicos. E na clínica, às
vezes observamos mulheres apresentando virilização, ou seja, características
masculinas como acne, mudança na voz, queda de cabelo, aumento do colesterol —
o mesmo que acontece para quem toma esses hormônios para aumentar
músculos", diz o cirurgião plástico.
O médico também
relata que acontece o chamado "efeito Cinderela", em que os ganhos
desaparecem ao interromper o uso.
"Não há
hormônios seguros para uso prolongado de 20 ou 30 anos, incluindo a oxandrolona
e outros moduladores hormonais. Ainda não há medicamentos ideais para modulação
hormonal segura no contexto do lipedema."
Há também os
suplementos frequentemente divulgados como uma "ajudinha extra", como
a coenzima Q10, o resveratrol e o ômega-3, devido aos seus potenciais efeitos
anti-inflamatórios e antioxidantes.
Mas até o momento,
infelizmente não há estudos robustos que comprovem sua eficácia no tratamento
do lipedema.
Fonte: BBC News
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