sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Trump tenta fechar porta ao 'turismo de nascimento' usado por brasileiros nos EUA

A arquiteta brasileira Lavínia Naue, 26 anos, espera dar à luz sua primeira filha, Lívia, no próximo dia 20 de fevereiro, nos Estados Unidos. A gaúcha viajou de Santa Catarina até a Flórida por um objetivo: voltar ao Brasil com um passaporte americano para a sua bebê. "A gente gosta de morar no Brasil, mas queremos garantir que ela tenha dupla cidadania, para poder estudar nos EUA, ter mais portas abertas para ela e os filhos dela no futuro", diz.

Lavínia faz parte de um grupo de famílias que viajam ao país para o chamado "turismo de nascimento" ou "turismo de parto". É que os EUA oferecem cidadania automática a qualquer bebê nascido no país — independentemente da situação migratória dos pais ou se a família está no país com um visto temporário, como o de turismo. Mas o recém-empossado presidente Donald Trump decidiu acabar com essa possibilidade e o sonho de muitas mães, apesar de provavelmente enfrentar desafios legais para implementar a medida.

No seu primeiro dia na Presidência, na segunda-feira (20/1), Trump assinou uma ordem executiva em que determina o fim do direito à cidadania automática a filhos de estrangeiros nascidos nos EUA. O texto assinado por Trump afeta não só as turistas que tenham filho no país e os imigrantes indocumentados, mas também famílias que estão no país com um visto temporário, como estudantes. A nova regra assinada por Trump entra em vigor em um mês, ou seja, em 20 de fevereiro, exatamente o dia previso para o nascimento de Lívia na Flórida. A mãe, Lavínia, já sabia dessa possibilidade antes de viajar e está confiante que a medida seja revertida na Justiça antes de entrar em vigor, mas confessa: "estamos apreensivos, apesar de estarmos informados que isso deve demorar mais para entrar em vigor."

Após o nascimento de Lívia, a família deve esperar 58 dias até o retorno ao Brasil. O casal de Santa Catarina decidiu ir aos EUA por meio da empresa Ser Mamãe em Miami, criada pelo pediatra brasileiro Wladimir Lorentz em 2015 e referência nesse tipo de serviço no Brasil. Por ano, são cerca de 250 grávidas que fecham contrato com a empresa para darem à luz nos Estados Unidos. Desse grupo, segundo Lorentz, mais da metade das clientes é brasileira (o restante vem da América Latina e de países tão distintos quanto Rússia e Zimbábue) — e a maioria investe a partir de R$ 100 mil na empreitada, principalmente com o intuito de garantir a cidadania americana aos bebês.

O médico residente na Flórida, que resolveu fundar a agência com um sócio após descobrir serviços semelhantes para turistas russas, já atendeu celebridades como a atriz Karina Bacchi e o vereador Thammy Miranda (PSD-SP). As cantoras Claudia Leitte e Simone Mendes são outras que também deram à luz nos EUA, apesar de justificarem questões de agenda. O pediatra diz que tem tentado tirar a apreensão de clientes, por acreditar que a regra não deve entrar em vigor. "Mas as pessoas ficam preocupadas", assume.

O advogado brasileiro especialista em imigração Albert Resende explica que, da forma como acontece hoje, o chamado "turismo de nascimento" não é ilegal.

"Dentro da lei de imigração, não tem nada que proíba. Mas os republicanos entendem que isso é prejudicial ao país", explica o chefe jurídico do escritório especializado Witer, Pessoni & Moore. Mas, segundo a advogada Leda Almeida, CEO do escritório AG Immigration, especializado em direito migratório e baseado na Flórida, "com essa ordem executiva, pelo menos por enquanto, essa indústria do turismo do parto fica inviabilizada". Os partidários de Trump defendem que oferecer a cidadania a qualquer nascido no país estimula a imigração ilegal. Já os que são contra a medida do presidente defendem que nos EUA este é um direito constitucional, num país historicamente formado por imigrantes.

·        Direito previsto na Constituição

A cidadania por direito de nascença está prevista na 14ª Emenda da Constituição dos EUA, que afirma que "todas as pessoas nascidas" nos Estados Unidos "são cidadãos dos Estados Unidos". É chamado jus soli automático, ou "direito do solo" sem restrições, adotado por países como México, Canadá e o Brasil (com algumas exceções). Em outros países, como Reino Unido, Espanha ou Japão, o critério é o jus sanguinis — ou seja, a cidadania só é automaticamente garantida por descendência, caso algum dos pais já seja cidadão daquele país. A ordem de Trump argumenta que a Constituição tem sido interpretada de forma errada, sustentando que ela se refere apenas a filhos de cidadãos ou residentes permanentes legais.

Especialistas em direito constitucional têm dito que Trump não poderia acabar com a cidadania por direito de nascença com uma ordem executiva. "Ele está fazendo algo que vai incomodar muitas pessoas, mas, no final das contas, isso será decidido pelos tribunais", disse à BBC Saikrishna Prakash, especialista constitucional e professor da Faculdade de Direito da Universidade da Virgínia. "Isso não é algo que ele pode decidir sozinho. Não dá para falar que vai ser realmente feito dessa forma, porque vai tem que passar por vários trâmites legais", concorda o brasileiro Albert Resende.

A entidade ativista American Civil Liberties Union e outros grupos processaram imediatamente o governo Trump por causa da ordem executiva. Uma coalizão de 18 Estados liderados por democratas, junto ao Distrito de Columbia (Washington) e a cidade de São Francisco, também já está processando a administração Trump por sua tentativa de acabar com a cidadania por direito de nascimento. Em uma ação separada, mais quatro Estados já tentam bloquear a medida O procurador-geral de Nova Jersey, Matthew J. Platkin, que liderou um dos esforços jurídicos junto aos procuradores-gerais da Califórnia e de Massachusetts, declarou que a tentativa de Trump de limitar a cidadania por nascimento foi "extraordinária e extrema. Presidentes são poderosos, mas ele não é um rei", disse ele. "Ele não pode reescrever a Constituição com um simples golpe de caneta."

Uma emenda constitucional poderia acabar com a cidadania por direito de nascença, mas isso exigiria uma votação de dois terços na Câmara dos Representantes e no Senado e a aprovação de três quartos dos Estados dos EUA. Atualmente, os republicanos têm uma maioria apertada nas duas casas legislativas. Os veículos de imprensa nos EUA, como o jornal New York Times e a revista Times, tem reforçado que todo esse imbróglio poderia levar a uma longa batalha judicial que acabaria na Suprema Corte. Em 2015, a BBC News Brasil contou em uma reportagem sobre as mães brasileiras dando à luz em Miami que o então pré-candidato republicano Donald Trump defendia acabar com a concessão automática de cidadania a filhos de estrangeiros.

Durante o primeiro mandato, Trump chegou a ventilar a possibilidade de uma ordem executiva em diversas declarações à imprensa — mas saiu da Casa Branca, em 2020, sem concretizá-la. Agora, essa foi uma das primeiras medidas tomadas pelo novo governo, em meio a uma retórica de Trump que vem desde a campanha sobre coibir a imigração em direção aos EUA. "Dessa vez, ele é presidente novamente e você sabe muito bem que ele fala uma coisa ou outra, mas, na verdade, vejo isso como coisa estratégica", opina o médico e empresário Wladimir Lorentz, da Ser Mamãe em Miami.

Além da empresa de Lorentz, há outras que lucram com o "turismo de nascimento". Algumas estão ligadas a lojas de produtos de bebês populares entre brasileiras na Flórida. Também há serviços de "assessoria", em que é oferecida apenas orientação a interessadas. No caso da Ser Mamãe em Miami, os pacotes variam de US$ 16,4 mil (R$ 98 mil) para partos normais, a US$ 23,3 mil (R$ 140 mil), para parto de gêmeos. O serviço inclui o atendimento médico, internação e anestesia.

Caso a ordem de Trump se concretize em fevereiro, Lorentz diz que, apesar de um dos principais braços de seu negócio ruir, ele seguirá a vida nos Estados Unidos, atendendo os milhares de brasileiros que moram na Flórida, com clínicas em Orlando e Boca Raton. Além disso, diz, há clientes que o procuram por outro motivo — fugindo da época de alta de casos de dengue no Brasil para a dar à luz nos EUA, por exemplo. Na estimativa mais recente do Ministério das Relações Exteriores, pouco mais de 2 milhões de brasileiros vivem nos EUA. Desses, cerca de 600 mil são estimados na Flórida, Estado governado pelo republicano Ron DeSantis. Não há estimativas de quantos bebês filhos de brasileiros nascem por ano nos EUA.

·        Mudanças no visto americano para mulheres?

A BBC News Brasil entrou em contato com a Embaixada dos Estados Unidos em Brasília para saber se a ordem assinada por Trump já altera o processo de visto para mulheres grávidas ou que querem dar à luz no país. Até a publicação desta reportagem, a Embaixada informou que segue aguardando as diretrizes de Washington para comentar sobre o assunto.

Atualmente, explica o advogado especialista em imigração aos Estados Unidos Albert Resende, mesmo não havendo essa proibição em lei para o "turismo de nascimento", o Departamento de Estado americano recomenda que os agentes consulares neguem os vistos de turismo quando eles avaliarem que "a intenção da mãe que aplica para um visto de turismo é dar à luz. O agente consular tem uma discricionariedade, ou seja, dentro da lei, ele pode agir de acordo com o entendimento dele. Então, se ele desconfiar que essa mulher, mesmo que ela não esteja grávida, tem intenção de ir dar à luz, ele pode negar o visto e está coberto", explica Resende. Desde 2020, os EUA já havia endurecido as regras para mulheres grávidas que querem tirar visto de turismo, a fim de coibir o "turismo de nascimento".

A Embaixada dos Estados Unidos chegou a afirmar que mulheres grávidas que querem dar à luz nos EUA para obter cidadania americana para a criança não se qualificam para um visto de não imigrante na categoria B, cujo propósito geralmente se destina a viagens de turismo. Isso não quer dizer que essa mulher não possa conseguir o visto. Mas ela precisaria estabelecer um motivo legítimo de viagem, que não seja o da cidadania americana para a criança, como a necessidade de um atendimento médico especializado, segundo a Embaixada disse em 2023.

·        Imigração em cadeia

Em geral, famílias que procuram serviços como Ser Mamãe em Miami querem garantir que os filhos usufruam no futuro de um passaporte americano e da possibilidade de morar no país. Mas o advogado Albert Resende explica muitas famílias também vislumbram a chamada "transmissão de cidadania posterior".

Isso é: a transferência da cidadania desse filho nascido nos Estados Unidos para os pais. Mas isso não é simples. Isso só pode ocorrer depois desse filho completar 21 anos — e esse filho precisa ter morado nos Estados Unidos por pelo menos dois anos após ter completado 16 anos. "Então ela não passa de imediato e nem permite que os pais possam residir nos Estados Unidos legalmente [só porque o bebê tem a cidadania]", diz Resende.

Cumprindo as regras, esse cidadão americano de 21 anos pode aplicar um pedido de visto permanente para os pais — esses pais, por consequência, podem passar a outros filhos ou até aos avós desse cidadão original. "Então, assim, existe a chamada 'imigração em cadeia', numa política de reunião familiar", explica o advogado. O especialista acredita que, caso a nova regra de Trump entre em vigor, é provável que essa transferência de cidadania também possa ser afetada.

·        Como esse direito começou?

A 14ª Emenda foi adotada em 1868, após o fim da Guerra Civil. A 13ª Emenda aboliu a escravidão em 1865. Já a 14ª resolveu a questão da cidadania de ex-escravizados libertos nascidos nos Estados Unidos. Decisões anteriores da Suprema Corte, como Dred Scott vs Sandford em 1857, decidiram que os afro-americanos nunca poderiam ser cidadãos dos Estados Unidos. A 14ª Emenda anulou isso.

Em 1898, a Suprema Corte americana afirmou que a cidadania por direito de nascença se aplica aos filhos de imigrantes no caso de Wong Kim Ark vs Estados Unidos. Wong, de 24 anos, era filho de imigrantes chineses que nasceu nos Estados Unidos, mas teve a entrada negada no país quando retornou de uma visita à China. Wong argumentou com sucesso que, por ter nascido nos Estados Unidos, o status de imigração de seus pais não afetou a aplicação da 14ª Emenda. Os críticos a essa interpretação histórica da Suprema Corte argumentam que a política é um "grande ímã para imigração ilegal", e que encoraja mulheres grávidas sem documentos a cruzar a fronteira para dar à luz. Já os que defendem esse direito argumentam que ele faz parte da construção do país, formado por imigrantes desde sua fundação — e, por isso, está previsto na Constituição do país.

De acordo com o centro de pesquisas Pew, em 2022, o último ano em que os dados estão disponíveis, há 1,2 milhão de cidadãos americanos nascidos de pais imigrantes não autorizados.

 

¨      'Vou processar o governo Trump pelo direito da minha filha à cidadania', diz imigrante brasileira grávida e sem documentos

Não foi uma surpresa para a brasileira Alice*, mas nem por isso ela está menos preocupada: no primeiro dia do governo Donald Trump, em 20 de janeiro, o presidente dos Estados Unidos assinou uma ordem executiva que retira o direito à cidadania americana de bebês nascidos em território americano que sejam filhos de imigrantes. Esta era uma das promessas de campanha do republicano, que se elegeu com o discurso linha dura contra os imigrantes e o plano de deportação em massa de milhões de indocumentados.

É o caso de Alice. Há quase 11 anos, ela deixou o Mato Grosso e atravessou a nado o Rio Grande, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, com o marido, em busca de uma nova vida. Aos 35 anos e grávida de 7 meses, ela espera pelo nascimento de sua segunda filha em abril. A primeira filha, hoje com 9 anos, já nasceu na região de Boston, em Massachusetts e tem passaportes brasileiro e americano.

Depois de anos iniciais difíceis, em que chegavam a cumprir jornadas em três empregos por dia, o casal conta que tem hoje boa condição financeira no país. Ela coordena uma equipe de limpeza doméstica, ele possui uma construtora. A renda mensal da família chega a US$ 20 mil (cerca de R$ 120 mil). Eles têm casa própria e alguns terrenos nos Estados Unidos. Bem estabelecido, o casal desejava o segundo filho há algum tempo, e Alice chegou a ter um aborto espontâneo antes da atual gestação. A alegria pela chegada da nova integrante da família, no entanto, divide agora espaço com a tensão, já que na atual condição, a bebê não receberia cidadania americana ao nascer. "Acho que ele (Trump) voltou com muito mais ódio, basta ver a quantidade de coisas contra os migrantes que ele está fazendo. Apenas uma pessoa com muito ódio para fazer uma maldade dessas", diz Alice, em referência aos anúncios de Trump de declaração de emergência na fronteira, para mobilizar o Exército contra a entrada de imigrantes e o fim das políticas atuais de pedido de asilo, além da ordem executiva sobre o direito à cidadania por nascença.

"No meu caso, eu já tenho uma filha americana, e aí eu teria uma segunda filha que seria considerada uma imigrante ilegal. Isso não é justo e acredito que seja ilegal e vá ser revertido." Alice diz que já consultou três advogados sobre o assunto. Ela conta que nunca teve coragem de iniciar a regularização de sua situação migratória por temor de acabar deportada no processo, mas afirma que tem a intenção de processar os Estados Unidos caso sua filha nasça sem o direito.

Legalmente, imigrantes indocumentados têm direito ao devido processo legal, antes de serem deportados — e também podem acionar a Justiça caso se sintam prejudicados em qualquer outra situação enquanto vivem no país. "Se por acaso essa ordem executiva realmente for adiante, eu processo o Estado, processo o governo federal", diz Alice. "Isso não tenho medo, não, porque pago meus impostos, apesar de eu ser ilegal, faço tudo que tem que ser feito para andar certinho aqui dentro do país. Vou até o fim para conseguir os documentos da minha filha", diz Alice. Ela reconhece que sua situação nos EUA é irregular e diz que sonha com o momento em que possa buscar uma anistia e se legalizar. Mas reafirma que não se sente uma criminosa, como Trump frequentemente descreve imigrantes indocumentados. Alice é evangélica e se descreve como uma pessoa ideologicamente de direita.

<><> Decisão de Trump é constitucional?

Ordens executivas de presidentes americanos não precisam de aprovação no Congresso e entram em vigor a partir do momento em que são assinadas pelo mandatário. No caso da ordem executiva sobre a cidadania, o texto determina que não mais serão considerados americanos por nascença bebês nascidos nos Estados Unidos após 30 dias da assinatura do documento. A medida tem como alvo filhos de imigrantes indocumentados (cerca de 11 milhões de pessoas) ou que tenham vistos temporários de trabalho, estudo ou turismo (outros 3 milhões de pessoas).

A revogação do direito de cidadania por nascença é um desejo antigo de Trump que não foi implementado em seu primeiro mandato porque seus então assessores não encontraram um caminho jurídico viável àquela altura. Mas em 2024, Trump fez da questão migratória um dos temas centrais de sua campanha, descrevendo um país "invadido" por estrangeiros e frequentemente descrevendo os migrantes como criminosos. "Eles envenenaram o sangue do nosso país", afirmou Trump, em mais de uma ocasião. Os quatro anos de governo Biden foram marcados pela entrada irregular de milhões de pessoas pela fronteira com o México, o que custou popularidade ao governo democrata.

Alice não está sozinha no plano de processar o governo federal. Na verdade, 22 Estados americanos já entraram com ações para desafiar a constitucionalidade da lei. Entre eles, Nova York, Califórnia e Massachusetts, onde a família de Alice vive.

Além deles, organizações da sociedade civil, como a União Americana para Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), e a brasileira Brazilian Worker Center também já abriram ações. O argumento central dos Estados, das ONGs e de Alice é a de que a determinação de Trump se choca com direitos muitos claros estabelecidos pela Constituição. Mais especificamente, a 14ª Emenda, de 1868, que garante que "todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem". A emenda foi feita para estender os mesmos direitos aos cidadãos negros e brancos, depois da Guerra Civil no país.

Desde sua criação, ela já foi questionada algumas vezes na Justiça, e a jurisprudência firmada é a de que o nascimento em solo americano garante a cidadania ao nascido, não importa a nacionalidade ou o status migratório de seus pais. "A grande promessa da nossa nação é que todos os nascidos aqui sejam cidadãos dos Estados Unidos, capazes de realizar o sonho americano", disse a procuradora-geral de Nova York, Letitia James, ao argumentar que o decreto de Trump é inconstitucional.

·        Milhões de adultos sem cidadania?

Em sua ordem executiva, Trump argumenta que o termo "sujeitas à sua jurisdição" exclui pessoas indocumentadas ou temporárias no país e que, por isso, seus descendentes não teriam direito à cidadania. Segundo ele, a Constituição americana tem sido interpretada de modo incorreto há mais de 150 anos. Os críticos da imigração argumentam que a interpretação atual da Carta funciona como um "grande ímã para imigração ilegal" e que encoraja mulheres grávidas sem documentos a cruzar a fronteira para dar à luz, um ato que tem sido pejorativamente chamado de "turismo de parto" ou de "ter um bebê âncora".

A prática, no entanto, não se restringe a imigrantes indocumentados. Nos últimos anos, popularizou-se entre a classe média alta no Brasil alguns planos de viagem à Flórida para grávidas, com visto de turismo que garante a permanência nos Estados Unidos por até seis meses. Estes serviços oferecem aos pais não apenas a oportunidade de fazer o enxoval nas lojas do país como de garantir o nascimento do bebê em um hospital americano, de modo que a criança retorne ao Brasil com um passaporte dos Estados Unidos. "Com essa ordem executiva, pelo menos por enquanto, essa indústria do turismo do parto fica inviabilizada", afirmou a advogada Leda Almeida, CEO do escritório AG Immigration, especializado em direito migratório e baseado na Flórida.

Para Sam Erman, professor de Direito da Universidade de Michigan e autor de Almost Citizens: Puerto Rico, the U.S. Constitution and Empire ("Quase cidadãos: Porto Rico, a Constituição dos EUA e o Império", em tradução livre), a argumentação de Trump e de seus apoiadores, neste caso, não se sustenta nem legal, nem historicamente. "Nesse contexto, a expressão jurídica 'sujeita à sua jurisdição' tinha um objetivo específico", diz Erman à BBC News Brasil. "Excluir os filhos de embaixadores, que estão parcialmente sujeitos às leis de seus países, os filhos de soldados de possíveis exércitos invasores e os filhos dos americanos nativos, que estão primeiramente vinculados às leis de suas nações e não às dos Estados Unidos."

Segundo Erman, os processos movidos pelos Estados e por organizações da sociedade civil deverão chegar à Suprema Corte, que dará a palavra final. Isso, no entanto, poderá demorar mais de um ano. Neste meio tempo, se nenhuma decisão liminar barrar a ordem executiva, funcionários federais em todo o país estão oficialmente orientados a não mais fornecer documentos, como o passaporte, a bebês que não tenham ao menos um dos pais com direito à residência permanente ou cidadania americana. "Vai virar mais uma novela", concorda Almeida, sobre a perspectiva de uma batalha judicial de meses pela frente. Na atual conformação, a Suprema Corte tem uma maioria de seis a três membros a favor de posições consideradas mais conservadoras. Isso significaria, a princípio, uma vantagem para a tese de Trump.

Recentemente, a Corte reverteu uma decisão de mais de 50 anos que garantia o aborto legal em todo o país. O alinhamento dos juízes, porém, não é automático, especialmente em temas controversos. "O que me preocupa é isso, que a Suprema Corte tem mudado a forma de interpretar as leis", diz Alice.

·        "O que me garante que não farão agora como fizeram com o aborto?"

Os especialistas em direito ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, acham improvável que a interpretação da Constituição se altere desta maneira. Isto porque, caso a Suprema Corte decida que Trump tem razão, os impactos da decisão irão muito além dos direitos dos nascidos no país de 2025 em diante, como a filha de Alice. A Constituição é uma só e sua aplicação tem que ser igualitária a todos os cidadãos no país. Uma nova interpretação retroagiria então a todos que possam se enquadrar nos casos, apontam os especialistas. Como resultado, qualquer pessoa viva nascida de pais imigrantes indocumentados ou temporários perderia seu direito à cidadania americana, a menos que esteja coberta por alguma outra regra. "Eu me surpreenderia muito se os tribunais estivessem dispostas a retirar a cidadania de pessoas que efetivamente a mantiveram durante toda a vida", afirma Erman. Para Almeida, tal decisão lançaria o país em uma enorme insegurança jurídica, além de em um desafio logístico de reorganizar a documentação de milhões de pessoas. "Para mim, é um ato muito mais simbólico, muito mais para Trump comunicar aos eleitores dele que fez o que prometeu e para desencorajar imigração", diz Almeida. "Até porque não vejo viabilidade para que isto se estabeleça."

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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