Moysés Pinto Neto: “O ethos
neoliberal”
Em 20 de janeiro, Donald Trump tomou posse como presidente eleito dos
Estados Unidos, depois da uma vitória substantiva nas urnas, com um programa
explicitamente fascista, e sem a desculpa de que os americanos votaram
enganados pela interferência russa e o desconhecimento do personagem, como 2016.
Já não podemos, inclusive, contar com a hipótese de que se tratou apenas do
voto nulo antissistêmico migrado para um personagem outsider. Não?
Bom, examinemos primeiro as circunstâncias para explicar melhor o problema.
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A hipótese Waldo
Em 2016, Trump era a zebra da disputa. Hillary Clinton representava o
neoliberalismo mais arraigado com o progressismo do politicamente correto, hoje
chamado woke, na sua versão mais caricata. Ou seja, na sua versão
do establishment, sempre pronta a desidratar as lutas sociais
decisivas em formas que caibam no selo de produto mercadológico. O
Clinton-feminismo, a condescendência com o movimento negro e com a população
dita “latina”, a prontidão para etiquetar como “deploráveis” aqueles que se
opõem, colocando-se na redoma de superioridade moral e sinalização de virtude
eram a característica central da tríade Clinton-Obama-Clinton, aqueles que
continuaram o trabalho de Ronald Reagan na economia (como Blair o de Thatcher,
segundo ela própria), compactuando ou sem conseguir resistir às oligarquias
econômicas, mas ao mesmo tempo mantinham uma aura de progressismo
cultural.
Naquela época, muitos de nós, diante da perplexidade pela escolha,
entendemos que havia uma demanda por alguém que rompesse a bolha de proteção
das elites, figurando como um outsider capaz de acumular a
revolta social, principalmente diante das atitudes dos poderosos depois da
crise de 2008. O trumpismo vinha a reboque da Primavera Árabe, das revoltas na
Europa – como os indignados da Espanha e os levantes da Grécia –, de Junho de
2013 no Brasil, além, é óbvio, do próprio Occupy Wall Street, que passou pelo
governo Obama da mesma forma que 2013 passou por Dilma (ou Haddad,
localmente): como um nada. Assim como Dilma lança-se em 2014 como
se nada tivesse acontecido – basta fazer um pouco de pesquisa empírica para
lembrar do imenso silêncio daquelas eleições sobre Junho –, também Hillary
tinha pouquíssimo a ver com a ruptura dos 99% desejada contra o 1% de Wall
Street.
Mas nem Trump nem Bolsonaro, eleito dois anos depois, representam forças
efetivamente anti-establishment. Na verdade, é o oposto: se alguém
representa o establishment na sua forma mais veemente, cruel e obtusa, são
justamente Trump e Bolsonaro. Trump é a força da elite parasita que pouco
trabalha e vive da humilhação alheia, uma figura pop medíocre e explosiva que
regurgita atrocidades ostentando seu lugar de branquitude e sua herança como
símbolos da prosperidade norte-americana de caráter imperial. Bolsonaro, por
sua vez, é o espelho do militarismo de porão, da banda mais podre do Exército e
das polícias, envolvido em mil negócios que foram surgindo a partir da
violência extrativista, da tomada de posse na forma de “acumulação primitiva”,
sem formalização, com grilagem e coronelismo urbanos – tudo isso resumido na
fórmula, talvez demasiado fraca, do “miliciano”. Tony Stark nos Estados Unidos
e o Capitão América no Brasil – o milionário e o voluntarioso – assim funciona
o imaginário da extrema direita que cultiva essas figuras.
Havia também a novidade das redes. Por aqui, como ninguém Letícia
Cesarino explorou a hipótese “populismo digital”, uma combinação que faz
conversar o significante vazio de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe – na sua
teoria do populismo que já vinha denunciando a fragilidade do arranjo
tecnocrático-liberal entre centro-esquerda e centro-direita, chancelado pelas
teorias do consenso liberal como de Habermas, como mecanismos que
impulsionariam o fascismo – com a cibernética das plataformas, pensadas na sua
infraestrutura regidas por algoritmos que se alimentam de feedbacks promovendo
o engajamento independente de “conteúdo”, produzindo com isso condições
altamente favoráveis para a memética viral e a disseminação de notícias falsas.
Chamei isso na época de Hipótese Waldo, o desejo – bem descrito pela série
Black Mirror, que cada dia se torna ainda mais atual, tão atual que nem o seu
autor Charlie Brooker consegue mais produzir ficção, tal a coincidência entre
sua distopia e nosso presente –, o desejo, enfim, de “avacalhar tudo”, quebrar os
parâmetros da correção política que caminham lado-a-lado como uma estagnação
econômica, política e social regida por oligarquias tecnofinanceiras.
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A hipótese Bernie
Mas, diante disso, criou-se mais uma hipótese suplementar: e se
o Outsider fosse nosso? Estávamos discutindo, em outra temporalidade e
outro regime de urgência, a institucionalização dos movimentos sociais de 2010,
em especial com o caso do Podemos – que aderiu, explicitamente, ao populismo –
e do Syriza, na Grécia, que vinha em confronto com a autoridade tecnocrática
master da Europa, a dama de ferro Angela Merkel.
Surge, então, a hipótese Bernie: se Sanders, e não Clinton, tivesse
disputado com Trump, talvez tivesse vencido. Um contrafactual mais ou menos
impossível de ser testado, mas de qualquer modo funciona como motor para que
uma esquerda um pouco mais radical, chamando-se a si própria inclusive de
“socialista” (DSA), comece a ganhar volume, criando canais nas redes que vão
desde podcasts, editoras até vídeos artísticos – num ecossistema que abrange
Novara Media, Jacobin, Verso, Zero Books, entre outros. O Brasil tenta repetir,
por aqui, o movimento nas mídias digitais: entram canais socialistas, com nomes
como Sabrina Fernandes, Jones Manoel, Humberto Mattos e Chavoso da USP, além de
numerosos podcasts como Viracasacas, Lado B do Rio, Anticast, e editoras, como
Autonomia Literária e própria Jacobin, agora Jacobina, na roda.
Em suma, precisamos de um populismo de esquerda, como defendiam já
Laclau e Mouffe, mas também o Podemos, na Espanha, e Nancy Fraser talvez seja o
nome teórico do Norte que mais explicitamente trouxe a ideia, na sua famosa e
muito interessante contraposição quaternária entre neoliberalismo progressista
(Obama) e reacionário (Bush) e populismo reacionário (Trump) e progressista
(Sanders).
Havia, no entanto, uma pedra no caminho, e talvez o principal malogro no
período tenha sido o caso Jeremy Corbyn, o Sanders britânico, fortemente
apoiado pela autodenominada “nova nova esquerda”, em contraponto à New
Left, com vistas a restaurar o Estado de bem-estar social e acabar com o
legado maldito de Thatcher. O malogro foi feito, porque a derrota não foi para
qualquer um: a face mais histriônica, mais parecida com Trump, possível em
cenário britânico, o caricato Boris Johnson, elege-se em um massacre contra o
candidato da esquerda. O mesmo ocorre, em modos distintos, com a esquerda
populista francesa, Jean-Luc Melenchon, com o Podemos da Espanha, e com Syriza
na Grécia – todos hoje sombras de si mesmos. A Itália, tão prolífica em intelectuais
conectados com as lutas (pense-se em Negri, Bifo, Lazaratto, Cacciari, Cesare,
Agamben, Gerbaudo, Federici, etc.), parece completamente incapaz de produzir
qualquer coisa; ao contrário, se Berlusconi foi, como disse certa vez Bifo, o
próprio paradigma da entrada do clown na política, abrindo as
portas para Trump, o país só caminhou mais e mais para a literalização do
fascismo: primeiro, com o Cinco Estrelas, depois com a Liga Norte, para hoje,
sempre subindo mais um degrau, ser governada pelo partido fascista de Meloni,
admitindo campos de concentração de refugiados africanos e milícias racistas
para caça aos imigrantes sem papéis. A Alemanha, que parecia o leading
case das políticas de memória, invocando o racionalismo superior dos
frankfurtianos atuais na sua defesa da União Europeia como avatar
kantiano-cosmopolita blindado contra a entrada dos nacionalismos e do
supremacismo, depois da Dama de Ferro, definha com um partido social-democrata
minguado e irrelevante, obrigado a governar em aliança com os rivais para
evitar a ascensão da AfD, o partido neonazista em ascensão.
Tampouco Bernie, durante o período, conseguiu se firmar como liderança
política majoritária: foi entre os pobres e negros que foi derrotado, nas
prévias de 2019, pelo caquético Biden, que mais tarde iria se tornar um
fracasso completo na capacidade de produzir sua sucessão, com a também aguada
Kamala Harris, cuja carreira representa uma total adesão ao estilo clintonista
de leitura social e política. Mas Bernie continua com sua hipótese: há uma
incompreensão da classe trabalhadora norte-americana entre os políticos do
partido democrata que os afastam das bases, jogando-os no colo da extrema
direita. Alguma semelhança com a hipótese de um certo Partido dos Trabalhadores
que não consegue mais falar com a classe trabalhadora – hoje precarizada,
desorganizada e individualista – de hoje?
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A hipótese fascista
Eis que podemos nos perguntar se realmente Bernie, e com ele a esquerda
quase como um todo, estão corretos. Porque, mesmo aqui, entre nós, temos duas
leituras antagônicas de esquerda que convergem para uma conclusão implícita:
para uns, a população não é boa suficiente para a esquerda, é o fenômeno do
“pobre de direita”. Para outros, é a esquerda que não é boa suficiente para os
pobres, é a “perda de contato com as bases”. Ambas, no entanto, presumem que há
uma coincidência nos interesses da esquerda e dos trabalhadores, mitigada pela
comunicação equivocada e pelas decisões políticas covardes. Mas – será?
E se propuséssemos aqui uma hipótese bem mais incômoda, menos
politicamente correta, de que talvez, no fundo, os desejos das pessoas sejam
mais literais que parecem? A esquerda, de algum modo, parece sempre presa no
problema da ignorância. Se o outro não está comigo, é porque não entende as
minhas razões. A consciência de classe, a emancipação, a reflexividade, enfim,
todo esse aparato que vai da Paideia à Bildung –
e, por aqui, a “formação” (na versão USP) ou “conscientização” (na versão
Freire) – irá produzir uma convergência política que fará o povo se levantar
contra sua própria opressão. O “desejo fascista” de hoje, se é que pode ser
chamado assim, é a falta de esclarecimento. Na verdade, vamos eufemizar a
palavra “fascista” um pouco, por gentileza? Afinal, essas pessoas votaram no Lula
em 2002… Muitos argumentos são encontrados nessa cesta: o “laço social”,
“desejo de pertencimento”, a “sobrevivência”, a “precariedade”, a “falta de
compreensão sobre suas demandas” … enfim, haverá aí uma pilha de considerações
que vão da manipulação social ao insulamento da esquerda para justificar que
não é fascismo, é outra coisa.
Nisso, uma premissa estranha se instaurou na teoria, talvez como efeito
do mega triunfalismo liberal do Fim da História: a de que o fascismo é um
fenômeno patológico que envolve forte adesão intelectual e é restrito a
pequenas franjas da população. Tudo rigorosamente ao contrário do que nos
ensinaram os pensadores do fascismo, desde Freud (avant la lettre), de
Adorno e Reich a Foucault e Deleuze: o fascismo como fenômeno de massas. De
repente, as academias – brasileira e a norte-americana, por exemplo – estão
prontas a dizer: sim, houve uma adesão forte às ideias de Bolsonaro e Trump,
mas não nos alarmemos com isso – as pessoas estão apenas confusas. Um passo
adiante, quem sabe, para dizer: “a culpa é nossa!”, nós que não entendemos nada
do que está ocorrendo, e inclusive estamos desperdiçando uma forma de surfar no
descontentamento social. No último caso, cria-se o curioso caso do
intelectual-de-massas-sem-massas, das massas que são minorias minúsculas, o
comunicador da revolução popular que não se elege síndico do seu condomínio;
enquanto, do outro lado, as minorias, os impopulares patológicos que são
“exceções”, mobilizam as verdadeiras massas em quantidades de “alienados”.
Ora, é bem possível que não estejamos entendendo nada mesmo, mas mesmo
assim fica a pergunta: e o desejo do outro, estará assim tão escondido de nós?
Porque, mesmo as etnografias mais interessantes e necessárias, nas suas
entrevistas, costumam mostrar o que todo mundo já sabe: meritocracia,
conservadorismo moral, desejo de prosperidade, identificação. Um museu de
grandes novidades. Sabemos, por exemplo, que a população brasileira, em todas
as classes sociais, está hipnotizada – no sentido que Freud dá
à psicologia das massas – pelas plataformas digitais como Instagram e Tik Tok,
sem falar da jogatina nos aplicativos de apostas. O mundo que Jonathan Crary
chama de “24/7”, 24 horas e 7 dias, Nonstop, é visível em qualquer
lugar da nossa paisagem: no ponto de ônibus, na praia, no shopping, no cordão
da calçada, no bar – eu diria até em lugares completamente improváveis, como um
estádio de futebol, um show musical ou um cinema, onde teoricamente a atenção
deveria ser dirigida ao espetáculo, não à telinha e suas banalidades. O que
roda nessas redes é facilmente mapeável: dinheiro, corpo, poder, sucesso. Pablo
Marçal captou tão facilmente que inclusive respondia às perguntas dos
repórteres com conceitos oriundos do digital como “economia da atenção”, em vez
de grandes ideias ou justificativas estapafúrdias.
E se as pessoas, nas maiorias eleitorais, estivessem simplesmente desejando
mesmo aquilo que é proposto? Vamos para o caso dos Estados Unidos. O grande
fiel da balança na última eleição foram os chamados “homens latinos”, que,
aliás, é um enquadramento tipicamente racista dos EUA. Afinal, quem de nós,
brasileiros, por exemplo, vê-se como de “raça latina”? A branquitude
anglo-saxã, no seu típico supremacismo, elevou os traços ditos “nórdicos” (ou:
arianos), como cabelos loiros, pele muito branca e olhos claros, para
caracterizar o verdadeiro branco, separando-se, com isso, da mestiçagem
“hispânica” oriunda dos verdadeiros latinos, a Europa romano-católica do Sul
europeu, em especial os ibéricos, em contato com os povos indígenas originários
das Américas. Mas trata-se, sempre, de uma heteroidentificação: sob o olhar
condescendente do partido democrata, ou xenófobo do partido republicano –
vítima ou ofensor. O que, aliás, é fortemente referendado no imaginário anti-mexicano
de séries de sucesso, algumas inclusive belíssimas produções estéticas. Nas
eleições, Trump levou ao máximo o supremacismo branco: chegou a afirmar que as
populações de imigrantes (que sabemos ser um código para dizer: não-brancas)
furtam e comem os pets da tradicional família americana, são
assassinos, estupradores e ladrões, e habitam os EUA sob a chancela da imprensa
e dos políticos liberais. E mais: em um gesto tipicamente nazista, que ele
próprio alega que seria etiquetado como “nazista” pelos “radicais da esquerda”,
afirmou que os imigrantes estão poluindo o sangue americano, algo
que não deixa dúvidas sobre seu parentesco com as ciências da vida do século
XIX.
Mas a pergunta é: e por que, mesmo assim, os ditos “latinos” votaram em
Trump? Ora, quem são eles? Nós, brasileiros, infelizmente os conhecemos muito
bem o nosso caso: basta pensar em quem são os nossos que estão
lá, na Flórida, apoiando Bolsonaro e pedindo para que Trump salve o Brasil do
comunismo. O mesmo se dá, sabemos razoavelmente bem, entre os venezuelanos e
cubanos que andam por lá, mesmo que, nesses casos, o problema seja mais
complexo. De qualquer modo, essas pessoas se veem como brancas.
Esse é o ponto. Raça não é algo apenas alusivo à cor da pele, mas um jogo de
posições. Numerosos estudiosos e estudiosas poderosas – como Carlos Hasenbalg,
Neusa Santos Souza, Lelia Gonzales, Lia Schucman, Liv Sovik, Clóvis Moura,
Sueli Carneiro, entre outros – mostram que raça é uma posição de poder, não uma
essência biológica (e nem mesmo apenas “cultural”, que a tornaria uma
“identidade”). Portanto, um branco é sempre branco
em-relação-a-alguém-não-branco. Isso quer dizer, como vimos em Bacurau, que um
branco brasileiro pode deixar de sê-lo quando de frente a um supremacista
norte-americano; assim como, de modo ainda mais surpreendente, Min Jin Lee nos
mostra em Pachinko que os japoneses, “tecnicamente” um povo
dito “amarelo”, viam-se como brancos diante dos coreanos que colonizavam devido
tanto à sua condição cultural-militar quanto à cor mais clara da pele. A
branquitude é poder e, como poder, acesso. Assim, poderíamos perguntar: as
pessoas ditas “latinas” que votaram em Trump identificavam-se como
brancas e, por isso, votaram nele? Parece que sim, mesmo que elas
eventualmente recebam muitos feedbacks negativos das suas
pretensões. Identificação não é “adequação aos fatos”, como a teoria da
conscientização, fundada na teoria da verdade, postula. Freud já mostrava o
caráter aspiracional, o “ideal de Eu” que está envolvido na identificação, bem
longe de qualquer correspondência identidade/interesse que poderia ser estimada
mediante análises rigidamente segmentadas em categorias. Uma vez que elas
conseguiram o acesso (o documento legal), trata-se de fazer
preponderar a distinção em detrimento da solidariedade, de
olhar para o “lado de lá” e aspirar ocupar aquele lugar.
Esse ponto nos leva um ponto adiante: digamos que, modo geral, a
esquerda seja o partido do igualitarismo e da solidariedade, enquanto a
direita, da meritocracia e da distinção. Margareth Thatcher defendia, diante de
um sólido Estado de bem-estar, the right to be unequal como um
direito do cidadão britânico. E se, como Trump mostrou no seu último discurso
anterior à posse, a polarização é entre meritocracia e políticas de cotas,
sabemos exatamente o que está em jogo: a meritocracia é a supremacia branca, já
que as políticas de cotas eram simplesmente “compensatórias” das defasagens em
relação a uma meritocracia real. Aqueles que conseguiram o acesso racial estão,
nas suas cabeças, garantidos no jogo, por isso podem se adequar às novas
regras. Votaram como parte de um Império, que é o que a América é, e
consideram-se como habitantes de Roma separados das suas províncias
conquistadas, para os quais os bárbaros e selvagens devem ser devolvidos para
não tumultuar a prosperidade da Metrópole. No Brasil, claro, as coisas são um
pouco distintas, porque temos um nacionalismo vicariante: é-se tanto mais
“patriota” quanto mais se despreza o Brasil e elogia os Estados Unidos. Longe
do Policarpo Quaresma, o nacionalista brasileiro olha para o Brasil com
autodesprezo, projetando-se como um americano que olha de fora para si mesmo.
Ele odeia fortemente tudo que é o Brasil, e não por acaso existe o reflexo
espelhado entre a percepção de fora: ele olha para os gringos como modelos e se
vê como parte deles, mas os gringos elogiam o Brasil justamente pelo que ele
mais odeia, ao mesmo tempo que o veem como nosso exemplar mais repulsivo.
Parece a relação masoquista de Bolsonaro com Trump, a quem idolatra e é sumariamente
desprezado, confirmando seu desejo de humilhação. Mais uma
vez: a identificação não é um processo que liga X a X, mas pode também ligar X
a Y, e com isso X cria seu próprio X’, que é seu igual reduzido à condição de
descartável pelo racismo – que ele exerce vicariamente – no corpo do dominante
Y.
Exatamente da mesma forma que ocorreu com Bolsonaro, Trump começa com
afirmações que jogam na indecisão entre o sério e o jocoso. É um laboratório de
obscenidades, entendidas como aquilo que está fora da cena, por baixo das
cortinas, vindo à tona. Mas, depois de um tempo, seu programa se literaliza.
Se as bravatas de Bolsonaro em 2018 pareciam apenas isso, bravatas, fica
difícil sustentar o mesmo quando estamos diante de pessoas que põem em risco a
própria vida e dos seus parentes negando a vacina contra a COVID. Foi assim com
o fascismo histórico também, por isso a pobreza das análises que pensam que
qualquer coisa que não seja um Estado totalitário de burocracia partidária
rodeado por campos de concentração não possa ser chamada de fascista – como se
o fim do processo fosse seu começo.
Por outro lado, a ideia da esquerda é que as pessoas são recipientes
vazios em busca de um significado para suas tensões materiais, mas isso é
subestimar o campo do desejo e dos mitos que lhe giram ao redor. A pessoa pode
se agarrar no mito porque o desejo não pede mais que isso e, pior ainda, talvez
a certeza da esquerda de seus próprios mitos como se fossem algo além disso –
mitos – possa ser o maior equívoco de todos, aquele que assombra na forma do
terror do déspota esclarecido.
Assim, para finalizar, temos centenas de milhares de estudos sobre as
formas de produção de subjetividade neoliberal, mas, quando nos deparamos com o
fato mais ou menos simples de que nossos estudos são verdadeiros, isto é, as
pessoas realmente pensam e agem segundo o ethos neoliberal, recuamos fortemente
para dizer: não, mas elas têm bom coração. Compare-se o caso, citado por Rosana
Pinheiro-Machado, das pessoas pobres que, não obstante um acúmulo significativo
de promessas de que ficarão ricas jogando em bets, continuam – mesmo após sua
derrocada simbólica (alguém mostra o golpe) e real (o resultado não vem) –
insistindo que irão alcançar a meta, que apenas não chegou a sua vez, mais ou
menos como o ex-coach diz que perdeu as eleições porque não obteve o
alinhamento de sei-lá-que energias que precisavam atingir um pico superior ao que
atingiram. É mais que ilusão – é desejo positivo munido por uma base mítica (um
“agenciamento”) capaz de o sustentar.
Uma boa política precisa partir do pressuposto da ambivalência das
pessoas, não de idealizações. Os regimes fascistas do século passado
demonstraram que qualquer pessoa, em qualquer posição, pode se tornar algoz dos
seus. Isso não a coloca em lugar inamovível, nem necessariamente imperdoável,
apenas indica um ponto de partida que não seja uma fantasia ao modo de wishful
thinking, nem uma autoflagelação dos santos e dos mártires que introjetam a
agressividade diante do desejo fascista do outro como culpa – “erramos”,
passemos agora à confissão e à autocrítica. Essa postura baseia-se numa
hegemonia que nunca houve, num lugar em que os valores que a esquerda
identifica como mais justos, como a igualdade, a solidariedade e o diálogo,
estiveram já consolidados, como um Jardim do Éden perdido diante da nossa queda
na corrupção da sociedade (mais contemporaneamente: da mídia, das redes
sociais, dos coaches, etc.). Se uma autocrítica é devida, é no sentido de
entender como valores que são dados como pressupostos não necessariamente são
compartilhados por todos.
Melhorar é preciso, mas entender que a melhora não pressupõe um trabalho
sobre um recipiente vazio, como se o outro apenas “não soubesse” o que quer,
talvez nos encaminhe para perspectivas táticas e estratégicas mais realistas e,
sobretudo, mais eficazes.
Fonte: A Terra é
Redonda
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