sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Moysés Pinto Neto: “O ethos neoliberal”

Em 20 de janeiro, Donald Trump tomou posse como presidente eleito dos Estados Unidos, depois da uma vitória substantiva nas urnas, com um programa explicitamente fascista, e sem a desculpa de que os americanos votaram enganados pela interferência russa e o desconhecimento do personagem, como 2016. Já não podemos, inclusive, contar com a hipótese de que se tratou apenas do voto nulo antissistêmico migrado para um personagem outsider. Não? Bom, examinemos primeiro as circunstâncias para explicar melhor o problema.

·        A hipótese Waldo

Em 2016, Trump era a zebra da disputa. Hillary Clinton representava o neoliberalismo mais arraigado com o progressismo do politicamente correto, hoje chamado woke, na sua versão mais caricata. Ou seja, na sua versão do establishment, sempre pronta a desidratar as lutas sociais decisivas em formas que caibam no selo de produto mercadológico. O Clinton-feminismo, a condescendência com o movimento negro e com a população dita “latina”, a prontidão para etiquetar como “deploráveis” aqueles que se opõem, colocando-se na redoma de superioridade moral e sinalização de virtude eram a característica central da tríade Clinton-Obama-Clinton, aqueles que continuaram o trabalho de Ronald Reagan na economia (como Blair o de Thatcher, segundo ela própria), compactuando ou sem conseguir resistir às oligarquias econômicas, mas ao mesmo tempo mantinham uma aura de progressismo cultural.  

Naquela época, muitos de nós, diante da perplexidade pela escolha, entendemos que havia uma demanda por alguém que rompesse a bolha de proteção das elites, figurando como um outsider capaz de acumular a revolta social, principalmente diante das atitudes dos poderosos depois da crise de 2008. O trumpismo vinha a reboque da Primavera Árabe, das revoltas na Europa – como os indignados da Espanha e os levantes da Grécia –, de Junho de 2013 no Brasil, além, é óbvio, do próprio Occupy Wall Street, que passou pelo governo Obama da mesma forma que 2013 passou por Dilma (ou Haddad, localmente): como um nada. Assim como Dilma lança-se em 2014 como se nada tivesse acontecido – basta fazer um pouco de pesquisa empírica para lembrar do imenso silêncio daquelas eleições sobre Junho –, também Hillary tinha pouquíssimo a ver com a ruptura dos 99% desejada contra o 1% de Wall Street.

Mas nem Trump nem Bolsonaro, eleito dois anos depois, representam forças efetivamente anti-establishment. Na verdade, é o oposto: se alguém representa o establishment na sua forma mais veemente, cruel e obtusa, são justamente Trump e Bolsonaro. Trump é a força da elite parasita que pouco trabalha e vive da humilhação alheia, uma figura pop medíocre e explosiva que regurgita atrocidades ostentando seu lugar de branquitude e sua herança como símbolos da prosperidade norte-americana de caráter imperial. Bolsonaro, por sua vez, é o espelho do militarismo de porão, da banda mais podre do Exército e das polícias, envolvido em mil negócios que foram surgindo a partir da violência extrativista, da tomada de posse na forma de “acumulação primitiva”, sem formalização, com grilagem e coronelismo urbanos – tudo isso resumido na fórmula, talvez demasiado fraca, do “miliciano”. Tony Stark nos Estados Unidos e o Capitão América no Brasil – o milionário e o voluntarioso – assim funciona o imaginário da extrema direita que cultiva essas figuras.

Havia também a novidade das redes. Por aqui, como ninguém Letícia Cesarino explorou a hipótese “populismo digital”, uma combinação que faz conversar o significante vazio de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe – na sua teoria do populismo que já vinha denunciando a fragilidade do arranjo tecnocrático-liberal entre centro-esquerda e centro-direita, chancelado pelas teorias do consenso liberal como de Habermas, como mecanismos que impulsionariam o fascismo – com a cibernética das plataformas, pensadas na sua infraestrutura regidas por algoritmos que se alimentam de feedbacks promovendo o engajamento independente de “conteúdo”, produzindo com isso condições altamente favoráveis para a memética viral e a disseminação de notícias falsas. Chamei isso na época de Hipótese Waldo, o desejo – bem descrito pela série Black Mirror, que cada dia se torna ainda mais atual, tão atual que nem o seu autor Charlie Brooker consegue mais produzir ficção, tal a coincidência entre sua distopia e nosso presente –, o desejo, enfim, de “avacalhar tudo”, quebrar os parâmetros da correção política que caminham lado-a-lado como uma estagnação econômica, política e social regida por oligarquias tecnofinanceiras.

·        A hipótese Bernie

Mas, diante disso, criou-se mais uma hipótese suplementar: e se o Outsider fosse nosso? Estávamos discutindo, em outra temporalidade e outro regime de urgência, a institucionalização dos movimentos sociais de 2010, em especial com o caso do Podemos – que aderiu, explicitamente, ao populismo – e do Syriza, na Grécia, que vinha em confronto com a autoridade tecnocrática master da Europa, a dama de ferro Angela Merkel.

Surge, então, a hipótese Bernie: se Sanders, e não Clinton, tivesse disputado com Trump, talvez tivesse vencido. Um contrafactual mais ou menos impossível de ser testado, mas de qualquer modo funciona como motor para que uma esquerda um pouco mais radical, chamando-se a si própria inclusive de “socialista” (DSA), comece a ganhar volume, criando canais nas redes que vão desde podcasts, editoras até vídeos artísticos – num ecossistema que abrange Novara Media, Jacobin, Verso, Zero Books, entre outros. O Brasil tenta repetir, por aqui, o movimento nas mídias digitais: entram canais socialistas, com nomes como Sabrina Fernandes, Jones Manoel, Humberto Mattos e Chavoso da USP, além de numerosos podcasts como Viracasacas, Lado B do Rio, Anticast, e editoras, como Autonomia Literária e própria Jacobin, agora Jacobina, na roda.

Em suma, precisamos de um populismo de esquerda, como defendiam já Laclau e Mouffe, mas também o Podemos, na Espanha, e Nancy Fraser talvez seja o nome teórico do Norte que mais explicitamente trouxe a ideia, na sua famosa e muito interessante contraposição quaternária entre neoliberalismo progressista (Obama) e reacionário (Bush) e populismo reacionário (Trump) e progressista (Sanders).

Havia, no entanto, uma pedra no caminho, e talvez o principal malogro no período tenha sido o caso Jeremy Corbyn, o Sanders britânico, fortemente apoiado pela autodenominada “nova nova esquerda”, em contraponto à New Left, com vistas a restaurar o Estado de bem-estar social e acabar com o legado maldito de Thatcher. O malogro foi feito, porque a derrota não foi para qualquer um: a face mais histriônica, mais parecida com Trump, possível em cenário britânico, o caricato Boris Johnson, elege-se em um massacre contra o candidato da esquerda. O mesmo ocorre, em modos distintos, com a esquerda populista francesa, Jean-Luc Melenchon, com o Podemos da Espanha, e com Syriza na Grécia – todos hoje sombras de si mesmos. A Itália, tão prolífica em intelectuais conectados com as lutas (pense-se em Negri, Bifo, Lazaratto, Cacciari, Cesare, Agamben, Gerbaudo, Federici, etc.), parece completamente incapaz de produzir qualquer coisa; ao contrário, se Berlusconi foi, como disse certa vez Bifo, o próprio paradigma da entrada do clown na política, abrindo as portas para Trump, o país só caminhou mais e mais para a literalização do fascismo: primeiro, com o Cinco Estrelas, depois com a Liga Norte, para hoje, sempre subindo mais um degrau, ser governada pelo partido fascista de Meloni, admitindo campos de concentração de refugiados africanos e milícias racistas para caça aos imigrantes sem papéis. A Alemanha, que parecia o leading case das políticas de memória, invocando o racionalismo superior dos frankfurtianos atuais na sua defesa da União Europeia como avatar kantiano-cosmopolita blindado contra a entrada dos nacionalismos e do supremacismo, depois da Dama de Ferro, definha com um partido social-democrata minguado e irrelevante, obrigado a governar em aliança com os rivais para evitar a ascensão da AfD, o partido neonazista em ascensão.

Tampouco Bernie, durante o período, conseguiu se firmar como liderança política majoritária: foi entre os pobres e negros que foi derrotado, nas prévias de 2019, pelo caquético Biden, que mais tarde iria se tornar um fracasso completo na capacidade de produzir sua sucessão, com a também aguada Kamala Harris, cuja carreira representa uma total adesão ao estilo clintonista de leitura social e política. Mas Bernie continua com sua hipótese: há uma incompreensão da classe trabalhadora norte-americana entre os políticos do partido democrata que os afastam das bases, jogando-os no colo da extrema direita. Alguma semelhança com a hipótese de um certo Partido dos Trabalhadores que não consegue mais falar com a classe trabalhadora – hoje precarizada, desorganizada e individualista – de hoje?

·        A hipótese fascista

Eis que podemos nos perguntar se realmente Bernie, e com ele a esquerda quase como um todo, estão corretos. Porque, mesmo aqui, entre nós, temos duas leituras antagônicas de esquerda que convergem para uma conclusão implícita: para uns, a população não é boa suficiente para a esquerda, é o fenômeno do “pobre de direita”. Para outros, é a esquerda que não é boa suficiente para os pobres, é a “perda de contato com as bases”. Ambas, no entanto, presumem que há uma coincidência nos interesses da esquerda e dos trabalhadores, mitigada pela comunicação equivocada e pelas decisões políticas covardes. Mas – será?

E se propuséssemos aqui uma hipótese bem mais incômoda, menos politicamente correta, de que talvez, no fundo, os desejos das pessoas sejam mais literais que parecem? A esquerda, de algum modo, parece sempre presa no problema da ignorância. Se o outro não está comigo, é porque não entende as minhas razões. A consciência de classe, a emancipação, a reflexividade, enfim, todo esse aparato que vai da Paideia à Bildung – e, por aqui, a “formação” (na versão USP) ou “conscientização” (na versão Freire) – irá produzir uma convergência política que fará o povo se levantar contra sua própria opressão. O “desejo fascista” de hoje, se é que pode ser chamado assim, é a falta de esclarecimento. Na verdade, vamos eufemizar a palavra “fascista” um pouco, por gentileza? Afinal, essas pessoas votaram no Lula em 2002… Muitos argumentos são encontrados nessa cesta: o “laço social”, “desejo de pertencimento”, a “sobrevivência”, a “precariedade”, a “falta de compreensão sobre suas demandas” … enfim, haverá aí uma pilha de considerações que vão da manipulação social ao insulamento da esquerda para justificar que não é fascismo, é outra coisa.

Nisso, uma premissa estranha se instaurou na teoria, talvez como efeito do mega triunfalismo liberal do Fim da História: a de que o fascismo é um fenômeno patológico que envolve forte adesão intelectual e é restrito a pequenas franjas da população. Tudo rigorosamente ao contrário do que nos ensinaram os pensadores do fascismo, desde Freud (avant la lettre), de Adorno e Reich a Foucault e Deleuze: o fascismo como fenômeno de massas. De repente, as academias – brasileira e a norte-americana, por exemplo – estão prontas a dizer: sim, houve uma adesão forte às ideias de Bolsonaro e Trump, mas não nos alarmemos com isso – as pessoas estão apenas confusas. Um passo adiante, quem sabe, para dizer: “a culpa é nossa!”, nós que não entendemos nada do que está ocorrendo, e inclusive estamos desperdiçando uma forma de surfar no descontentamento social. No último caso, cria-se o curioso caso do intelectual-de-massas-sem-massas, das massas que são minorias minúsculas, o comunicador da revolução popular que não se elege síndico do seu condomínio; enquanto, do outro lado, as minorias, os impopulares patológicos que são “exceções”, mobilizam as verdadeiras massas em quantidades de “alienados”. 

Ora, é bem possível que não estejamos entendendo nada mesmo, mas mesmo assim fica a pergunta: e o desejo do outro, estará assim tão escondido de nós? Porque, mesmo as etnografias mais interessantes e necessárias, nas suas entrevistas, costumam mostrar o que todo mundo já sabe: meritocracia, conservadorismo moral, desejo de prosperidade, identificação. Um museu de grandes novidades. Sabemos, por exemplo, que a população brasileira, em todas as classes sociais, está hipnotizada – no sentido que Freud dá à psicologia das massas – pelas plataformas digitais como Instagram e Tik Tok, sem falar da jogatina nos aplicativos de apostas. O mundo que Jonathan Crary chama de “24/7”, 24 horas e 7 dias, Nonstop, é visível em qualquer lugar da nossa paisagem: no ponto de ônibus, na praia, no shopping, no cordão da calçada, no bar – eu diria até em lugares completamente improváveis, como um estádio de futebol, um show musical ou um cinema, onde teoricamente a atenção deveria ser dirigida ao espetáculo, não à telinha e suas banalidades. O que roda nessas redes é facilmente mapeável: dinheiro, corpo, poder, sucesso. Pablo Marçal captou tão facilmente que inclusive respondia às perguntas dos repórteres com conceitos oriundos do digital como “economia da atenção”, em vez de grandes ideias ou justificativas estapafúrdias.

E se as pessoas, nas maiorias eleitorais, estivessem simplesmente desejando mesmo aquilo que é proposto? Vamos para o caso dos Estados Unidos. O grande fiel da balança na última eleição foram os chamados “homens latinos”, que, aliás, é um enquadramento tipicamente racista dos EUA. Afinal, quem de nós, brasileiros, por exemplo, vê-se como de “raça latina”? A branquitude anglo-saxã, no seu típico supremacismo, elevou os traços ditos “nórdicos” (ou: arianos), como cabelos loiros, pele muito branca e olhos claros, para caracterizar o verdadeiro branco, separando-se, com isso, da mestiçagem “hispânica” oriunda dos verdadeiros latinos, a Europa romano-católica do Sul europeu, em especial os ibéricos, em contato com os povos indígenas originários das Américas. Mas trata-se, sempre, de uma heteroidentificação: sob o olhar condescendente do partido democrata, ou xenófobo do partido republicano – vítima ou ofensor. O que, aliás, é fortemente referendado no imaginário anti-mexicano de séries de sucesso, algumas inclusive belíssimas produções estéticas. Nas eleições, Trump levou ao máximo o supremacismo branco: chegou a afirmar que as populações de imigrantes (que sabemos ser um código para dizer: não-brancas) furtam e comem os pets da tradicional família americana, são assassinos, estupradores e ladrões, e habitam os EUA sob a chancela da imprensa e dos políticos liberais. E mais: em um gesto tipicamente nazista, que ele próprio alega que seria etiquetado como “nazista” pelos “radicais da esquerda”, afirmou que os imigrantes estão poluindo o sangue americano, algo que não deixa dúvidas sobre seu parentesco com as ciências da vida do século XIX.

Mas a pergunta é: e por que, mesmo assim, os ditos “latinos” votaram em Trump? Ora, quem são eles? Nós, brasileiros, infelizmente os conhecemos muito bem o nosso caso: basta pensar em quem são os nossos que estão lá, na Flórida, apoiando Bolsonaro e pedindo para que Trump salve o Brasil do comunismo. O mesmo se dá, sabemos razoavelmente bem, entre os venezuelanos e cubanos que andam por lá, mesmo que, nesses casos, o problema seja mais complexo. De qualquer modo, essas pessoas se veem como brancas. Esse é o ponto. Raça não é algo apenas alusivo à cor da pele, mas um jogo de posições. Numerosos estudiosos e estudiosas poderosas – como Carlos Hasenbalg, Neusa Santos Souza, Lelia Gonzales, Lia Schucman, Liv Sovik, Clóvis Moura, Sueli Carneiro, entre outros – mostram que raça é uma posição de poder, não uma essência biológica (e nem mesmo apenas “cultural”, que a tornaria uma “identidade”). Portanto, um branco é sempre branco em-relação-a-alguém-não-branco. Isso quer dizer, como vimos em Bacurau, que um branco brasileiro pode deixar de sê-lo quando de frente a um supremacista norte-americano; assim como, de modo ainda mais surpreendente, Min Jin Lee nos mostra em Pachinko que os japoneses, “tecnicamente” um povo dito “amarelo”, viam-se como brancos diante dos coreanos que colonizavam devido tanto à sua condição cultural-militar quanto à cor mais clara da pele. A branquitude é poder e, como poder, acesso. Assim, poderíamos perguntar: as pessoas ditas “latinas” que votaram em Trump identificavam-se como brancas e, por isso, votaram nele? Parece que sim, mesmo que elas eventualmente recebam muitos feedbacks negativos das suas pretensões. Identificação não é “adequação aos fatos”, como a teoria da conscientização, fundada na teoria da verdade, postula. Freud já mostrava o caráter aspiracional, o “ideal de Eu” que está envolvido na identificação, bem longe de qualquer correspondência identidade/interesse que poderia ser estimada mediante análises rigidamente segmentadas em categorias. Uma vez que elas conseguiram o acesso (o documento legal), trata-se de fazer preponderar a distinção em detrimento da solidariedade, de olhar para o “lado de lá” e aspirar ocupar aquele lugar.

Esse ponto nos leva um ponto adiante: digamos que, modo geral, a esquerda seja o partido do igualitarismo e da solidariedade, enquanto a direita, da meritocracia e da distinção. Margareth Thatcher defendia, diante de um sólido Estado de bem-estar, the right to be unequal como um direito do cidadão britânico. E se, como Trump mostrou no seu último discurso anterior à posse, a polarização é entre meritocracia e políticas de cotas, sabemos exatamente o que está em jogo: a meritocracia é a supremacia branca, já que as políticas de cotas eram simplesmente “compensatórias” das defasagens em relação a uma meritocracia real. Aqueles que conseguiram o acesso racial estão, nas suas cabeças, garantidos no jogo, por isso podem se adequar às novas regras. Votaram como parte de um Império, que é o que a América é, e consideram-se como habitantes de Roma separados das suas províncias conquistadas, para os quais os bárbaros e selvagens devem ser devolvidos para não tumultuar a prosperidade da Metrópole. No Brasil, claro, as coisas são um pouco distintas, porque temos um nacionalismo vicariante: é-se tanto mais “patriota” quanto mais se despreza o Brasil e elogia os Estados Unidos. Longe do Policarpo Quaresma, o nacionalista brasileiro olha para o Brasil com autodesprezo, projetando-se como um americano que olha de fora para si mesmo. Ele odeia fortemente tudo que é o Brasil, e não por acaso existe o reflexo espelhado entre a percepção de fora: ele olha para os gringos como modelos e se vê como parte deles, mas os gringos elogiam o Brasil justamente pelo que ele mais odeia, ao mesmo tempo que o veem como nosso exemplar mais repulsivo. Parece a relação masoquista de Bolsonaro com Trump, a quem idolatra e é sumariamente desprezado, confirmando seu desejo de humilhação. Mais uma vez: a identificação não é um processo que liga X a X, mas pode também ligar X a Y, e com isso X cria seu próprio X’, que é seu igual reduzido à condição de descartável pelo racismo – que ele exerce vicariamente – no corpo do dominante Y.

Exatamente da mesma forma que ocorreu com Bolsonaro, Trump começa com afirmações que jogam na indecisão entre o sério e o jocoso. É um laboratório de obscenidades, entendidas como aquilo que está fora da cena, por baixo das cortinas, vindo à tona. Mas, depois de um tempo, seu programa se literaliza. Se as bravatas de Bolsonaro em 2018 pareciam apenas isso, bravatas, fica difícil sustentar o mesmo quando estamos diante de pessoas que põem em risco a própria vida e dos seus parentes negando a vacina contra a COVID. Foi assim com o fascismo histórico também, por isso a pobreza das análises que pensam que qualquer coisa que não seja um Estado totalitário de burocracia partidária rodeado por campos de concentração não possa ser chamada de fascista – como se o fim do processo fosse seu começo.

Por outro lado, a ideia da esquerda é que as pessoas são recipientes vazios em busca de um significado para suas tensões materiais, mas isso é subestimar o campo do desejo e dos mitos que lhe giram ao redor. A pessoa pode se agarrar no mito porque o desejo não pede mais que isso e, pior ainda, talvez a certeza da esquerda de seus próprios mitos como se fossem algo além disso – mitos – possa ser o maior equívoco de todos, aquele que assombra na forma do terror do déspota esclarecido.

Assim, para finalizar, temos centenas de milhares de estudos sobre as formas de produção de subjetividade neoliberal, mas, quando nos deparamos com o fato mais ou menos simples de que nossos estudos são verdadeiros, isto é, as pessoas realmente pensam e agem segundo o ethos neoliberal, recuamos fortemente para dizer: não, mas elas têm bom coração. Compare-se o caso, citado por Rosana Pinheiro-Machado, das pessoas pobres que, não obstante um acúmulo significativo de promessas de que ficarão ricas jogando em bets, continuam – mesmo após sua derrocada simbólica (alguém mostra o golpe) e real (o resultado não vem) – insistindo que irão alcançar a meta, que apenas não chegou a sua vez, mais ou menos como o ex-coach diz que perdeu as eleições porque não obteve o alinhamento de sei-lá-que energias que precisavam atingir um pico superior ao que atingiram. É mais que ilusão – é desejo positivo munido por uma base mítica (um “agenciamento”) capaz de o sustentar.

Uma boa política precisa partir do pressuposto da ambivalência das pessoas, não de idealizações. Os regimes fascistas do século passado demonstraram que qualquer pessoa, em qualquer posição, pode se tornar algoz dos seus. Isso não a coloca em lugar inamovível, nem necessariamente imperdoável, apenas indica um ponto de partida que não seja uma fantasia ao modo de wishful thinking, nem uma autoflagelação dos santos e dos mártires que introjetam a agressividade diante do desejo fascista do outro como culpa – “erramos”, passemos agora à confissão e à autocrítica. Essa postura baseia-se numa hegemonia que nunca houve, num lugar em que os valores que a esquerda identifica como mais justos, como a igualdade, a solidariedade e o diálogo, estiveram já consolidados, como um Jardim do Éden perdido diante da nossa queda na corrupção da sociedade (mais contemporaneamente: da mídia, das redes sociais, dos coaches, etc.). Se uma autocrítica é devida, é no sentido de entender como valores que são dados como pressupostos não necessariamente são compartilhados por todos.  

Melhorar é preciso, mas entender que a melhora não pressupõe um trabalho sobre um recipiente vazio, como se o outro apenas “não soubesse” o que quer, talvez nos encaminhe para perspectivas táticas e estratégicas mais realistas e, sobretudo, mais eficazes.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

 

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