sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

“O cessar fogo foi imposto a Israel porque não alcançou seus objetivos”, garante  Saïd Bouamama

Donald Trump anunciou-o em suas redes. E Joe Biden confirmou que as duas administrações trabalharam juntas: foi concluído um acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas. Uma inflexão na estratégia dos Estados Unidos? Quais as consequências para os palestinos e para a região como um todo? Autor do Manuel stratégique de la Palestine et du Moyen-Orient (Manual Estratégico para a Palestina e o Oriente Médio), Saïd Bouamama responde às nossas perguntas.

<><> Eis a entrevista.

·        Durante quinze meses, os Estados Unidos apoiaram de maneira incondicional a Israel. Por que justo agora impõem um acordo de cessar-fogo?

Em primeiro lugar, este acordo mostra que as grandes potências não são impotentes quando querem. Podemos ver que, se for do seu interesse, os Estados Unidos são perfeitamente capazes de exercer pressão suficiente sobre Netanyahu para aceitar um acordo que tinha sido rejeitado anteriormente.

·        E quais são exatamente os interesses dos Estados Unidos em impor um cessar-fogo? Este é um momento especial de transferência de poder entre Joe Biden e Donald Trump.

Donald Trump queria enviar uma mensagem a um certo número de atores internacionais. Através da questão palestina, ele demonstra que é capaz de parar ou reiniciar conflitos. E anuncia as suas novas estratégias a nível global para outras negociações em outras partes do mundo. Penso especialmente na Ucrânia. Donald Trump confirma assim que o principal conflito dos Estados Unidos diz respeito à China. Vemos isso também nas suas declarações sobre a possível anexação da Groenlândia e do Canal do Panamá. Estas questões estão relacionadas à China: produção de terras raras, no caso da Groenlândia, e comércio marítimo, no caso do Canal do Panamá.

Além disso, Trump também deve ter em conta a evolução da opinião pública global e estadunidense em particular. O genocídio revelou a verdadeira face de Israel a muitas forças políticas que até agora tinham sido cautelosas. A mobilização de estudantes nos campus estadunidenses e as manifestações das comunidades judaicas não são inquietações que desaparecerão subitamente. Trump também deve lidar com isso.

·        O que este acordo diz sobre a relação entre Trump e Netanyahu? Muitos pensaram que estavam na mesma linha ideológica e que o primeiro-ministro israelense teria mais liberdade do que nunca quando Donald Trump regressasse à Casa Branca.

Não devemos personalizar muito essas questões. Na verdade, parte da administração estadunidense considera que Netanyahu e o movimento que representa tornaram-se hoje um obstáculo para o próprio fortalecimento de Israel. Este país foi criado e apoiado para administrar o Oriente Médio. O interesse estratégico dos Estados Unidos é ter um Estado de Israel estável, capaz de pacificar a região. Os Acordos de Abraão, negociados durante o primeiro mandato de Donald Trump, fizeram parte desta lógica ao visarem a normalização dos países árabes com Israel. Mas o genocídio deslegitimou a capacidade de Israel de estabilizar a região. Para tirar Israel do seu isolamento, Netanyahu parece, portanto, ser um obstáculo na estratégia de Donald Trump.

Outra parte da administração dos EUA considera, pelo contrário, que a violência é a única solução para controlar o Oriente Médio e que é necessário desestabilizar vários países árabes, incluindo os aliados de Washington.

·        Esta é a estratégia do caos liderada pelos neoconservadores. Do Afeganistão à Síria, passando pelo Iraque e pelo Iêmen, levou a conflitos que visavam remodelar o Grande Oriente Médio. Esta estratégia foi apoiada por Netanyahu, mas Donald Trump denunciou-a recentemente de forma indireta ao publicar um vídeo nas suas redes. Sabemos que o presidente eleito avalia as estratégias com base no que custam e no que aportam. Remodelar o Grande Oriente Médio, caro a Netanyahu, não é um bom negócio para Trump?

Os Estados Unidos tinham de garantir proteção total a Israel no caso de um reinício do conflito. Mas eles também tinham que fazê-lo entender que as coisas não poderiam continuar assim. Porque este acordo realça, na verdade, um verdadeiro fracasso de Israel. Como aquele negociado no Líbano. Os objetivos de guerra que Netanyahu estabeleceu para si mesmo não foram alcançados. Mesmo enfraquecida, a resistência ainda está muito presente. O êxodo em massa de palestinos não aconteceu. E os soldados israelenses estão começando a desmoronar, e cresce o número daqueles que se recusam a voltar aos combates. Em última análise, as reações de ambos os lados ao anúncio deste acordo de cessar-fogo indicam claramente quem é o perdedor. Na Palestina, testemunhamos cenas de júbilo. Mas em Israel o acordo foi amplamente contestado. Prova de que deve ter sido imposto a Netanyahu.

·        Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional de Joe Biden, disse que este acordo de cessar-fogo poderia inaugurar uma nova era no conflito entre Israel e Palestina. Poderíamos avançar em direção a soluções mais duradouras? Onde vamos manter o status quo?

O status quo será, sem dúvida, mantido por um período difícil de avaliar. Na verdade, há muitos elementos que levarão até Israel a violar o cessar-fogo. Em primeiro lugar, os palestinos que viveram o genocídio não vão desistir da resistência. Pelo contrário. Depois, haverá uma pressão crescente em Israel por parte dos colonos e da extrema direita, a quem foi prometido que o Hamas e o Hezbollah seriam erradicados. Por último, o contexto regional permanece instável, especialmente na Síria, onde os combates continuam. Todos estes elementos tornam o cessar-fogo frágil.

·        Se os Estados Unidos querem a estabilidade de Israel como polícia do Oriente Médio, a solução não seria apoiar a criação de um Estado palestino?

Tudo depende do que entendemos por criação de um Estado palestino. Se for um Estado-quintal totalmente dependente do seu vizinho israelense, esta não será uma solução viável. Além disso, a ideia de um Estado palestino certamente progrediu. Mas os israelenses não estão preparados para aceitá-la e o equilíbrio de poder ainda não está dado para lhes impor isso.

·        Então, o que os palestinos podem esperar deste acordo de cessar-fogo?

Em primeiro lugar, vamos ver um cenário que infelizmente conhecemos muito bem. Com um primeiro tempo bem-vindo para curar as feridas, chorar e reconstruir. Os palestinos demonstrarão mais uma vez que não pretendem renunciar a nada. Porque reconstruir também significa provar que continuamos vivos.

Veremos, na sequência, que a resistência não foi superada. Por uma razão muito simples: aqueles que viveram este genocídio não podem concluir que precisam de organizações de resistência. Esta é também uma lição aprendida em qualquer luta de libertação nacional. Quanto mais forte a repressão, mais ela contribui para o fortalecimento das organizações de resistência. A resistência palestina, contudo, passará por um período difícil. Terá de se reorganizar tendo em conta um contexto regional muito mais desfavorável agora, especialmente com o desaparecimento do aliado sírio.

·        Poderiam as monarquias do Golfo tentar tirar proveito deste contexto regional para assumir o controle da resistência palestina e torná-la mais inofensiva?

Absolutamente. Através da ajuda econômica necessária à reconstrução, as monarquias alinhadas com os interesses do Ocidente certamente tentarão negociar investimentos em troca do abandono da resistência. Mas isso não é nenhuma novidade. O povo palestino já passou por isto e, para a grande maioria, isso não mudará nada na sua relação com a resistência.

·        Esta guerra foi travada em múltiplas frentes fora de Gaza. Quais serão as consequências do cessar-fogo na região?

A ideia geral de remodelar o Oriente Médio certamente não está abandonada. O Irã continua sendo um obstáculo, é o próximo alvo. A sua desestabilização alteraria estruturalmente o equilíbrio de poder regional e não deixaria muitas possibilidades para aqueles que se recusam a seguir a nova ordem estadunidense.

Resta saber como Trump irá abordar a questão iraniana nas próximas semanas. Como você observou, ele é um comerciante. Ele calcula com base em perdas e ganhos. Tudo dependerá de os Estados Unidos se atreverem a tentar desestabilizar o Irã na medida em que o equilíbrio de poder lhes seja favorável. Ou se tentarão acalmar as relações com o Irã para isolar a China. No entanto, a dinâmica multipolar está muito avançada em países como o Irã, a Rússia e a China para que possam romper. É a solidez desta dinâmica que determinará o nível de agressividade dos Estados Unidos.

·        A imposição de um acordo de cessar-fogo a Israel mostra, sem dúvida, os limites de uma estratégia excessivamente agressiva?

Em todo caso, sejam quais forem as razões que levaram Trump a promover este acordo, o cessar-fogo é imposto sobretudo porque Israel não alcançou os seus objetivos. A resistência não foi aniquilada e os palestinos, em sua grande maioria, não abandonaram as suas terras. Não sendo alcançados estes dois objetivos, certamente teremos novas explosões nos próximos meses ou anos.

 

Fonte: Entrevista de Grégoire Lalieu, para Investig’Action, tradução do Cepat, em IHU

 

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