sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Iara Vidal: Trump, o veludo molhado e a crise neoliberal

A moda sempre refletiu as dinâmicas econômicas, políticas e sociais de sua época. Ela é um espelho do espírito do tempo. O recente retorno de tendências dos anos 1990, como o icônico veludo molhado, não é apenas uma celebração estética.

Esse resgate do veludo molhado encapsula as crises do capitalismo, as mudanças sociais e até mesmo a polarização política que marca o cenário atual, incluindo o retorno de Donald Trump à Casa Branca em 2025.

Veludo molhado e neoliberalismo

Os anos 1990 foram um período de consolidação do neoliberalismo, marcado por privatizações, desregulamentações e a expansão da globalização. Esse sistema prometia prosperidade, mas também plantava as sementes de desigualdade e crises futuras.

Enquanto isso, a moda acompanhava esse movimento, e o veludo molhado despontava como um dos tecidos mais icônicos da década. Com brilho característico e textura macia, o tecido tornou-se sinônimo de elegância e versatilidade, destacando-se em peças como vestidos, blusas e acessórios.

Popularizado por ícones como Kate Moss e Winona Ryder, o veludo molhado combinava sofisticação com um toque casual, muitas vezes usado em slip dresses ou combinado com jaquetas de couro e botas pesadas. Seu apelo se consolidou em tons profundos, como preto, vinho e azul marinho, adaptando-se a diferentes estilos — de silhuetas sensuais a cortes mais confortáveis.

Hoje, o renascimento do veludo molhado, reinterpretado por grandes marcas, não é apenas uma referência retrô, mas um reflexo das incertezas contemporâneas. Ele evoca segurança e conforto em um momento em que as promessas do neoliberalismo desmoronam.

·        Nostalgia em tempos de crise

O retorno do veludo molhado vai além de uma tendência vintage; reflete uma busca por conforto emocional em meio às incertezas globais. A nostalgia, como explica o historiador marxista Eric Hobsbawm em "Era dos Extremos", é uma reação coletiva às crises do capitalismo, oferecendo refúgio diante de mudanças rápidas, desigualdades crescentes e precarização social.

Hobsbawm argumenta que, em períodos de recessão ou instabilidade, as sociedades idealizam o passado como um tempo mais estável e próspero. Essa nostalgia se manifesta em elementos culturais, como moda e cinema, que resgatam estilos antigos para proporcionar familiaridade e segurança emocional.

Porém, a nostalgia também tem um papel político. Hobsbawm destaca como movimentos conservadores instrumentalizam memórias seletivas para promover agendas nacionalistas, romantizando eras de "grandeza perdida" e mobilizando descontentamentos populares com soluções simplistas.

No capitalismo, a nostalgia é mercantilizada: estilos vintage e produtos culturais antigos são transformados em estratégias de consumo. 

Esse fenômeno não é novo — nos anos 1990, durante o auge do neoliberalismo, houve um resgate de décadas passadas em resposta às desigualdades emergentes. Situações semelhantes ocorreram na crise financeira de 2008, reforçando a nostalgia como uma constante em tempos de instabilidade.

Hoje, o retorno de estilos como o veludo molhado simboliza não apenas uma reconexão emocional, mas também as contradições de um sistema que transforma até mesmo memórias em mercadoria.

·        O veludo e Donald Trump

A análise de Hobsbawm permanece relevante em 2025, quando crises capitalistas, como a precarização do trabalho e a emergência climática, geram novos ciclos de nostalgia. 

Não foi por acaso que a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro escolheu justamente um vestido de veludo molhado verde-esmeralda para participar de eventos de posse de Trump no dia 20 de janeiro. A mesma cor, tecido e modelo adotado pela mulher do deputado federal Eduardo Bolsonaro, Heloísa Bolsonaro.

Mesmo não tendo sido convidadas para a cerimônia de posse, realizada na Rotunda do Capitólio, em Washington D.C, a ex-primeira-dama e terceira mulher e a nora do hoje inelegível Jair Bolsonaro se emperiquitaram para assistir ao evento pela televisão. Horas depois, o clã Bolsonaro se dirigiu ao Capital One Arena, palco de discurso e assinatura de decretos de Trump.

Foi a opção certeira para presenciar a ascensão de um líder autoritário como Trump e demonstra como a nostalgia por um passado idealizado pode ser utilizada para justificar agendas políticas conservadoras e antiglobalistas.

Hobsbawm, mesmo nunca tendo feito crítica de moda, interpreta a nostalgia não apenas como uma reação cultural, mas como um fenômeno profundamente político e econômico. 

Durante crises capitalistas, como a que vivenciamos agora, a nostalgia funciona como um mecanismo de enfrentamento coletivo, ao mesmo tempo que pode ser cooptada pelo sistema para reforçar estruturas de poder ou criar novos mercados de consumo. Sua análise ilumina a complexa relação entre memória, cultura e as dinâmicas do capitalismo em transformação.

·        Crise do neoliberalismo e ascensão da extrema direita

Os anos 1990 consolidaram o neoliberalismo como modelo econômico dominante, priorizando privatizações, desregulamentação e globalização. Sob líderes como Margaret Thatcher e Ronald Reagan, o sistema prometia crescimento e integração global, mas crises como a asiática de 1997 revelaram suas vulnerabilidades, aprofundando desigualdades e gerando descontentamento.

Em 2025, o mundo enfrenta uma nova crise capitalista, marcada pela precarização econômica, emergência climática e insatisfação com as promessas neoliberais. Assim como nos anos 1990, movimentos de extrema direita exploram o descontentamento com soluções autoritárias e nacionalistas.

·        Neoliberalismo: contradições e crise

O neoliberalismo surgiu nos anos 1970 como resposta à estagflação, promovendo o Estado mínimo e a eficiência de mercado. No entanto, enquanto gerava crescimento, também aprofundava desigualdades. 

Em 2024, segundo a Oxfam, a riqueza dos bilionários aumentou em US$ 2 trilhões, totalizando US$ 15 trilhões, enquanto o número de pessoas vivendo na pobreza permaneceu praticamente inalterado desde 1990. Crises como a de 2008 expuseram as falhas desse modelo, agravadas por precarização do trabalho e exploração ambiental.

Em 2025, essas contradições resultam em crises sociais e políticas mais profundas em que a desigualdade econômica com concentração de riqueza alimenta insatisfação popular.

A emergência climática foi forjada pela busca por lucros que negligenciou a sustentabilidade e agravou desastres ambientais. A precarização do trabalho foi turbinada por modelos como a gig economy que intensificaram a insegurança econômica. A polarização política empodera a extrema direita ao explorar o descontentamento com promessas simplistas.

·        Anos 1990 e 2025: padrões repetidos

A resposta às crises econômicas de ambos os períodos, anos 1990 e 2025, reflete mudanças no papel do Estado e o crescimento de narrativas autoritárias.

Enquanto os anos 1990 marginalizaram o Estado, em 2025 cresce o apelo por maior intervenção estatal para combater desigualdades e mudanças climáticas.

Nos anos 1990, a globalização enfrentou resistência conservadora. Em 2025, líderes como Donald Trump, Javier Milei, Jair Bolsonaro e Viktor Orbán canalizam ansiedades econômicas e culturais para reforçar agendas nacionalistas.

O colapso do neoliberalismo em 2025 aponta para a necessidade de alternativas como a economia verde que priorize a sustentabilidade e a transição energética; reforçar o papel do Estado como regulador e investidor; e promover redes locais e cooperativas para reduzir desigualdades.

A crise de 2025, assim como a dos anos 1990, destaca os limites do neoliberalismo. Embora tenha impulsionado o crescimento, suas contradições estruturais fomentaram desigualdades e polarização. 

O momento atual exige a busca por novos modelos que unam desenvolvimento econômico, justiça social e sustentabilidade, enquanto se combate a ascensão de narrativas autoritárias.

·        História do veludo molhado

O veludo molhado é um tecido icônico, conhecido por sua textura suave e brilho marcante, que cria a ilusão de movimento, como se estivesse molhado. Com uma história que atravessa séculos e continentes, este tecido conquistou espaço na moda e na decoração, adaptando-se a diferentes épocas e culturas.

O termo "veludo" tem origem no latim vellus, que significa "pelo" ou "pele", refletindo sua textura macia. O tecido surgiu por volta do século 7 na Índia e na China, chegando ao Oriente Médio através das rotas comerciais e alcançando a Europa no século 12. Durante o Renascimento, o veludo tornou-se um símbolo de status e riqueza, especialmente na Itália, onde cidades como Veneza e Florença lideravam sua produção.

O veludo molhado, ou crushed velvet, é uma variação que passa por processos como prensagem ou torção, criando um padrão de texturas onduladas e reflexos irregulares. Esta técnica confere ao tecido sua aparência única e luxuosa. No Renascimento, era usado por nobres e clérigos em roupas e decoração palaciana, consolidando sua associação ao luxo.

Ao longo da história, o veludo molhado ganhou diferentes nomes, como crushed velvet em inglês, velours frappé em francês e devoré velvet, uma versão moderna que combina transparências com o brilho do tecido. Essas variações enriqueceram seu apelo cultural e estético.

Com a Revolução Industrial, o veludo deixou de ser exclusividade da elite, tornando-se mais acessível. No século 20, o veludo molhado teve sucessivos revivals: nos anos 1920, apareceu em vestidos glamourosos da era do jazz; nos anos 1970, foi associado ao estilo boêmio; e nos anos 1990, tornou-se um ícone da moda grunge, frequentemente combinado com botas pesadas.

Atualmente, o veludo molhado continua a ser uma escolha popular tanto na moda quanto na decoração. Graças às adaptações em tecidos sintéticos, ele é mais prático e acessível, mantendo seu ar sofisticado. Designers modernos exploram sua versatilidade em coleções de alta costura, enquanto ele também enriquece ambientes em forma de cortinas, almofadas e estofados.

O veludo molhado permanece como um símbolo de luxo, criatividade e adaptabilidade. Sua rica história, que une tradição e modernidade, é um reflexo de como um tecido pode transcender séculos e tendências, permanecendo relevante e desejado em diferentes contextos.

·        Veludo, a metáfora de uma crise em andamento

Tanto nos anos 1990 quanto em 2025, crises capitalistas revelam as limitações do neoliberalismo. Desigualdades e polarizações políticas alimentam a nostalgia por um passado idealizado, enquanto a moda, com seu papel reflexivo, captura as ansiedades e esperanças coletivas.

O momento atual exige a busca por novos modelos econômicos que unam sustentabilidade, justiça social e desenvolvimento. A ressurreição do veludo molhado, mais do que uma tendência, exemplifica como a moda dialoga com as complexidades de sua época, conectando estética e ideologia de forma inseparável.

 

¨      Elon Musk e as narrativas de decadência que conectam todos os movimentos antidemocráticos. Por Felix Schilk

“É a taxa de natalidade. É a taxa de natalidade. É a taxa de natalidade,” ecoava a linha de introdução no manifesto do atirador de Christchurch, que matou 51 pessoas em uma mesquita em 2019. Sua alegação era que os brancos estão sendo “substituídos” por outras raças e não sobreviverão sem ação.

Alguns anos depois, a mesma obsessão com taxas de natalidade tornou-se um bordão do ativismo diário de Elon Musk nas redes sociais.

Não me entenda mal, Elon Musk não é nem um supremacista branco nem um terrorista de extrema direita. No entanto, como outras pessoas com opiniões extremistas, ele promove a visão de que a sociedade está em declínio e que é necessário agir para evitar um apocalipse relacionado. Essas sobreposições retóricas dificilmente são coincidência. Elas derivam de uma filosofia reacionária que tem uma longa história de se tornar viral.

A ansiedade de que taxas de natalidade baixas inevitavelmente levam ao colapso populacional assombra o Ocidente desde que o consumo em massa se tornou seu estilo de vida dominante. Isso inverte o antigo medo malthusiano de que o crescimento populacional exponencial ultrapassaria nossa capacidade de produzir alimentos. Visto de uma perspectiva maior, ambos são variações de uma narrativa genérica conhecida como decadência.

A ideia de decadência – declínio moral desencadeado por indulgência excessiva – informa muitas partes do senso comum cotidiano, especialmente a crítica cultural.

Já leu o famoso best-seller do historiador americano Christopher Lasch sobre a cultura contemporânea do narcisismo? Já se deparou com o meme popular que afirma que “homens fracos criam tempos difíceis”? Já seguiu os tuítes do Cultural Tutor sobre a perda da beleza na arquitetura? Já rolou a tela sem parar pelos 1.293 vídeos de Jordan Peterson no YouTube? Os detalhes variam, mas o tema abrangente da decadência é o mesmo em todas as vezes.

A decadência é uma narrativa útil e de dois gumes. Ela enquadra as massas como preguiçosas e necessitadas de disciplina. As elites corruptas, por sua vez, simplesmente precisam ser substituídas. Ela lamenta a erosão da autoridade e baseia-se na premissa de que toda sociedade repousa sobre hierarquias eternas. Muita liberdade, diversão e flexibilidade, diz a história, põem em risco a ordem e, assim, a prosperidade.

Daí, algumas regras para a vida: os homens devem se subordinar e obedecer pelo bem maior. As mulheres devem procriar para garantir a existência de nosso povo e um futuro para nossos filhos. Uma nova nobreza deve substituir as elites liberais e recriar a cultura. Caso contrário, a civilização, ou pelo menos as nações, estão em jogo. Isso soa familiar?

Desde as lendas bíblicas de Sodoma e Gomorra até o mito hindu de Kali Yuga, adversários da igualdade e do estado de direito acusam as sociedades de serem decadentes.

De populistas antigos no Império Romano a fascistas italianos, a decadência é a estrutura trans-histórica que une os ramos da filosofia antiliberal.

Hoje, o filósofo neorreacionário e defensor de um “esclarecimento sombrio”, Curtis Yarvin, declara no New York Times que a democracia está “morta”. Ele anseia substituí-la por uma monarquia americana. A alegação do cientista político Patrick Deneen de uma “dissociação quase completa entre a classe governante e uma cidadania sem um cives” também se baseia em uma narrativa de decadência.

Todas essas ideias repousam sobre uma percepção cíclica do tempo. Ascensão e queda. Florescimento e decadência. Apocalipse e palingenesia, que significa um renascimento nacional ou étnico.

Em minha pesquisa, analisei centenas de revistas neofascistas alemãs e francesas. No final, os dados eram a mesma repetição interminável de decadência e apocaliticismo. Chamei isso de narrativas de crise conservadoras.

·        A política da crise

Na maioria dos casos, não há motivo para preocupação. A decadência é apenas um clichê. Mas é por isso que todos podem vender tão facilmente suas próprias versões dessa história – desde que recapitulem a grande narrativa. Os fatos não importam, e o diabo não está nos detalhes.

“Se eu tiver que criar histórias para que a mídia americana realmente preste atenção ao sofrimento do povo americano, então é isso que eu vou fazer,” admitiu francamente J.D. Vance, vice-presidente de Donald Trump, durante a campanha de 2024. Sua confissão revela uma verdade sociológica sobre a função das narrativas de crise.

Segundo a antropóloga americana Janet Roitman, que se aprofundou no que chama de “política da crise”, tal narrativa “não pode ser tomada como uma descrição de uma situação histórica, nem pode ser considerada um diagnóstico do status da história”. Em vez disso, ela explica, é uma “denúncia necessariamente política”.

Toda narrativa de crise necessariamente fortalece o apelo por redentores. “A eleição de 2024 é a última chance de salvar a América,” afirma Donald Trump. “Apenas a AfD pode salvar a Alemanha,” republica Musk. É uma história escalável.

A filosofia de Elon Musk

Na França, o filósofo de extrema direita Guillaume Faye, que inspirou o movimento identitário, inventou uma filosofia reacionária chamada “arqueofuturismo”. Ela visa combinar o progresso técnico vertiginoso com uma moralidade medieval de heroísmo e hierarquias. Isso não está longe de como Musk responde à narrativa de decadência com um apelo ao long-termismo radical.

A “praça pública digital” que o X afirma ser, por exemplo, é um significante da esfera pública feudal. A reencenação digital de Musk da estética da Roma Antiga reflete o desejo da extrema direita por um César americano. Declínio do Ocidente, de Oswald Spengler, o livro mais influente na Alemanha pré-fascista, promovia exatamente a mesma ideia.

A filosofia de Musk parece ser que os homens devem se submeter à ambição de longo prazo do CEO-rei. Para conquistar o espaço, colonizar Marte e fundir cérebros humanos em uma única inteligência artificial, o indivíduo e suas necessidades tornam-se insignificantes. E é exatamente disso que trata a narrativa da decadência desde o início.

 

Fonte:The Conversation/El Diário

 

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