Iara
Vidal: Trump, o veludo molhado e a crise neoliberal
A moda sempre refletiu
as dinâmicas econômicas, políticas e sociais de sua época. Ela é um espelho do
espírito do tempo. O recente retorno de tendências dos anos 1990, como o icônico
veludo molhado, não é apenas uma celebração estética.
Esse resgate do veludo
molhado encapsula as crises do capitalismo, as
mudanças sociais e até mesmo a polarização política que marca o cenário atual,
incluindo o retorno de Donald Trump à
Casa Branca em 2025.
Veludo molhado e neoliberalismo
Os anos 1990 foram um
período de consolidação do neoliberalismo, marcado
por privatizações, desregulamentações e a expansão da globalização. Esse
sistema prometia prosperidade, mas também plantava as sementes de desigualdade
e crises futuras.
Enquanto isso, a moda
acompanhava esse movimento, e o veludo molhado despontava como um dos tecidos
mais icônicos da década. Com brilho característico e textura macia, o tecido
tornou-se sinônimo de elegância e versatilidade, destacando-se em peças como
vestidos, blusas e acessórios.
Popularizado por ícones
como Kate Moss e Winona Ryder, o veludo molhado combinava sofisticação com um
toque casual, muitas vezes usado em slip
dresses ou combinado com jaquetas de couro e botas pesadas.
Seu apelo se consolidou em tons profundos, como preto, vinho e azul marinho,
adaptando-se a diferentes estilos — de silhuetas sensuais a cortes mais
confortáveis.
Hoje, o renascimento do
veludo molhado, reinterpretado por grandes marcas, não é apenas uma referência
retrô, mas um reflexo das incertezas contemporâneas. Ele evoca segurança e
conforto em um momento em que as promessas do neoliberalismo desmoronam.
·
Nostalgia em tempos de crise
O retorno do veludo
molhado vai além de uma tendência vintage; reflete uma busca por conforto
emocional em meio às incertezas globais. A nostalgia, como explica o
historiador marxista Eric Hobsbawm em "Era dos Extremos", é uma
reação coletiva às crises do capitalismo, oferecendo refúgio diante de mudanças
rápidas, desigualdades crescentes e precarização social.
Hobsbawm argumenta que,
em períodos de recessão ou instabilidade, as sociedades idealizam o passado
como um tempo mais estável e próspero. Essa nostalgia se manifesta em elementos
culturais, como moda e cinema, que resgatam estilos antigos para proporcionar
familiaridade e segurança emocional.
Porém, a nostalgia
também tem um papel político. Hobsbawm destaca como movimentos conservadores
instrumentalizam memórias seletivas para promover agendas nacionalistas,
romantizando eras de "grandeza perdida" e mobilizando
descontentamentos populares com soluções simplistas.
No capitalismo, a
nostalgia é mercantilizada: estilos vintage e produtos culturais antigos são
transformados em estratégias de consumo.
Esse fenômeno não é
novo — nos anos 1990, durante o auge do neoliberalismo, houve um resgate de
décadas passadas em resposta às desigualdades emergentes. Situações semelhantes
ocorreram na crise financeira de 2008, reforçando a nostalgia como uma
constante em tempos de instabilidade.
Hoje, o retorno de
estilos como o veludo molhado simboliza não apenas uma reconexão emocional, mas
também as contradições de um sistema que transforma até mesmo memórias em
mercadoria.
·
O veludo e Donald Trump
A análise de Hobsbawm
permanece relevante em 2025, quando crises capitalistas, como a precarização do
trabalho e a emergência climática, geram novos ciclos de nostalgia.
Não foi por acaso que a
ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro escolheu
justamente um vestido de veludo molhado verde-esmeralda para participar de
eventos de posse de Trump no dia 20 de janeiro. A mesma cor, tecido e modelo
adotado pela mulher do deputado federal Eduardo Bolsonaro, Heloísa Bolsonaro.
Mesmo não tendo sido
convidadas para a cerimônia de posse, realizada na Rotunda do Capitólio, em
Washington D.C, a ex-primeira-dama e terceira mulher e a nora do hoje
inelegível Jair Bolsonaro se
emperiquitaram para assistir ao evento pela televisão. Horas depois, o clã
Bolsonaro se dirigiu ao Capital One Arena, palco de discurso e assinatura de
decretos de Trump.
Foi a opção certeira
para presenciar a ascensão de um líder autoritário como Trump e demonstra como
a nostalgia por um passado idealizado pode ser utilizada para justificar
agendas políticas conservadoras e antiglobalistas.
Hobsbawm, mesmo nunca
tendo feito crítica de moda, interpreta a nostalgia não apenas como uma reação
cultural, mas como um fenômeno profundamente político e econômico.
Durante crises
capitalistas, como a que vivenciamos agora, a nostalgia funciona como um
mecanismo de enfrentamento coletivo, ao mesmo tempo que pode ser cooptada pelo
sistema para reforçar estruturas de poder ou criar novos mercados de consumo.
Sua análise ilumina a complexa relação entre memória, cultura e as dinâmicas do
capitalismo em transformação.
·
Crise do neoliberalismo e ascensão da extrema
direita
Os anos 1990
consolidaram o neoliberalismo como modelo econômico dominante, priorizando
privatizações, desregulamentação e globalização. Sob líderes como Margaret Thatcher e Ronald Reagan, o sistema
prometia crescimento e integração global, mas crises como a asiática de 1997
revelaram suas vulnerabilidades, aprofundando desigualdades e gerando
descontentamento.
Em 2025, o mundo
enfrenta uma nova crise capitalista, marcada pela precarização econômica,
emergência climática e insatisfação com as promessas neoliberais. Assim como
nos anos 1990, movimentos de extrema direita exploram o descontentamento com
soluções autoritárias e nacionalistas.
·
Neoliberalismo: contradições e crise
O neoliberalismo surgiu
nos anos 1970 como resposta à estagflação, promovendo o Estado mínimo e a
eficiência de mercado. No entanto, enquanto gerava crescimento, também aprofundava
desigualdades.
Em 2024, segundo
a Oxfam, a riqueza dos
bilionários aumentou em US$ 2 trilhões, totalizando US$ 15 trilhões, enquanto o
número de pessoas vivendo na pobreza permaneceu praticamente inalterado desde
1990. Crises como a de 2008 expuseram as falhas desse modelo, agravadas por
precarização do trabalho e exploração ambiental.
Em 2025, essas
contradições resultam em crises sociais e políticas mais profundas em que a
desigualdade econômica com concentração de riqueza alimenta insatisfação
popular.
A emergência climática
foi forjada pela busca por lucros que negligenciou a sustentabilidade e agravou
desastres ambientais. A precarização do trabalho foi turbinada por modelos como
a gig economy que intensificaram a insegurança econômica. A polarização
política empodera a extrema direita ao explorar o descontentamento com promessas
simplistas.
·
Anos 1990 e 2025: padrões repetidos
A resposta às crises
econômicas de ambos os períodos, anos 1990 e 2025, reflete mudanças no papel do
Estado e o crescimento de narrativas autoritárias.
Enquanto os anos 1990
marginalizaram o Estado, em 2025 cresce o apelo por maior intervenção estatal
para combater desigualdades e mudanças climáticas.
Nos anos 1990, a
globalização enfrentou resistência conservadora. Em 2025, líderes como Donald
Trump, Javier Milei, Jair Bolsonaro e Viktor Orbán canalizam ansiedades
econômicas e culturais para reforçar agendas nacionalistas.
O colapso do
neoliberalismo em 2025 aponta para a necessidade de alternativas como a
economia verde que priorize a sustentabilidade e a transição energética;
reforçar o papel do Estado como regulador e investidor; e promover redes locais
e cooperativas para reduzir desigualdades.
A crise de 2025, assim
como a dos anos 1990, destaca os limites do neoliberalismo. Embora tenha
impulsionado o crescimento, suas contradições estruturais fomentaram
desigualdades e polarização.
O momento atual exige a
busca por novos modelos que unam desenvolvimento econômico, justiça social e
sustentabilidade, enquanto se combate a ascensão de narrativas autoritárias.
·
História do veludo molhado
O veludo molhado é um
tecido icônico, conhecido por sua textura suave e brilho marcante, que cria a
ilusão de movimento, como se estivesse molhado. Com uma história que atravessa
séculos e continentes, este tecido conquistou espaço na moda e na decoração,
adaptando-se a diferentes épocas e culturas.
O termo
"veludo" tem origem no latim vellus, que significa "pelo"
ou "pele", refletindo sua textura macia. O tecido surgiu por volta do
século 7 na Índia e na China, chegando ao Oriente Médio através das rotas
comerciais e alcançando a Europa no século 12. Durante o Renascimento, o veludo
tornou-se um símbolo de status e riqueza, especialmente na Itália, onde cidades
como Veneza e Florença lideravam sua produção.
O veludo molhado,
ou crushed velvet, é uma
variação que passa por processos como prensagem ou torção, criando um padrão de
texturas onduladas e reflexos irregulares. Esta técnica confere ao tecido sua
aparência única e luxuosa. No Renascimento, era usado por nobres e clérigos em
roupas e decoração palaciana, consolidando sua associação ao luxo.
Ao longo da história, o
veludo molhado ganhou diferentes nomes, como crushed velvet em inglês, velours
frappé em francês e devoré velvet, uma versão moderna que combina
transparências com o brilho do tecido. Essas variações enriqueceram seu apelo
cultural e estético.
Com a Revolução
Industrial, o veludo deixou de ser exclusividade da elite, tornando-se mais
acessível. No século 20, o veludo molhado teve sucessivos revivals: nos anos 1920, apareceu em
vestidos glamourosos da era do jazz; nos anos 1970, foi associado ao estilo
boêmio; e nos anos 1990, tornou-se um ícone da moda grunge, frequentemente
combinado com botas pesadas.
Atualmente, o veludo
molhado continua a ser uma escolha popular tanto na moda quanto na decoração.
Graças às adaptações em tecidos sintéticos, ele é mais prático e acessível,
mantendo seu ar sofisticado. Designers modernos exploram sua versatilidade em
coleções de alta costura, enquanto ele também enriquece ambientes em forma de
cortinas, almofadas e estofados.
O veludo molhado
permanece como um símbolo de luxo, criatividade e adaptabilidade. Sua rica
história, que une tradição e modernidade, é um reflexo de como um tecido pode
transcender séculos e tendências, permanecendo relevante e desejado em
diferentes contextos.
·
Veludo, a metáfora de uma crise em andamento
Tanto nos anos 1990
quanto em 2025, crises capitalistas revelam as limitações do neoliberalismo.
Desigualdades e polarizações políticas alimentam a nostalgia por um passado
idealizado, enquanto a moda, com seu papel reflexivo, captura as ansiedades e
esperanças coletivas.
O momento atual exige a
busca por novos modelos econômicos que unam sustentabilidade, justiça social e
desenvolvimento. A ressurreição do veludo molhado, mais do que uma tendência,
exemplifica como a moda dialoga com as complexidades de sua época, conectando
estética e ideologia de forma inseparável.
¨ Elon Musk e as narrativas de decadência que conectam
todos os movimentos antidemocráticos. Por Felix Schilk
“É a taxa de
natalidade. É a taxa de natalidade. É a taxa de natalidade,” ecoava a linha de
introdução no manifesto do atirador de Christchurch, que matou 51 pessoas
em uma mesquita em 2019. Sua alegação era que os brancos estão sendo
“substituídos” por outras raças e não sobreviverão sem ação.
Alguns anos depois,
a mesma obsessão com taxas de natalidade tornou-se um bordão do ativismo diário
de Elon Musk nas redes sociais.
Não me entenda
mal, Elon Musk não é nem um supremacista branco nem um terrorista
de extrema direita. No entanto, como
outras pessoas com opiniões extremistas, ele promove a visão de que a sociedade
está em declínio e que é necessário agir para evitar um apocalipse relacionado.
Essas sobreposições retóricas dificilmente são coincidência. Elas derivam de
uma filosofia reacionária que tem uma longa história de se tornar viral.
A ansiedade de que
taxas de natalidade baixas inevitavelmente levam ao colapso
populacional assombra o Ocidente desde que o consumo em
massa se
tornou seu estilo de vida dominante. Isso inverte o antigo medo malthusiano de
que o crescimento populacional exponencial ultrapassaria nossa capacidade de
produzir alimentos. Visto de uma perspectiva maior, ambos são variações de uma
narrativa genérica conhecida como decadência.
A ideia
de decadência – declínio moral desencadeado por indulgência excessiva
– informa muitas partes do senso comum cotidiano, especialmente a crítica
cultural.
Já leu o famoso
best-seller do historiador americano Christopher Lasch sobre a
cultura contemporânea do narcisismo? Já se deparou com
o meme popular que afirma que “homens fracos criam tempos difíceis”? Já seguiu
os tuítes do Cultural Tutor sobre a perda da beleza na arquitetura?
Já rolou a tela sem parar pelos 1.293 vídeos de Jordan Peterson no YouTube?
Os detalhes variam, mas o tema abrangente da decadência é o mesmo em todas as
vezes.
A decadência é uma
narrativa útil e de dois gumes. Ela enquadra as massas como preguiçosas e
necessitadas de disciplina. As elites corruptas, por sua vez, simplesmente
precisam ser substituídas. Ela lamenta a erosão da autoridade e baseia-se na
premissa de que toda sociedade repousa sobre hierarquias eternas. Muita
liberdade, diversão e flexibilidade, diz a história, põem em risco a ordem e,
assim, a prosperidade.
Daí, algumas regras
para a vida: os homens devem se subordinar e obedecer pelo bem maior. As
mulheres devem procriar para garantir a existência de nosso povo e um futuro
para nossos filhos. Uma nova nobreza deve substituir as elites liberais e
recriar a cultura. Caso contrário, a civilização, ou pelo menos as nações,
estão em jogo. Isso soa familiar?
Desde as lendas
bíblicas de Sodoma e Gomorra até o mito
hindu de Kali Yuga, adversários da igualdade e do estado de direito acusam
as sociedades de serem decadentes.
De populistas
antigos no Império Romano a fascistas italianos, a decadência é a
estrutura trans-histórica que une os ramos da filosofia antiliberal.
Hoje, o filósofo
neorreacionário e defensor de um “esclarecimento sombrio”, Curtis Yarvin, declara no New
York Times que a democracia está “morta”. Ele anseia substituí-la por uma
monarquia americana. A alegação do cientista político Patrick Deneen de uma “dissociação
quase completa entre a classe governante e uma cidadania sem um cives”
também se baseia em uma narrativa de decadência.
Todas essas ideias
repousam sobre uma percepção cíclica do tempo. Ascensão e queda. Florescimento
e decadência. Apocalipse e palingenesia, que significa um renascimento nacional
ou étnico.
Em minha pesquisa,
analisei centenas de revistas neofascistas alemãs e francesas. No final, os
dados eram a mesma repetição interminável de decadência e apocaliticismo. Chamei isso de
narrativas de crise conservadoras.
·
A
política da crise
Na maioria dos
casos, não há motivo para preocupação. A decadência é apenas um clichê. Mas é
por isso que todos podem vender tão facilmente suas próprias versões dessa
história – desde que recapitulem a grande narrativa. Os fatos não importam, e o
diabo não está nos detalhes.
“Se eu tiver que
criar histórias para que a mídia americana realmente preste atenção ao
sofrimento do povo americano, então é isso que eu vou fazer,” admitiu
francamente J.D. Vance, vice-presidente
de Donald Trump, durante a
campanha de 2024. Sua confissão revela uma verdade sociológica sobre a função
das narrativas de crise.
Segundo a
antropóloga americana Janet Roitman, que se aprofundou no que chama de
“política da crise”, tal narrativa “não pode ser tomada como uma descrição de
uma situação histórica, nem pode ser considerada um diagnóstico do status da
história”. Em vez disso, ela explica, é uma “denúncia necessariamente
política”.
Toda narrativa de
crise necessariamente fortalece o apelo por redentores. “A eleição de 2024 é a
última chance de salvar a América,” afirma Donald Trump. “Apenas a AfD pode salvar a
Alemanha,” republica Musk. É uma história escalável.
A filosofia de Elon
Musk
Na França, o
filósofo de extrema direita Guillaume Faye, que inspirou o movimento
identitário,
inventou uma filosofia reacionária chamada “arqueofuturismo”. Ela visa combinar
o progresso técnico vertiginoso com uma moralidade medieval de heroísmo e
hierarquias. Isso não está longe de como Musk responde à narrativa de
decadência com um apelo ao long-termismo radical.
A “praça pública
digital” que o X afirma ser, por exemplo, é um significante da esfera
pública feudal. A reencenação digital de Musk da estética da Roma
Antiga reflete o desejo da extrema direita por um César americano. Declínio
do Ocidente, de Oswald Spengler, o livro mais
influente na Alemanha pré-fascista, promovia exatamente a mesma ideia.
A filosofia
de Musk parece ser que os homens devem se submeter à ambição de longo
prazo do CEO-rei. Para conquistar o espaço, colonizar Marte e fundir cérebros
humanos em uma única inteligência artificial, o indivíduo e suas necessidades
tornam-se insignificantes. E é exatamente disso que trata a narrativa da
decadência desde o início.
Fonte:The
Conversation/El Diário
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